21 de junho de 2023

É Verão desde as 14 horas e 58 minutos

O que eu me preparei para isto! Primeiro a averiguar e saber, com o saber científico da ciência, o momento exacto do solstício, ocorrência que me dispenso de explicar por não ter tido tempo para uma investigação suficiente. Mas resumidamente é assim: o sol chegou ao ponto mais a norte do seu trajecto aparente, tocando o trópico de Câncer, às 14 horas e 58 minutos. Aqui, onde resido, a menos de cinco quilómetros do monte da Penaventosa, o sol nasceu hoje às 6 horas e 1 minuto e irá pôr-se às 21 horas e 10 minutos e o dia, o mais longo do ano, terá 15 horas, 8 minutos e 47 segundos. Nem o governo, nem os cientistas políticos nos presenteiam com tal rigor quando nos indicam a taxa de inflação ou o aumento do preço dos combustíveis. E eu, registem isso, sou apenas um curioso que, informando-vos, não espero, apesar disso, contribuir para a felicidade de ninguém.

O Verão vai durar até às 6 horas e 50 minutos do dia 23 de Setembro, data do equinócio de Outono no hemisfério norte, que é quando o sol chegará ao Equador, aquela tal linha imaginária que passa por São Tomé e Príncipe que, em boa verdade, acho que não tem culpa nenhuma disso. Nesse intervalo de tempo é presumível que faça bom tempo, as temperaturas subam, chova pouco e se possa ir para as praias. Todavia a meteorologia vos manterá diariamente informados com maior certeza, para que vos façais trigueiros de meter inveja, com os pelos das pernas apenas brilhando com fios de ouro, para que possais usar calções e frequentar as esplanadas a debicar caracóis, a pretexto de ingerir alguns copos de cerveja, estupidamente gelada como há anos aconselha o Chico Buarque. E diverti-vos durante estes três meses, aproveitai enquanto o governo não cai nem aumenta os impostos. Em Setembro cá estarei de volta, para vos transmitir mais informação adequada e exacta. Para que possais preparar-vos para a missa do galo. Como se diz por cá, não vos alapeis!

 

 

16 de junho de 2023

Três dias de luto e uma vala comum

Há dias, uma traineira de pesca, com menos de trinta metros de comprimento, largou das costas da Líbia com cerca de 750 pessoas amontoadas a bordo. Nenhuma delas com direito a cabine individual, mesa posta para o jantar ou lugar privilegiado debruçado da amurada. Poderia ser um curto passeio à vista da praia, mirando os banhistas expostos ao sol ou ansiando pelo encontro fortuito com uma irrequieta colónia de golfinhos. Não era.

Aventurou-se o barquito à travessia do mediterrâneo como se demandasse terras da Índia, à procura da pimenta e do cravinho. Apenas esperando por uma praia deserta nas costas da Europa, onde todos pudessem desembarcar como se chegassem ao paraíso, as manhãs fossem menos frias e restasse um pão seco recusado por qualquer mesa farta. O barco não resistiu a qualquer onda de estibordo e naufragou.

As costas da Grécia estavam a menos de cem quilómetros e as autoridades resgataram com vida 100 passageiros. Nenhum tem nome e, dos outros 650 não se sabe também nem o género, nem a idade, as habilitações ou o partido em que votariam se fossem eleitores inscritos e não se abstivessem. Oficialmente foram decretados três dias de luto e mandadas abrir valas onde todos possam finalmente repousar. Sem paraíso. E está o problema resolvido.

10 de junho de 2023

Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades

Aproveitando o dia feriado, a elite do Terreiro do Paço convergiu para a cidade transmontana do Peso da Régua, a fim de celebrar a data, subir ao miradouro da Galafura, admirar a paisagem verde dos socalcos e deliciar-se com os últimos resquícios da velha cozinha tradicional. Como convinha ao palato e à região, sempre salientando o sabor a fruta do vinho fino e do barca velha.

O Presidente da República fez questão de lembrar que Portugal ia de Viana do Castelo às ilhas do Porto Santo e do Corvo esquecendo-se, lamentavelmente, de referir a Aguada de Cima e o apetitoso leitão assado da Casa Vidal. Ninguém fez a menor referência a Camões ou aos Lusíadas e apenas um produtor de vinho referiu, de passagem, a figura histórica mais próxima da sua época, o Marquês de Pombal, que deu cabo dos taberneiros e concentrou o comércio da pinga.

Foram muito genéricas as referências às Comunidades e incentivou-se o regresso dos emigrantes e a vinda de forasteiros, desde que de bolsos cheios de dólares e de reservas para o alojamento local e para os hotéis de cinco estrelas. Não se ouviram, apesar disso, aplausos nem dos grémios nem dos sindicatos.

O povo, como convém, manteve-se atrás das cordas montadas para sua protecção, para não se tresmalhar, e aplaudiu o patrão da quinta e apupou o ministro Galamba. O doutor Montenegro faltou à sombria manhã na praia de Espinho e mostrou-se, de fato e gravata, à direita de um deputado do Chega com a barba por fazer. Por causa do voo das aeronaves não houve lançamento de foguetes, ficando esta cerimónia adiada para a noite de São João no Porto.

8 de junho de 2023

Solilóquio por um amigo

Não sei quando ou como nos conhecemos, mas sei o que nos foi aproximando na vida. A tua natural e espontânea humildade e a sinceridade do teu olhar claro e longo. O corpo, franzino e frágil, capaz de uma resistência sem limites e de uma entrega sem condições. E a inteligência, repentina e ágil, explosiva e imediata, chegando aos pontos mais recônditos e distantes daquilo que sabemos. E sempre a mesma alegria sem máscara, o mesmo riso aberto, o mesmo espírito solidário dos amigos de peito.

Dias atrás chegou-me uma fotografia e uma pergunta: conheces? Confesso: não fui capaz! E, depois de saber de quem era, lá fui, a custo, descobrindo alguns traços que o tempo e as circunstâncias, apesar de tudo, não alteraram de todo. Quis saber de ti, como estavas, por onde andavas, como poderias ser contactado. O nosso último contacto teria sido à mesa de uma esplanada, na Quinta das Conchas, onde moravas, alguns dez anos atrás. Não funcionou nenhuns dos números que tinha comigo e, a pedido, um novo contacto me chegou.

Demoraste a atender e fizeste-o de modo atabalhoado, como que estremunhado, ia a tarde a meio, e poderia ter-te interrompido a sesta vespertina. Perguntei quem eras e devolveste-me o apelido para não mais te enquadrares com o discurso. Não foste capaz de me dizer o local onde estavas ou a morada que tinhas, embora convidando-me a que aparecesse para conversarmos. Pareceu-me descortinar algum débil entusiasmo quando te disse quem era, mas pareceu-me apenas isso. Fiquei inquieto e mais inquieto andei estes dias. Tinha de ir visitar-te, precisava ver-te, fazia-me falta falar contigo.

Cruzávamo-nos no passeio, quando regressavas do almoço, arrastando o corpo e o cansaço. Respondeste quando te chamei pelo nome, sem chama e sem entusiasmo, com o olhar baço perdido no fundo dos olhos envelhecidos e conformados. Nunca disseste um nome, nunca referiste um facto, nunca mencionaste um local. Sendo tu, não eras tu, não estavas lá, já não sabias de ti, nem de ninguém, nem de nada. Estranhamente apoderou-se de mim uma calma tranquilidade, cessou-me aquela inquietude dos últimos dias, não me sobreveio nem o desalento nem a revolta. A nossa geração, Armando, tem-nos deixado pouco a pouco, sem estrépito e sem anúncio prévio. Quase já não temos memória de nada, quase já não temos memória de ninguém. Quase já não cedemos ao desalento, quase já não temos força para a revolta. Onde está a tua força de viver? Onde estão os teus amigos?

 

 

1 de junho de 2023

Dia internacional da criança

Ainda ontem, não sei em quantos lugares do mundo, muitos milhares de pessoas se deslocaram a estádios onde se realizaram encontros de futebol, adquiriram os seus bilhetes de ingresso, ocuparam os seus lugares e assistiram a partidas com que se emocionaram, exultando de alegria ou cedendo à frustração. Muitos milhões de pessoas pelo mundo fora se sentaram confortavelmente em frente a um televisor, foram saboreando uma bebida e debicando aperitivos enquanto assistiam aos mesmos espectáculos. Muitos milhões de pessoas se sentaram confortavelmente a uma mesa posta, saborearam as suas suculentas refeições, conviveram durante o serão e acabaram por repousar em leitos confortáveis, com camas a cheirar ao fresco da roupa lavada.

Ainda ontem e todos os dias, não sei em quantos lugares do mundo, muitos milhares de crianças não tiveram um brinquedo, não assistiram a espectáculo nenhum, emocionaram-se naturalmente sem terem consciência disso, riram e choraram sem saberem porquê, a vida foi-lhes oferecida como uma fatalidade. Sentaram-se no chão quando foi caso disso, não tiveram um copo de leite para o dejejum, uma sopa para o almoço, um pão para o lanche, uma mesa a que se sentassem, uma refeição que lhes assegurasse o crescimento normal. O convívio foi-lhes tão natural como a desgraça, como a ignorância, como a falta de cuidados de assistência, do agasalho ou do abrigo que as protegesse das inclemências do tempo. Não tiveram um leito e não sabem o que seja o conforto mínimo de uma enxerga, o restolho de um colchão humilde, cheio com a palha vazia das espigas de milho.

Não sabem essas crianças de nada disso, não têm consciência nem da fome, nem da falta de assistência, nem da falta de escolas. Mas, muito facilmente, o sabemos nós, sem necessidade de grandes estudos, sem o apelo à complexidade da ciência, sem a mobilização dos grandes cérebros que planificam a paz, a concórdia e a abastança. E sabemo-lo todos os dias. E, com facilidade, sabemos ainda que não é por falta de recursos que isso acontece. Sabemos que um pequeno contributo dos mais afortunados pode eliminar essa vergonha universal. Sabemos que a inutilidade de todas as guerras e de todas as balas pode ser transformada em pão, em vacinas e em escolas.

Hoje alguns países assinalam o dia internacional da criança. Então lembremo-nos delas todos os dias. Então juntemos recursos, então orgulhemo-nos daquilo a que chamamos civilização. Por todas as crianças que o não são, porque todos impedimos que o sejam.