30 de junho de 2015

Do mais fundo da tarde

Do mais fundo da tarde emergiu este mar sereno e raso, sem ondas e sem espuma, estendendo-se pelo dourado das areias finas, como se fosse domingo. A oeste nada de novo, como no título de Remarque, nem ideias nem propósitos, ninguém que se prenda ao leme e dobre o cabo das tormentas, ousando enfrentar o dilúvio que se pode esperar para lá da escuridão de um céu sem estrelas e sem relâmpagos. É a oriente que nasce o sol, é a oriente que cresce a esperança que da vontade se faça algum futuro.

Não há nem porto nem cais e nem o oceano traz navios que transformem esta calma tranquila naquela azáfama de chegadas próximas. Há apenas um sol oblíquo, descendo lentamente no horizonte, projectando sombras de árvores que nasceram com a paisagem e que, nos dias que habitamos, se transformaram em fantasmas que assustam crianças e adultos. Os rios deixaram de terem margens, os afluentes secaram, os peixes morreram.


Nunca os homens fabricaram tantas armas em nome do desarmamento, nem fizeram tanta guerra, com o objectivo superior de implantar a paz, justa, duradoura e definitiva, na boca vazia dos políticos. A paz são milhões de barris de petróleo que as refinarias transformam em gases letais e em cotações nas bolsas de valores, onde os lucros jorram das torneiras. A paz são crianças subnutridas de África, vasculhando o lixo dos contentores à procura de alimento, morrendo de olhos esbugalhados, saídos das órbitas, tristes e famintos. Vítimas sem culpa e sem conhecimento de que haja Deus e do que seja petróleo.

21 de junho de 2015

Domingo, Verão, 21 de Junho à sombra

Domingo, Verão, 21 de Junho à sombra. Nível médio das águas do mar, Foz do Douro, Portinho da Arrábida, Torricelli, pressão atmosférica, 76 centímetros de mercúrio, nenhum vento norte. A areia fina já escalda sob os pés descalços, chinelos na mão, uma toalha de turco estampado pendurada sobre os ombros, óculos escuros protegendo os olhos da luminosidade por demais, sol alto. Higrómetros parados, quase sem tripa, nenhuma humidade, nem relativa nem absoluta. António Gedeão morto, a pedra filosofal sobre a campa rasa, Rómulo de Carvalho no desemprego, rejeitado no concurso do ministro obtuso dos professores.

Nenhuma química, nem orgânica nem hidrocarbonetos, só petróleo no Iraque. E a naftalina, sublimação, directamente do estado sólido ao gasoso, Herberto Hélder feito nuvem, cirrus ou lá que é isso, farrapos esparsos a trinta mil pés, para metros é só fazer as contas ou percorrer a distância, a cadela Laika andou mais do que isso e morreu sem chegar à lua, ainda o muro de Berlim não tinha sido construído para ser derrubado, nem a Ângela do lado de lá tinha ousado atravessar a linha de fronteira desenhada pelo arame farpado das baionetas pacíficas das Kalashnikovs.

Hoje sinto-me todo grego, mais do que é costume todos os dias, com o preço da electricidade e a subida dos impostos, bandeira toda azul e branca com uma cruz ao canto, Bruxelas uma cidade colónia de Berlim, sem catedral e sem a confeitaria do Zé Natário, forçando a cobrança de juros agiotas por solidariedade e tentando vender gravatas aos turistas descalços que chegam famintos das escarpas do Peleponeso. É preciso o aviso a tempo por causa do tempo, ler o que a vida curta deixou tempo a que António Maria Lisboa escrevesse, ao menos Mário Cesariny de Vasconcelos morreu de velho, puta da tuberculose.


As pessoas devem ser conhecidas pelo nome todo, inteiro como elas, sem falta de bocados nem contrapesos, mesmo que a rainha de Inglaterra possa tropeçar no seu, cair dos sapatos abaixo, partir o nariz e ficar entrevada até à idade com que o senhor Manoel de Oliveira voltou à Ribeira para filmar o Aniki Bóbó. Picasso assim, sozinho, não é pessoa nem coisa nenhuma, parece nome de chulo a viver à custa das prostitutas do Intendente. Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso sim, é nome de pessoa, com direito a mais de setenta virgens para lá dos Pirenéus. Pode sair a primeira para o  Château de Vauvenargues!

19 de junho de 2015

Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão, digo-te num sussurro, os meus lábios encostados ao teu ouvido esquerdo, uma carícia breve dos meus dedos passando-te como brisa de verão sob os cabelos, e escrevo-te os contornos delicados do corpo, enquanto devagar te desenho, letra a letra, um soneto na omoplata, a métrica e a rima certas, com o rigor matemático de uma dízima infinita que se estende muito para além do corpo e do espaço em volta, viagem sem fim e sem destino, só descoberta.

Os dedos entrelaçados, o coração batendo-te cadenciado e terno na ponta do indicador, o sol de há muito é um vulcão de fogo que se desfez na areia fina da praia, a caminho do sotavento, um banco pintado de vermelho virado a poente, os pés descalços, senta-te comigo, olha o mar sem ondas, a pouca espuma branca arrastando consigo um poema de Neruda que acaricia o fim da tarde e nos chega à alma como melodia viajando do outro lado do Atlântico.


À beira rio, devagar, a noite acendeu-se nos candeeiros de iluminação pública, projectando sombras de barcos nas águas tranquilas, seguindo ao encontro do sal que as irá temperar no encontro com o oceano. De mãos dadas caminhamos contra a corrente, seguindo para montante, as silhuetas espalhando-se num voo plano, como se não houvesse plural e até nós não chegasse nem a noite nem os contornos imponentes do convento. Só silhuetas e ternura!

14 de junho de 2015

Hoje não preciso de palavras

Hoje não preciso de palavras, já me sobram as ruas desertas de domingo e este sombrio sol de junho varrendo de estilhaços os adros das igrejas. Dói-me a forma lenta como a tua ausência se arrasta pelas horas, sem um sinal de regresso, uma esperança do perfume suave dos jacarandás nos jardins públicos. Podia haver ao menos um indício de que a tarde te trazia de volta, caminhando devagar à beira rio, desejando ser nascente para ser ponto de partida.

Mas preciso de um olhar manso e tranquilo que me não chegue muito tarde e me desça devagar pela coluna , vértebra a vértebra, até à região lombar, onde um enigmático quisto persiste em me habitar e em lembrar-me de que algo de meu lhe está entregue e lhe pertence, não vá eu entregar-me por inteiro ao fresco que a noite há-de trazer e à lembrança de que nem isso pode fazer-te regressar ao meu regaço.

Preciso que me dês a tua mão e que nela sintas a certeza com que te aperto toda num só abraço. Que o calor morno do teu corpo me suba pelas veias e me chegue ao coração, renovando a vida que lhe dá o oxigénio que me entra pelas narinas, num caudal apressado e tumultuoso, como se tudo pudesse num momento fazer-se tarde. Preciso que o cheiro sempre novo do teu corpo se estenda sob a intranquilidade dos meus sentidos e que delicadas gotas de orvalho, doces como mel de urze, se estenda pela ponta macia dos meus dedos.

13 de junho de 2015

Hipotético responso de Fernando Pessoa a Santo António

Fica sabendo, Santo António, sejas tu de Pádua ou de Lisboa, que eu sou anterior a tudo e que o mundo me cabe inteiro e completo no número 4 do Largo de São Carlos, com o mar preso nos dentes e o sol agitando as velas dos grandes navios que aportam aos cais. Manuel da Fonseca, que não conheci por me terem julgado morto antes, e ainda porque a estrada de Sintra não passa por Santiago do Cacém, garatujou algures que antigamente o largo era o centro do mundo, uma perspectiva mínima de tudo, que não vê para o outro lado da rua, nem para debaixo da mesa sobre a qual se depositam os copos vazios de aguardente e os pensamentos com que encho o mundo e o encafuo nos recantos mais íntimos da minha cabeça.

Encarcerado num caixote de mármore no Mosteiro dos Jerónimos, sem o ter pedido porque não poderia pagar a renda do quarto que me destinaram, e porque perderia do horizonte oblíquo em que me penso, a silhueta burocrática de Ofélia, não me pude pensar e não me pude dizer, todo para dentro de mim. Até à náusea, antes de Jean-Paul Sartre atirar para os caixotes de lixo, onde as gaivotas procuram ramos de oliveira e restos de comida, o prémio que lhe quiseram dar nos fiordes escandinavos. Tanto mais que nem toda a cultura que bebo aos balcões das tabernas de José Maria da Fonseca está disponível na limpeza obscena que encarde o Centro Cultural de Belém, onde se conta com vizinhos a ler livros aos quadradinhos e se atropela a minha querida língua portuguesa.


A noite passada, mais do que encarcerado fui abstémio, e não cheguei à Mouraria por ter-me perdido no caminho. Não atinei sequer com o rio de ideias que sobe para o castelo e que inunda de luzes pequeninas as copas dos pinheiros plantados à entrada. Não terei perdido muita ou importante coisa, nunca fui grande apreciador de sardinhas, um peixe pequeno que voa muito acima das minhas possibilidades e que vive atrelado ao elevador que sobe a calçada da Glória. Muito menos ainda quando retiradas à força de cima das brasas em que se aquecem e depositadas sobre um pedaço de broa feita de milho, um cereal que conheço do dicionário e que nunca vi crescer no Martinho da Arcada, por mais poesia que escorresse das cadeiras.

10 de junho de 2015

Dia 10 de junho

O dia 10 de junho é um dos feriados que resistiu aos sermões do abade, aos decretos do presidente do conselho e à ganância do ex-dono disto tudo. No tempo de D. Botas I parece que se comemorava o dia da raça sem que se tivesse alguma vez sabido qual ela era: branca, preta, amarela, vermelha ou mesmo ariana pura. Ou ainda labrador, pastor alemão, dobermann, bulldog ou rottweiler.

Agora celebra-se o dia de Portugal e das comunidades portuguesas. Portugal que, como se sabe, sempre foi considerado uma parte insignificante de Espanha, onde a D. Amália cantava o fado e Eusébio destruía a reputação dos guarda-redes, marcando golos de qualquer maneira. Restam as comunidades que, honra lhe seja feita, o governo tem promovido, empurrando o cidadão indígena para a emigração, de Angola à China e à Coreia do Norte.


Presididas por D. Botas II as comemorações deste ano têm lugar na cidade de Lamego para onde, a expensas nossas, se deslocará toda a actual brigada do reumático que habita o Terreiro do Paço e as imediações da fábrica dos pasteis de Belém. A vetusta cidade rejubila, é uma primeira edição da romaria da Senhora dos Remédios, com a correspondente venda da sardinha assada e do copo de vinho tinto e a distribuição de algumas comendas pelos proprietários de rebanhos e pelos produtores de morcelas.

8 de junho de 2015

Não chega que o sonho comande a vida

Não chega que o sonho comande a vida, não chega que a água cristalina dos regatos jorre das nascentes, não chega que os rios encorpem o caudal e corram para o mar. É preciso que a vida se confunda com o sonho, realidade e utopia, um vendaval de cabelos soltos esvoaçando ao vento como bandeiras desfraldadas em cada manhã. É preciso que a água cristalina alimente as fontes de granito, abandonadas e secas, como emoções que não inundam os olhos magoados e sentidos. É preciso que o oceano suba pelo leito dos rios, sal e água doce, peixe e alimento, certeza mais do que esperança, o pão a nascer nas savanas de África.

Não chega que o teu olhar sereno e tranquilo, carregado de promessas, se conforme com a beleza simétrica que os espelhos te devolvem. É preciso que o sintas pulsando ao ritmo a que te bate o coração, vida e sentimento, a blusa cedendo à firmeza com que se te ergue o peito pleno de ternuras. Não chega que se te crispem as mãos, os dedos entrelaçados, os lábios cerrados e sem pintura, a bússola sem se deter, procurando o norte. É preciso que as mãos se te encham de flores e de certezas, desenhando cada curva suave do teu corpo como se retocasse uma obra-prima que nenhum artista foi ainda capaz de reproduzir.


Não chega que o teu sorriso procure a cor indefinida dos meus olhos e me encha os pulmões do oxigénio com que vou somando os dias, como se fosse um convite para a descoberta de quantos brasis ainda há por revelar nas dobras de cada mapa. É preciso que a tua boca sejam só palavras sussurradas ao ouvido, o perfume inconfundível do teu corpo a preencher-me cada poro, os teus dedos soltos e esguios a desenhar afectos no emaranhado dos meus cabelos e no fogo incandescente do teu desejo.

5 de junho de 2015

São intermináveis as horas

São intermináveis e longas as horas que o sol leva a chegar de oriente, onde nascem a vida e todos os sonhos, a ocidente, onde a noite alimenta todas as esperanças e todas as madrugadas, quando o crepúsculo o esconde no mar, além da linha indefinida do horizonte. São tempos de espera, a ansiedade crescente, a dor sem medida nem localização, como se a alma me tivesse sido atravessada pelo gume infalível de um punhal, do tamanho deste ângulo raso que não cede nem a receitas nem a remédios que se vendem nas farmácias.

O nada te trouxe do vazio, sem corpo e sem aviso prévio, um riso permanente saltando-te do olhar, uma disposição que encheu os campos verdes do vermelho rútilo das papoilas, acenando aos dias de verão que se aproximam. A noite te vestiu e te deixou a flutuar ao sabor da imaginação com que te sonho, os braços abertos para o abraço, a boca sequiosa para o beijo, envolta nos crepes que a pouca luz da lua nova e a distância das estrelas deixaram disponível para o silêncio. E as palavras sucederam-se com a mesma frescura com que a água cristalina corre das nascentes que brotam das montanhas.

Com o sol alto, nem a mais ligeira brisa que agitasse a caruma na copa dos pinheiros e trouxesse o perfume macio das glicínias que te nascem dos cabelos e te cobrem a frágil nudez dos ombros. Não sabe a nada este ar quente e poluído que me enche as narinas e me morre no cansaço dos pulmões, o passo inseguro e sem destino. Até que chegues de novo pela noite, com o mesmo horário irregular a que os comboios se imobilizam nos cais das estações e eu vá ao teu encontro, a dar-te uma mão cheia de ternura.


1 de junho de 2015

Dia mundial da criança

Crianças somos todos nós, desejo e esperança, ontem, hoje, amanhã, sempre. Águias imperiais de voo largo, asas abertas pintadas de verde, acima de todas as altitudes, Everest ou Kilimanjaro, regaço de todas as mães, berço de todas as latitudes. Choro magoado e riso estridente afiado nos dentes, sentido na queda das lágrimas de sal marinho e dores de barriga, exames escolares, fome sem adjectivos. Navegadores escandinavos de todas as épocas, sulcando oceanos de polo a polo, a alegria na ponta da língua, o sonho na palma da mão e um brilhozinho nos olhos inquietos e curiosos.

Mãos vazias de armas e de violência, irmãos fraternos de todos os destinos e de todas as cores, união solidária de todas as necessidades básicas e ignoradas, tropeção dos primeiros passos, o apoio das pernas das mães para evitar a queda, sempre presentes nas savanas de África, o continente alargando-se a todas as longitudes, as mãos dadas para o futuro, coração pulsando desde o ventre materno, seguro e certo, como se a incerteza fosse apenas um conjunto de nove letras e não quisesse dizer presente nem futuro.


Declaração dos direitos da criança, uma manifestação de intenções, tantos anos, nada mais do que isso, nem reciclagem nem o saltinho nervoso dos pardais. A dignidade é uma palavra de dicionário, o nascimento um berço dourado aqui, um tecto semeado de estrelas mais além, abrigo sob um imbondeiro, o céu aberto. O alimento o resultado do trabalho de cientistas e a falta de uma moeda que garanta a vida que se esgaravata nos restos que apodrecem. A saúde e a instrução, dialectos incompreensíveis que se não falam e que se não entendem. A criança tem direito e mais que um dia e a mais que uma declaração escrita a cor de rosa numa folha de pergaminho. Tem direito a uma vida!