24 de dezembro de 2016

Natal 2016

Sê lúcido! Não chores pelo que não tens. Não perguntes aquilo a que não te respondem. Despreza o que te ignora e o que te magoa. Mantêm-te lúcido: há sempre um dia seguinte!


21 de dezembro de 2016

Um Natal para os meninos de África

Para os meninos de África não há pinheiros nem caruma espalhada pelo chão. O sol brilha sempre – porque, na sublime imagem de Albert Camus, em África o mar e o sol são de graça! -  e os dias são sempre iguais às noites. Em África, branco ou preto são apenas a cor da epiderme e os meninos ainda jogam à bola com uma bola de trapos. Têm um riso franco e estridente e os dentes muito brancos, sem o excesso civilizado de açúcares e de cáries. Os meninos de África andam descalços, dão topadas nas pedras dos caminhos, perdem-se no meio dos capinzais. Tomam banho no rio e secam-se nas margens, à sombra de árvores de folha perene, enquanto brincam as inocentes brincadeiras deles.

O seu horizonte vai até onde chega o seu olhar, como a miséria desumana em que crescem e a fome de que se alimentam. Procurando nos sacos do lixo deixados na beira das ruas, os restos rejeitados por estômagos fartos de kamanga e de petróleo. Os meninos de África são universais. Na ignorância a que os condenam e na fome de que apenas os salvam as intenções e os decretos. E ainda na saudável ingenuidade de se entregarem sem condições e sem competição. Atrás de rótulos inventados por quem os condena a um destino fatalista de barriga vazia e pé descalço.

Os meninos de África não conhecem essa palavra Natal e nunca ouviram falar da Lapónia. Não sabem sequer que rena é bicho, nem que o Pai Natal viaja de trenó a distribuir prendas, descendo pelas chaminés. Para eles nem o domingo é dia de descanso, é só mais um dia de fome. Com a esperança ausente, e a brincadeira desabrida dos simples, dos ingénuos, dos que não têm maldade. Nem no brilho do olhar nem na pureza imaculada de corações pequeninos e solidários. Os meninos de África não sabem o que são prendas, o que são brinquedos, o que é coração.


A sua neve não cai nos cumes das montanhas nos dias frios de inverno. A sua neve cai com um tempo tropical e uma temperatura superior a 30 graus, os corpos pingando de suor. A sua árvore de Natal é um imbondeiro gigante, emergindo grandioso e imponente no meio da savana. Com zebras, girafas, palancas e outros bichos dispersos na paisagem. E reunindo em volta todos os muitos meninos, de olhar brilhante e pés descalços. As mukuas são bolas de cristal penduradas dos ramos, faiscando à luz das estrelas. Que se colhem e se saboreiam quando se pode e se lhes chega.

Natal não seria nem árvore, nem prenda, nem brinquedo. Nem doces, nem centro comercial, nem alegria breve. Natal era só um pão para cada menino, uma caneca de água para beber. Era uma roupa simples, um sapato barato.  Uma escola, um sistema de saúde, alguns cuidados de higiene. Uma palavra meiga, um carinho, uma festa na cabeça. Um Deus, sim um Deus. Um Deus omnisciente, um Deus omnipresente. Porque todos os meninos do mundo são filhos de Deus. E os meninos esquecidos de África também!

19 de dezembro de 2016

Da tarde de ontem trago a memória

Da tarde de ontem trago a memória dos moinhos de vento no alto dos montes. O granito das paredes da igreja e da calçada do adro. O cheiro nostálgico e meio bucólico do casario espalhado pelo verde tardio da planície. E uma nesga de mar, como um postigo aberto no termo do horizonte, para que víssemos as nuvens. Tudo somado, uma aragem fresca e perfumada agitando suavemente as folhas das árvores. Que me dá ao coração a cadência exacta dos relógios de cuco e o sorriso elegante de uma presença de mulher que se deseja. Com a delicadeza dos dias em que o vermelho das papoilas rompe o tapete rasteiro das ervas dos campos.



Um novo verde que se acende no pavio dos meus olhos, como se brilhasse no cimo de uma azinheira. Uma explosão de luz iluminando as fragas da serra, como se fosse uma aparição numa manhã de outono.

17 de dezembro de 2016

Cinderela

No princípio, coitadita, eu só tinha
Uma pequenina florzinha
Uma uva sem grainha
E um porte altivo e solene de rainha.

Tudo o mais chegou depois,
Um desenho perfeito com três sois
No campo, uma quinta e uma junta de bois
E na cabeça um cabelo lindo, lindo aos caracóis.

Vi-me ao espelho, gostei, fui à janela
Na rua o meu príncipe passou e disse: olha pra ela
Tão bonita que até parece a Cinderela.
E não ouvi mais nada, que ladrou o diabo da cadela.


Mas está feito, chegado o dia ponho-me a caminho
E vou à grande feira de Espinho
À procura do tal pequeno sapatinho
Porque o meu príncipe há-de ter-me por parzinho…

15 de dezembro de 2016

Acordei dentro de um dia fresco

Acordei dentro de um dia fresco, com um sol brilhando-me em cada pupila. Com as horas curtas, perdendo-se nos restos do equinócio. O relógio a manter-se quase imóvel. Os ponteiros parados. Uma ansiedade a crescer-me no peito. O céu tão claro, tão bonito, tão coberto de um mar de camélias brancas. O céu devia ser assim sempre, em toda a parte, para toda a gente. O sol sorrindo, tão confortável no seu aconchego. Toda de verde a margem do rio, o espelho perfeito das águas, reflectindo os corpos dos barcos fundeados e o volume do monumento subindo pela escarpa.


O sol resistindo à fatalidade do crepúsculo, adiando o gume do horizonte e a tragédia da tarde. E o mar plano, largo, macio. Estendendo-se como um tapete até à última distância do poente. Aguardando pelo encontro, à hora certa. E pelas nossas mãos, à procura da calçada sobre a praia. Um casal de gaivotas desenhando a harmonia do voo numa réstia de azul, ainda vazio de penumbra. Depois o véu rasgado de repente, abrindo a nesga necessária para mergulhar na noite. A explosão das chamas, o inteiro incêndio do oceano, o por do sol nas lavas de um vulcão.

12 de dezembro de 2016

Quero uma cidade e escrevo Alepo

Quero um continente e escrevo África. Quero um país e escrevo Síria. Quero uma cidade e escrevo Alepo. E depois já não preciso de querer ou de escrever mais nada. Já estão comigo todos os sentimentos, emergindo das ruínas. Que reduzem a destroços todo o meu universo, onde há cientistas à procura do caminho mais curto para o sol. Basta-me uma fotografia na página de um jornal. Com paredes construídas a cair. Com janelas abertas para nada. Sem uma folha de árvore caída no outono. Mas com uma pequena fila de gente, mais desfavorecida, como dizem os senhores do mundo. Carregando alguns sacos de plástico e arrastando as suas crianças. Sob o olhar protector das balas de uma metralhadora, pronta para o disparo. Para descanso dos escombros. Para a independência da Síria. Para a paz no planeta. E para a conversão, inútil e vazia, à omnipotência de Deus.

É um caminho longo demais…


10 de dezembro de 2016

Perguntas-me

Perguntas-me: gostas um bocadinho de mim? Com uma voz meiga, quase imperceptível, que se vai perdendo no sono. E no último verso de um poema sem métrica e sem rima. É esse bocadinho de voz que fica comigo. A certeza solitária com que adormeço. A presença distante com que durmo. A novidade com que desperto na manhã seguinte. A tua voz a chegar-me também aos bocadinhos. Um pouco de ti com cada palavra. Até seres toda nos meus braços. Inteira na minha resposta. Sem que esta precise de palavras, basta a minha mão sobre a tua ansiedade. Sentindo o calor fresco da tua pele. O toque sedoso dos teus cabelos. O desenho macio dos teus lábios. A promessa que mora no oceano tão líquido dos teus olhos. O porto de abrigo a que me acolho, depois da remota viagem e da longa espera.


7 de dezembro de 2016

O amor é esta coisa

Sussurro amo-te e respondes-me que o amor é outra coisa. E tens razão, o amor é outra coisa. E a mesma coisa. E mais uma coisa. E todas as coisas. Uma coisa que me faz faltar o ar. E que me enche os pulmões. Uma ternura que me afaga os cabelos. E um vento fresco que me despenteia. Uma névoa líquida que me tolda o olhar. E um brilho verde que me dilata as pupilas. Uma mão quente no teu peito. Uma mão fria no meu bolso. Um sonho nos teus olhos. Um desgosto na tua apreensão. Um conforto nos teus braços. A tua cabeça no meu ombro. O amor é outra coisa. Um triângulo equilátero sem lados iguais. Uma esfera sem fórmula matemática para o volume. Uma dízima infinita no meio de um segmento de recta. Em cujos extremos estamos apenas nós. Os dois. A tua mão na minha mão. Os teus dedos nos meus dedos. O teu sorriso nos meus lábios. O amor é esta coisa!


4 de dezembro de 2016

Um rio calmo na manhã de domingo

Um rio calmo na manhã de domingo. Meia dúzia de casas térreas na margem plana. À sombra imponente das copas tropicais. Ficus elastica, morácea tropical, palavrões eruditos. Antes do rio se torcer numa curva logo adiante. Lavando as águas que, devagar, leva para o mar. Esfregando o sol nos olhos da paisagem. Espreguiçando-se pelo verde descansado da planície. Como gatos sobre os telhados quentes do inverno. Esgotadas todas as horas de descanso incluídas nos decretos. Velhos sem tempo, sentados às portas, de pés descalços e barbas brancas escondendo a idade. E a semana que vem, na tarde do dia curto de solstício.



Cada palavra um espaço. Uma sinfonia entoada pelo voo dos pássaros. Asas abertas e penas coloridas. Rasgando as nuvens e o azul, em si bemol. Como cavaleiros medievais cercando fortalezas. Batendo o ferro em brasa no gume futuro das espadas. As conquistas e o cansaço das bigornas. O galope dos cavalos, o tinir do aço no auge da refrega. Uma estrela cadente em Alcácer Quibir, que não há norte para Dom Sebastião. Nem sul ou meridião.