29 de janeiro de 2015

Pensar África

Pensar África é andar para trás, é regressar ao século passado. Evocar Lépold Sédar Senghor e Aimé Césaire, sentir a negritude e o humanismo que pensaram, pôr umas flores silvestres lá no sítio onde moram hoje. Percorrer intermináveis caminhos de terra, perder-se no meio das espigas altas dos capinzais, conviver com a natureza tal como o passado no-la deixou, procurar ninhos de siripipis, colher visgo nos troncos das mulembeiras, caçar catuitis, derrubar morros de salalé, correr atrás das formigas voadoras no fim das tardes mornas, encharcar-se sob a chuva tropical e chapinhar na água vermelha correndo nas valetas.

Pensar África é dizer saudade, falar umbundo, ficar sentado na beira do rio, uma cana, um fio e um anzol com uma minhoca dançando na ponta, atraindo a esperteza do bagre, peixe discreto de águas fundas, tanto tempo que fica de noite. É ver este rio grande e triste, perdendo energia, fugindo ao caminho da morte que o leva à foz onde, sem glória, o mar ou o deserto o engolem como se fosse coisa nenhuma, assim pequenina, de meter no bolso. É ter o céu por cima, como se fosse capim de cobrir kimbo, só estrelas brilhando lá muito alto, constelações, nomes que a gente não vai aprender nunca. E para quê?




Pensar África é sonhar outro futuro que nenhum tempo trouxe às anharas. É ver que savana virou floresta de cimento, saparalos mais altos que os mamoeiros uns em cima dos outros, a gente trepando para tirar um, goiabeira ali mesmo no meio do mato, as goiabas maduras para a gente comer junto com os sacanjueles, as mukuas nas alturas do imbondeiro, nenhuma escada com o tamanho para subir assim tão alto, vá lá que loengo não dá trabalho, é só comer. É correr atrás do arco de barril que trazia o vinho do puto, preso a um fio e a um pau para lhe dar movimento, os miúdos fazendo habilidades, o tempo passando no caminho dele.



GLOSSÁRIO RUDIMENTAR

Alguns termos constantes do texto podem não ser de todo entendidos por quem o ler. Este glossário pretende apenas auxiliar nesse entendimento, baseando-se no conhecimento adquirido diretamente, por via oral, e em pesquisas sem rigor científico, que pertence aos investigadores. Mas esperamos que, para além disso, ele possa auxiliar a compreender o texto, porque esse é o seu único propósito.

Siripipi – ave de pequeno porte, rabo-de-junco.
Visgo – seiva gelatinosa e pegajosa de diversas árvores, utilizado para aprisionar pequenas aves quando pousam sobre ele.
Mulembeira – ou mulemba. Figueira africana, de seiva leitosa e gelatinosa.
Catuiti – ave de pequeno porte, peito celeste.
Salalé – formiga branca angolana, do género das térmites.
Umbundo – dialeto angolano falado por cerca de um terço da população do país, especialmente nas províncias do Bié, Huambo e Benguela.
Bagre – peixe de água doce, predador, vivendo junto aos fundos de cursos de água.
Kimbo – ou quimbo. Pequeno povoado ou aldeia, composto por edificações ligeiras, cobertas de colmo ou capim.
Anhara – planície arenosa e de vegetação rasteira, frequentemente na proximidade de cursos de água.
Saparalo – Edifício alto, de mais de um só piso.
Momoeiro – árvore que produz o mamão.
Goiabeira – árvore que produz a goiaba, fruto que atualmente pode ser encontrado em algumas superfícias comerciais.
Sacanjuele – ou sacajué, no singular. Ave de pequeno porte, embora superior ao do siripipi e do catuiti.
Mukua – fruto do imbondeiro ou do baobá.
Imbondeiro – ou baobá. Árvore de grande porte, como o exemplo da ilustração que acompanha o texto.
Loengo – fruto roxo do tamanho de uma pequena ameixa, produzido por arbustos de pequena altura.
Puto – Portugal.


8 de janeiro de 2015

O Natal são dois dias

O Natal são dois dias a que se chega, quando se chega, por todos os outros dias de caminho agreste e íngreme, pés descalços sobre os gelos polares ou sobre as areias escaldantes dos desertos, o sofrimento vergando o dorso, a angústia presa à solidão triste e decadente de uma face velha e enrugada, a desesperança perdida no fundo dos olhos encovados, o brilho perdido na distância percorrida sem o apoio de um bastão. As civilizações modernas e solidárias, as guerras que alastram e os lucros que geram, a proclamação dos direitos do homem e da criança, uns e outros caídos mortos pela berma dos dias, à míngua de alimento e de um só gesto de humanidade.


Num ápice, o gume mortal de um ano que se festeja, champanhe de Reims em cristais de origem impronunciável, os mesmos direitos do homem e da criança, vasculhando os dejectos das mesas dos ditos mais favorecidos, à procura de um resto de alimento que lhes dê vida por mais um dia, apenas um dia de cada vez, sem paredes onde se pendurem calendários e onde os relógios de luxo presos ao pulso sejam apenas adornos desconhecidos,  estranhos e inúteis.

Há um rio de sangue que me corre pelo peito, que me sufoca, que me deixa secas todas as lágrimas tristes e silenciosas que não são mais nem rio, nem estuário, nem delta, nem do Okavango que, imenso, se perde conformado e silencioso sobre as areias do deserto que é a África inteira. Tanta gente que não teve berço nem sapatos, que não tem um pataco diário para sobreviver, que não teve um livro e um destino. E que sucumbe ao golpe letal do punhal implacável que são as doze badaladas da meia noite e uma dúzia de simbólicas passas de uva para dar sorte a quem volteia nos salões de  dança ao som de sucessos efémeros e vazios.


O Natal são dois dias, o Ano Novo são todos os outros. São nenhuns!