19 de abril de 2015

Quando choveu sobre o domingo

Quando choveu sobre o domingo ficaram desertos todos os adros das igrejas e soube-se que a primavera não ficaria tempo suficiente para abraçar os dias luminosos de setembro, olhando o rio do alto do promontório granítico onde a urze se fez nome de homem e escreveu silêncio com todas as letras que tem o abecedário, com os olhos serenos navegando até à dignidade final do estuário da foz.

A meio da eucaristia o sacerdote celebrante pensou tratar-se de uma invasão prematura de peregrinos, chegados de repente, de todos os lados e por todos os meios e, discretamente, do fundo dos óculos grossos de uma forte miopia, piscou um olho cúmplice ao santo pousado ao lado do altar-mor, carregando o menino ao colo, como se fosse Santo António em noite de vinho e sardinha assada, que não teve mais do que um olhar vago e modesto, sem interpretação e sem entusiasmo.

Para lá da chuva e da distância que nos separa de setembro, peregrinos de verdade, arrastando-se de joelhos sobre a pedra lisa, escorrendo sangue, suor e lágrimas e expiando pecados que se acolhem à sombra das azinheiras, seguram entre os dedos terços de madrepérola e imaginam caminhos seculares que levam a Santiago e que confluem na praça única de obradoiro, a quieta imponência da velha catedral debruçada sobre o lajedo gasto de tantos passos em volta, à procura do segredo.

E tu ali no centro, indiferente à chuva, ao frio e ao silêncio, um vestido de tule que te deixa ver o corpo todo e a alma inteira, estendendo-me o olhar macio, cansado de muitos percursos, todos os desejos para além das pupilas de outras latitudes e a certeza de que o amor nasce em todas as épocas e em todas as praças. E fico-te com o olhar assim, ao colo, peregrina de todos os caminhos, mulher de todos os destinos, fé e esperança de todos os domingos, como se não houvesse chuva e tu toda fosses aquela luz mágica de todos os dias de todos os setembros.


9 de abril de 2015

Conversar com Deus

Agora seria o meu momento para conversar com Deus, uma única vez. Não para Lhe pedir nada, não para Lhe dar nada, mesmo que eu precise de tudo e Ele não precise de nada. Mas, chegado à minha idade, à minha condição e ao meu estado, e a este beco insalubre e triste em que a vida – e a vida são as pessoas e as circunstâncias que elas próprias criam! – me encurralou, seria bom que, como diz Mário de Carvalho, trocássemos algumas ideias sobre o assunto.

Não posso compreender nem aceitar nenhum Deus, de oriente a ocidente, de norte a sul, de Mercúrio a Plutão, em todo o espaço cósmico, conhecido ou não, que acima de todas as coisas, se preocupe com o bem do seu numeroso rebanho, seja omnisciente, omnipresente e omnipotente e, passivamente, assista e permita que os elementos desse rebanho se enganem, se atropelem, se traiam, se roubem e se matem livremente e sem oposição, como discípulos de um qualquer deus menor e desprezível.

Gostaria muito de poder interpelá-Lo sobre algumas questões essenciais e elementares. Porque não me pesa a consciência de ter feito tantos e tão grandes males que possam justificar a desconsideração, a ignorância e a hostilização com que cada vez mais sou contemplado e sinta cada dia como o verdadeiro inferno com que se ameaçam os pecadores e se assustam as criancinhas. Não tenho sete palmos de terra onde cair morto. Não vivi e não vivo à custa de ninguém. E procurei ajudar os outros, solidariamente, fossem quem fossem, para além de todos e quaisquer laços que nos unissem.

E, se assim tem sido, se assim continua a ser, será que não terei, ao menos, direito aos meus sete palmos de terra? Sem lamentos, sem dor, sem lágrimas e sem flores de ninguém?


4 de abril de 2015

Salgueiro Maia - Morreu há 23 anos.

E diz a Wikipédia, um instrumento de que me socorro, e que merece pouco mais do que a confiança que merece o governo, que foi um militar português. Como o foi uma coisa inenarrável como Américo Tomás, um Mouzinho da Silveira, um qualquer angolano de pé descalço e eu próprio, a quem, aos 21 anos, este país onde chafurdo, começou por roubar mais de 40 meses de vida, em defesa de uma coisa tonta, nascida na aldeia do Vimieiro, em Santa Comba Dão, e que se queria que fosse do Minho a Timor.

Não foi, como se sabe, nem de Melgaço a Monção, sempre pela beira rio, a Espanha seguindo-nos os passos na outra margem. E eu tive, por mim, a felicidade de não ter morto ninguém, não ter disparado um tiro contra ninguém, nunca sequer ter apontado uma arma a nada ou a ninguém. Nem a um cão vadio que desse ainda maior escuridão às noites de patrulha, ao redor do capim com mais de dois metros de altura.

Figurativamente, Salgueiro Maia​, foi ídolo a 25 de Abril de 1974, esquecido a 26, desprezado a 27, abandonado na doença e desconhecido hoje, em que já não é preciso odiá-lo e não pode constituir ameaça para nenhuma vocação patriótica. Apenas porque foi um homem que acreditou que se pode ser melhor e mais solidário, pensar em melhores condições de vida para os outros, e tudo isso carregando uma arma ligeira com um cravo vermelho espetado no cano e deixando ouvir o sonho que António Gedeão nos deixou, para comandar a vida, na voz insubmissa de Manuel Freire.

Não te mereceu o país que tiveste, Fernando José Salgueiro Maia. O mesmo que te recusou o prato de sopa quando esperaste que te pudesse, ao menos, dar o inventado euro que ela custa numa qualquer tasca do Cais do Sodré ou do Intendente. É disso que tenho vergonha, é disso que tenho nojo. E é por isso que aqui deixo estas linhas e me curvo, perante a tua memória, em frente a uma lápide simples e humilde, cravada num muro em Castelo de Vide!

3 de abril de 2015

Sobretudo de girassonde

Lá está ele, o morto, espartilhado dentro de um sobretudo de pinho tratado, cheirando a verniz e brilhando de castanho escuro, como se fosse de pura caxemira inglesa produzida nas fábricas dos arredores de Manchester. Aperaltaram-no para a função e para a viagem, última e demorada, de alguns quinhentos metros, com uma missa pelo meio e as lágrimas fartas das carpideiras importadas das terras de África. Onde, apesar do calor tropical, os sobretudos têm a nobreza exótica do girassonde e incorporada a resistência perpétua ao caruncho e a quaisquer outras bichezas da madeira e de outros materiais.

Calça sapatos novos de verniz, com a sola virgem e as biqueiras a apertarem-lhe os dedos e os joanetes, que já não sente, como não sente mais nada. Gente previdente teria tido o cuidado básico de lhe aparar as unhas e de evitar que as mesmas pudessem romper o algodão preto das meias novas que lhe calçaram para o repouso eterno, esticado e hirto. Vestiram-lhe o melhor fato, dos dois que tinha para as cerimónias de despedida a que, de quando em vez, era chamado e para os baptizados raros, das poucas criancinhas de quem já não conhecia os pais, separados pelo rio de águas turvas e revoltas que persiste em correr para a nascente, Mondego e Serra da Estrela. A Figueira da Foz reservada para os espectáculos e para os jogos de casino, a praia para o sol fugidio e ventoso de verão, sem acasalamentos.

O pescoço pendurado no nó torto da única gravata preta que se escondia nos recantos sempre desconhecidos do roupeiro, de cuja desarrumação resultou, roída pela traça e amarrotada pelo tempo, como se fosse vida que ainda sobrasse e que já não sobra. Uma camisa branca que lhe deve ter servido para a comunhão e para o casamento, duas fatalidades e um só destino, de colarinho apertado e com falta de botões nos punhos gastos, uma camisola interior de meia manga, cardada por dentro, por causa dos rigores da invernia e do excesso de humidade que sempre resulta das noites longas de janeiro que se entranham terra dentro.


Por baixo a roupa tradicional e necessária para quem viaja para Neptuno, agora que Plutão foi saneado da colecção oficial de planetas, onde se imagina um frio de rachar, mesmo que seja agosto nas planícies da Andaluzia. Umas cuecas com carcela, um botão a meio, cuidadosamente deixado aberto não vá haver qualquer aperto a meio do caminho e seja preciso abrigar-se atrás de qualquer moita, à conta de qualquer imprevista e ainda humana necessidade. E as ceroulas, de um branco imaculado, depois da cora de três dias ao sol, cardadas por dentro e com atilhos de apertar nos tornozelos. Pronto para a partida, sem bilhete de regresso e sem greve dos comboios.