23 de dezembro de 2006

Natal

Venho aqui hoje, também eu, por causa do Natal. Não para desejar a todos um santo Natal como fazem os políticos, sejam praticantes, abstémios ou ateus. Tão pouco para referir a vulgaridade sem imaginação de que Natal é hoje, é amanhã, é sempre que um homem quiser. Mas para sugerir que paremos por um minuto e olhemos à volta. Contemplemos esta estranha espécie humana a que pertencemos e atentemos na hipocrisia das normas por que se rege e a que elevadamente chama civilização.

De norte a sul deste insignificante país há pessoas sem abrigo que dormem e sucubem de estômago desprotegido, aconchegadas nas portadas pelos zero graus dos termómetros. Oferece-se-lhes um prato de couves cozidas, frias e chocas, uma ponta de bacalhau daquele que não passou no crivo da escolha e diz-se-lhes que é Natal. O presidente da Câmara salvará a paróquia e a pátria negando uma tolerância de ponto aos seus funcionários, botará um discurso vazio que ninguém entenderá, enquanto as couves se aprontam para o lixo, e admitirá no dia seguinte mais trinta assessores da sua confiança política com direito a carro de serviço e a cartão de crédito.

O Iraque, por enquanto, ignorará o Natal mas celebrará a libertação e a paz que George Bush, incorrigível altruísta, fez questão de lhe impôr pela força, à custa de muitas mortes e astronómicas pilhas de dólares. Felizes e libertas as crianças continuarão morrendo descalças pelas ruas, apedrejando blindados e invocando o profeta. O petróleo, viscoso e negro, jorrará de jazidas a 600 metros de profundidade, com o jacto mais virado a Washington, por força das eleições livres e da democracia.

Em Luanda, mais que primeiro ministro português e menos que arrependido militante da extrema esquerda, Durão Barroso poderá observar a felicidade dos meninos da rua, catando o lixo putrefacto das lixeiras, sob os lustres que iluminam a valsa vienense e o espírito democrático do estalinista Zédu, enquanto a filha deste se embala nos braços do marido recente, subjugado pela paixão fulminante e pelo peso indeterminado da camanga.

Jovem herdeiro de uma fortuna que nunca existiu, aos 80 anos, Fidel Castro beijará o anel do representante de Pedro e acreditará para sempre nos malefícios que moram a 180 milhas e nos benefícios dos puros charutos havanos que nenhum ocidental nababo foi capaz de recusar, deixando algumas beatas para os ricos da Europa e para a memória do argentino Che.

E depois, de todas as varandas hipócritas do mundo se exibirá o Menino Jesus e se cantarão loas inúteis à esmola desinteressada de quem a chorará durante um ano. Sob as mesmas arcadas do prédio da baixa onde morei tantos anos, o meu amigo Francisco não irá ao banquete das couves, tresandará a miséria e a mijo, adormecerá no meio dos mesmos cartões rasgados e sebentos, terá por objectivo apenas o dinheiro com que no dia imediato comprará as cervejas necessárias à sua subsistência e à manutenção do seu estatuto de deserdado da vida.

O Natal nem sequer é uma farsa. O Natal é uma oportunidade de marketing explorada pelos mesmos alquimistas que constroem o orçamento do estado!