30 de setembro de 2012

Tratado sobre a ignorância


Com todo o respeito que me merecem todas as coisas, mesmo as mais obtusas, o senhor António Borges é uma coisa. Uma coisa esquisita, género aventesma, que há anos se pavoneia por aí, ao serviço do FMI e da Goldman Sachs, flutuando sempre nas bermas do poder político, exibindo uma bandeira desfraldada de oportunismo sem regras e sem escrúpulos, desde que cheire a tachos por lavar ou a dólares já lavados, e ser assim um género de Relvas com curso. Nunca assumiu responsabilidades públicas, não se lhe conhecem ideias e nunca se lhe viu obra. Diz quem sabe que nunca trabalhou, não sabe o que é pagar salários, que não sabe o que diz – uma vulgaridade, aliás! - e que é um defensor convicto do aperto do cinto dos outros, especialmente dos previlegiados que esbanjam em telemóveis de última geração parte da fartura do sálario mínimo que, generosamente, lhes pagam.

Com a mesma superior e indiscutível competência propõe a venda da Caixa Geral de Depósitos e o aprovisionamento da secção de legumes do Pingo Doce, com exceção dos tomates. Nos negócios da saúde, de que também sabe tanto como o mais celebrado neurocirurgião, vende em nome do país, compra em nome do grupo Jerónimo Martins e financia a operação em nome da alta finança. Com a tripla vantagem de arrecadar uns patacos num qualquer “offshore” onde os impostos não existam ou apenas incidam sobre a tanga do desafogado indígena a quem sobram o sol e as águas mornas de um mar sem calemas.

Por este fim fim de semana, a fim de combater a crise, saborear uns salgadinhos e dar ocupação aos necessitados hoteis de cinco estrelas, reuniu-se pelos Allgarves um tal de forum empresarial para que foram convidados, também, o ministro Relvas e a aventesma Borges. O primeiro, com propriedade, ética e inatacável moral, citou Vergílio Ferreira – de que terá ouvido falar numa qualquer equivalência – e advertiu para o risco de drescédito da classe política que, com o seu exemplo e as suas patrióticas viagens a Angola, vem evitando. E continuará a evitar, enquanto vergonha e fartar vilanagem forem sinónimos nos dicionários escolares.

Borges aproveitou para apresentar o seu tratado sobre a ignorância que já desde ontem ocupa o “top” de vendas da Fnac, relegando António Damásio para o fim da lista, atrás da D. Margarida Rebelo Pinto e da D. Fátima Lopes. Tratados como ignorantes os empresários presentes lamentaram o encerramento das novas oportunidades e o fim da campanha do Magalhães. E temem matricular-se na escola do ministro sombra, que já lhes avaliou a inteligência, a classificou abaixo de cão e lhes garantiu que, com ele, nunca passarão do primeiro ano. O analfabetismo cresce de novo, os filhos temem pela ignorância dos pais, dispõem-se a ajudá-los nas primeiras letras.

Feliz do país que tem um Borges como assessor polivalente e inteligência brilhante. Porque ter dois seria uma calamidade. Se ter um já é uma tragédia!

28 de setembro de 2012

A ética


Há uns anos a esta parte a D. Teresa Guilherme, essa figura ímpar da cultura pátria e da casa dos segredos, inquirida sobre a ética, respondeu do alto prestígio do seu pedestal, combinando a erudição com a exuberância do vernáculo, mais ou menos o seguinte: quem tem ética está fodido! A afirmação terá feito corar de inveja o professor Eduardo Lourenço e mexido com os restos mortais de Agostinho da Silva. E adivinha-se que na Sé de Coimbra, D. Afonso Henriques terá ameaçado sair do túmulo, mesmo sem licença de exumação, para lhe declarar o seu apoio e expressar o seu reconhecimento por, passados tantos anos, alguém finalmente lhe ter feito justiça.

De facto tivesse ele, filho de conde e pretendente a rei, tido alguma ética em Arcos de Valdevez e ter-se-ia curvado perante a mãe, mostrado mais o cu e fodido a nacionalidade. Em vez disso levantou-lhe a mão, encerrou-a numa masmorra e foi-se por domínios serracenos abaixo, conquistando, subjugando, pilhando e expandindo a fé e o império que nascia. Alguém por ele, seguindo o axioma da D. Teresa Guilherme, o tentaria muito mais tarde. Mas, mesmo com tudo o que de mal lhes atribuem, nem os espanhóis Filipes o conseguiram em sessenta anos de persistentes tentativas.


E só, finalmente, nos dias que correm, os empresários e o senhor António Mexia, a tal de troica e os seus empréstimos concedidos a taxas de juro de agiota e ainda o governo com sede em Massamá e o senhor António Borges, se convertem aos incontornáveis princípios da ética. Antes deles, por experiência e aturado estudo, só o ministro Relvas descobrira a ética em África, pela mão da D. Isabel dos Santos, que vai comprando o país aos retalhos enquanto ele, lidos os manuais da D. Paula Bobone, lhe beija a mão, submisso, reverente e obrigado. E sonha com a alquimia que permite à senhora transformar em dinheiro toda a fome que mata crianças de Cabinda ao Cunene, e em merda toda a riqueza que jorra dos poços de petróleo do país, sejam eles “offshore” ou não.

Nesta linha evolutiva que nos há-de levar ao céu e de visita a Belém num qualquer dia 10 de junho, o país dispõe de um conselho nacional para as ciências da vida, com direito a CNECV como sigla e a Miguel Oliveira da Silva como presidente. E este, claro e eticamente, com direito a automóvel topo de gama, motorista fardado, ajudas de custo, cartão de crédito e subsídios de férias e Natal para poder ir à terra, algures numa praia do oriente, onde as águas sejam tépidas e as tartarugas para os passeios incluídas nos serviços, sem aumento de preço. E, com coragem e valentia, acaba finalmente decretado o racionamento ético de vários fármacos mais caros. Mas um racionamento implicíto, note-se bem, por palavras passadas de boca em boca às esquinas dos corredores e nos bares onde se saboreia a bica. O decreto virá a seguir, linear e transparente, explícito e sem subterfúgios: a favor do orçamento, mate-se, que o medicamento é caro e a doença é oncológica.

Mas, por favor, senhor ministro da saúde, com o sem simulação numa qualquer folha de Excel: tenha presente que este governo é um cancro!

25 de setembro de 2012

Madrid – 25 de Setembro


A repressão e a violência nunca foram indício da força da razão. A manifestação de hoje em Madrid que, por detrás de barreiras de proteção, cercou o parlamento, deu origem a cargas policiais violentas. A repressão violenta faz nos lembrar épocas não muito distantes e personagens de triste memória. Tanto em Espanha como em Portugal.

Mas fica claro que há razões para levar os gregos à rua e para que, em circunstâncias idênticas, portugueses e espanhois façam o mesmo. Por um lado as medidas ditatoriais de austeridade impostas aos respetivos povos, mais do que imorais, são um autêntico esbulho. Que reduz salários por um lado e aumenta impostos por outro, a mando de amanuenses ao serviço da alta finança e da sua ganância sem limites e sem lei.


Pior do que isso, sem que se alcancem os objetivos previstos. A dívida pública atinge valores que nunca tocou, o consumo decresce, as receitas fiscais caem. O desemprego continua a aumentar, a crise é invocada em vão e as razões que lhe estão subjacentes nem ao de leve são referidas. Os responsáveis são conhecidos mas não se vai esperar que se denunciem. E não se vê nenhum caminho de retorno. Nem sequer nas simulações com que o ministro das finanças se vai entretendo, utilizando uma folha de cálculo. Quando qualquer sensata dona de casa, sem recurso a novas tecnologias, chegaria a conclusões mais reais, mais objetivas e mais rápidas.

O direito à indignação foi em tempos invocado por alguém. E a indignação saiu à rua e vai voltar a fazê-lo. Talvez, coisa rara, conseguindo ser um factor de aglutinação dos novos descamisados da Europa e esta, finalmente, mostra-se nas ruas. Quando se desmembra na ostentação dos gabinetes e nas casas fortes da banca.

24 de setembro de 2012

15 de setembro de 2012


As manifestações voltaram às páginas dos jornais e aos noticiários das rádios e das televisões. De forma abreviada e depreciativa um jornal perguntava-se, ontem ou hoje, se as “manifs” tinham voltado para ficar. Até há pouco tempo acreditei, e acredito, que muita coisa é escrita por simples ignorância. Exceto quando é o senhor Pulido Valente a escrever, do alto da sua cátedra, empunhando a sua caneta Montblanc que, se calhar, também foi o contribuinte pobre a pagar. Ou do seu canto no Gambrinus, com uma garrafa de uisque de 20 anos a decorar-lhe a mesa, enquanto a cozinha lhe apronta o bife, convenientemente inscrito na lista com um condizente e estapafúrdio nome francês.


Hoje acredito também que a par da ignorância está a má fé, o propósito ilícito, o desígnio cavernoso, cada vez mais a intenção criminosa. Cada vez mais também, somos governados por uma ditadura feroz que obedece a ordens da alta finança externa, porque a interna não ultrapassa, a esse nível, a dimensão dos trocos. Desde a revolução dos cravos – como se alguma vez em algum lugar uma revolução se fizesse, e triunfasse, empunhando flores! – que a degradação e o descaminho têm sido progressivos. E a desgraça acentuou-se a partir do consulado do senhor Silva que, da sua ignorada freguesia algarvia, resolveu aproveitar um fim de semana para ir fazer a rodagem de um automóvel novinho em folha, adquirido com uma entrada de alguns trinta por cento e de talvez quatro dúzias de prestações mensais.

Vimos todos no que deu. O homem acabou em primeiro-ministro esbracejando por ficar na história, mandando construir pontes, centros comerciais e exposições internacionais onde alguns mestres de obras viraram empresários de construção civil, edificaram condomínios fechados, enriqueceram e distribuiram prebendas e comissões. Para confirmação do princípio de Peter acabou em Belém, dizendo hoje uma coisa e amanhã outra, sem habilidade, sem sentido e sem vergonha. E tendo por futuro uma reforma de merda que, segundo o próprio, lhe não dará para pagar as despesas e lá terá de ser o zé povinho a pagar-lhas e a fornecer-lhe gabinete, automóvel, secretária, motorista e esquife coberto pela bandeira nacional, quando chegar a altura.

Por tudo isso e pela enciclopédia de trafulhices que continua por escrever, 15 de setembro é uma data, muito mais do que uma manifestação. É um marco porque, segundo os jornais, perto de um milhão de pessoas terá saído à rua por esse país fora. De forma espontânea, sem o enquadramento de partidos políticos, de sindicatos ou de grémios patronais. Uma manifestação não é nada por si só. O milhão na rua é uma réstea de esperança, há que fazê-lo crescer para dois, quatro, seis milhões. A esperança vem-nos da única força que nos resta: a de sairmos à rua de peito aberto e de aí nos mantermos até que o regime mude. Porque o problema não é de mudança de governo, com o que apenas se tem conseguido um governo ainda pior. E que apregoa, como este, as vantagens dos empréstimos mendigados a taxas de juro de agiota e sob tutela dos verdadeiros donos da Europa.

16 de setembro de 2012

Revolta geral


Ao princípio da tarde o calor era sufocante, o seu peso abafado parecia ir prejudicar a aproximação de pessoas e de ideias. Mas não há canícula que vergue a revolta nem sol escaldante que vença a razão. Faltava a sombra acolhedora, mas sobrava um céu azul sem nuvens, a determinação e a certeza de que, afinal, é possível.

O coração encheu a Avenida dos Aliados, de praça a praça. No sentimento espontâneo das palavras de ordem improvisadas, no sentido das lágrimas vertidas à dimensão do desespero, na natureza rudimentar dos cartazes empunhados, reclamando dignidade, um futuro para os filhos, a qualidade de homens livres para as gerações futuras.


Podem ter sido os cem mil de que falam or jornais de hoje. Mas não foi um cartão vermelho, mesmo violento, para o poder instituído. Não estava em causa uma equipa de futebol ou um árbitro, estava e está muito mais do que isso. Está o direito inalienável de participarmos na construção do nosso presente, do futuro dos nossos filhos, da esperança dos nossos netos. A começar pela definição das regras por que se deve reger a nossa vida coletiva.

Muitos dos nossos direitos não podem ser delegados, ninguém pode ter competência para nos representar e definir, em proveito próprio, as regras e a eternização dessa representação. Para continuarmos a assistir à pouca vergonha e à falta de decoro que a classe política exibe, perfeitamente consciente da impunidade dos seus erros, negligentes ou dolosos. A mudança de governo é um simples meio, mas não é um fim em si própria. O fim é a mudança de regime, a alteração das normas apenas definidas por quem vai a jogo, a participação vinculativa nas decisões de maior impacto e de mais ampla abrangência.

Não fomos ouvidos sobre a adesão do país à União Europeia. Não fomos consultados sobre a inclusão de Portugal na zona monetária do euro. Se o tivessemos sido, provavelmente ontem à tarde as ruas das cidades não teriam transbordado de gente carregando a revolta e o desespero. Tal como transbordaram!

14 de setembro de 2012

Santana Lopes, o homem orquestra


Naquilo que é público Pedro Santa Lopes é homem de múltiplas competências e inúmeras mulheres. Para além de ser figura destacada do “jet set” da linha do Estoril e dos Olivais. A sua sabedoria suplanta todas as páginas da mais completa enciclopédia, incluindo o índice e a bibliografia. Bem como a capacidade do disco rígido de maior volume. É íntimo das mais conhecidas celebridades, desde Lili Caneças e José Castelo Branco aos diversos concorrentes da Casa dos Segredos e programas culturais semelhantes.

Mais do que a troika e o ainda governo do senhor Coelho mandam hoje, ele é polivalente desde sempre. O que injustamente chegou a ser pretexto para lhe inventarem promiscuidades diversas e outras badalhoquices. Houve quem não entendesse como legítima e transparente a relação entre as virtualidades do futebol nacional e o cargo de primeiro-ministro. Sendo que o primeiro continua a ter como referência um conhecido militar na reforma que levou um histórico clube do Porto a envergar as faixas de campeão e a descer ao nível dos simpáticos e respeitáveis Passarinhos da Ribeira. E, quanto ao segundo, lucidamente Pedro quase tinha tempo, e dinheiro do contribuinte, para fazer de São Bento uma casa de meninas que, aliás, tem sido desde sempre frequentado pelos respetivos filhos.

Ainda estão por inventar os instrumentos indicados para lhe avaliar as capacidades de trabalho, mesmo que ele próprio assegure que os seus dias têm apenas 24 horas e que os anos bissextos ocorrem quando se disputam os jogos olímpicos. Nem se sabe mesmo se um piloto de automóveis nas horas vagas, de arcaico apelido Paes, lhe levará a dianteira nas dezenas de empresas que sábia e superiormente administra. De facto Santana é advogado, sabe onde é o Campus da Justiça e o tribunal da porcalhota, ouviu falar no código civil e no processo da Casa Pia, apenas tem cobrado menores honorários do que o seu amigo Duarte Lima. Com a mesma competência foi presidente do Sporting, o ajudou a atingir o desafogo financeiro que hoje se lhe conhece e regularmente foi colunista remunerado do jornal A Bola. Enquanto visitava o balneário, dava palmadas nas costas dos jogadores, excluindo Sá Pinto, e insultava os árbitros. Porque um homem pode ser educado e respeitador, mas não é de pau!

Como actual provedor da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, cargo para que foi nomeado por exames idênticos aos que levaram Relvas a ministro, acumula com um programa num canal privado de televisão. Onde um dia destes se “passou” com Fernando Rosas. Porque um homem pode ser educado e respeitador, mas não é de pau!

11 de setembro de 2012

Senhor dos Passos


Não sei que circunstância aziaga me levou à sua página do Facebook, uma dita rede social que fez de um garoto americano um multimilionário e onde se promovem novas amizades, encontros fortuitos, se consumam engates, se criam relações virtuais, se publica poesia de inspiração divina, se revelam escritores sem obra, se bajula quem interessa e se insulta impunemente quem calha. E, pior do que isso, se acolhem políticos tontos, incapazes, incompetentes e mal intencionados que, como diz o povo, dão o cu e oito tostões por duas linhas de propaganda e pela perspetiva de um voto que seja, mesmo para qualquer junta de freguesia ainda por extinguir.

Mas acrescente-se, em abono da verdade, que num país onde um Sócrates ou um Passos chegam a chefes do gabinete, um Relvas se licencia por equivalência e é ministro sem ela, um Álvaro descobre o caminho marítimo para o Terreiro do Paço e um Gaspar abandona o traje de fantasminha simpático para usar fato e gravata, tudo realmente é de esperar. Menos a verdade, menos a transparência, menos a clareza de intenções e de propósitos. Menos a justiça, que até tem também uma ministra, um procurador e meia dúzia de tribunais onde os processos são antiguidades.


Vejo que V. Exa. opta desde logo por um tratamento informal, tu cá, tu lá, como se todos fossemos vizinhos em Massamá, passassemos as tardes no mesmo centro comercial ou tivessemos frequentado juntos as novas oportunidades, ao menos nas aulas dos domingos depois da missa. Amigos? Por acaso sabe V. Exa. o que são amigos? Consultou um dicionário, esclareceu-se com um antigo professor primário, perguntou a qualquer um dos sem abrigo que habitam as noites dos portais das lojas da baixa? Eu não o conheço de lado nenhum, não me rebaixo a tratá-lo por amigo. Nunca me sentei consigo à mesa do café, ou das febras de porco em período eleitoral, não lhe permito essa liberdade. Fico-me pelos sem abrigo, são outra gente. Partilham a sopa, o pão duro, o vinho, o charro e a noite. São solidários, riem-se com a desgraça, pegam a miséria pelos cornos, rabejam a puta da vida.

O resto não é texto que se leia, vemos a saudação de “amigos” e ficamo-nos por Peniche onde, hoje, nem há condições de alojamento para tanta gente que tem povoado as quadrilhas a que o professor Marcelo vai chamando governos. Informar os portugueses? Quais portugueses? Os que deixaram de fazer parte dos vivos e dos quais não resta mais do que a memória, quase sempre curta? Com uma equipa de assessores bem pagos, com direito a subsídios de férias e de Natal, automóvel de gama alta, motorista fardado, ajudas de custo e futura reciclagem num cargo bem remunerado de um grupo económico, não havia um, ao menos um, que fosse capaz de escrever português sem subterfúgios, sem esquivas, sem metafísica de baixo nível? A falta que por aí faz o Fernando António Nogueira Pessoa e a sua linguagem básica da correspondência comercial, mesmo avinhada nas tabernas do José Maria da Fonseca. Mesmo em flagrante de litro.

Mas há sempre alternativas para isso, excluindo as medidas esclavagistas a que os ignorantes assessores chamam “pedidos” e “sacrifícios”. Por isso mesmo fica V. Exa. convidado, conjuntamente com todo o gabinete, a descer da Penaventosa à Ribeira, a contar os degraus das escadas dos Guindais, do Codeçal ou das Virtudes. Sem a proteção de gorilas ou da polícia de choque. Para ouvir e aprender o português objetivo, autêntico e ancestral Enquanto isso posso garantir-lhe que lhe vou encomendar o canastro à igreja dos Grilos, antes de descer em ombros a Rua Escura. E vou de terço na mão, mesmo não sendo devoto. Nem de grilos nem de cigarras!

10 de setembro de 2012

Manifesto

Face à indescritível situação que atravessam, o povo e o país não precisam nem de palavras nem de manifestos. Mas precisam ambos, urgentemente, de tomar consciência da gravidade dos dias que correm e da definitiva falência do regime político em que cada vez mais chafurdamos. No tempo de uma anterior ditadura, que proclamava que Portugal era uno e indivisível do Minho a Timor, o país roubou-me, a mim e a muitos outros, alguns quatro anos de vida. Em defesa da Pátria, ensinavam os professores nas escolas e sentenciavam os párocos do púlpito abaixo. Como se isso existisse, como se isso fosse alguma coisa.

Apenas porque, na década de cinquenta, António Salazar não foi capaz de ver mais do que um poder pessoal obsessivo e a forma ditatorial de o manter e, se possível, consolidar. Não lhe sobrou uma pequena réstea de visão política que, pelo menos, o alinhasse com os ventos da história. Como se sabe, ou como devia ensinar-se, ele e o regime cairam da cadeira, ambos velhos e decrépitos. Caetano, apesar dos anos que ocupou a cadeira do poder, de facto não existiu. Foi apenas uma excrecência do que já vinha da década de vinte, um lavar de cestos, um canto de cisne.

Abril de 1974 acabou, assim, por não ter sido sequer uma revolução. Uma chaimite na rua fez desmoronar o que ainda restava do regime. As coisas foram tão simples, tornaram-se tão fáceis, que um grupo de capitães acabou por deslumbrar-se e, sem experiência, ir acreditando nos profissionais da política que foram surgindo no palco, impulsionados pela ambição do poder pessoal, das mordomias de estado, do dinheiro fácil e a rodos. Até ser completamente varrido do expetro político, vilipendiado, desacreditado, deliberadamente esquecido.

E Portugal integrou-se naquilo que aprendemos ser um continente e hoje é referido como se fosse um país: a Europa. A Europa é, em boa verdade, um espaço geográfico que a Alemanha, no século passado, tentou dorminar pela força duas vezes. E que, quase no virar do século, acabou por dominar à força do dinheiro e do poder crescente da alta finança. A Europa é uma manta de retalhos, cada um deles travestido de democracia, e gerido como uma ditadura a partir de Berlim. E neste projeto a nossa brilhante classe política foi soterrando a esperança da nossa geração, o futuro dos nossos filhos, a existência como homens livres da geração dos nossos netos.

A economia virtual e a ganância de um vale tudo a que chamaram neoliberalismo, conduziram ao que, eufesmisticamente, se vai chamando crise e que, progressivamente, vai subjugando gerações. Definitivamente este regime democrático faliu e ninguém o diz. O país é tutelado por amanuenses e dominado por agiotas que exploram o juro e unilateralmente fixam as taxas de juro. Nada mais será recuperado com palavras e, menos ainda, com atitudes passivas deste povo sem emprego e sem futuro. Mas vestindo calças de ganga de marca e utilizando telemóveis de última geração.

É preciso apelar à consciência coletiva, à desobediência e à insurreição. A todos os níveis, em todos os momentos e em todos os locais. Em nome de uma réstea de esperança para a geração dos nossos filhos. Em nome de uma maior centelha de futuro para a geração dos nossos netos!

9 de setembro de 2012

Cinco anos


Durante cinco anos minha Mãe! Dia a dia, mês a mês, ano a ano. Não sei dizer-te como mas, arrastando-me, aqui cheguei. Na data e à hora exata, como se alguém ou alguma coisa pudesse impedi-lo. Sabes que aqui estaria sempre, mais triste, mais só, mais dilacerado pelas lágrimas que se me secam nos olhos, olhando-te calado como se sorvesse cada uma das palavras que não dizes. Não é preciso lembrar-me de nada, todas as recordações vivem comigo. Uma eternidade de cinco anos depois, como se fosse apenas meia hora que tivesse passado. Nunca vou perder-te, recuso-me. E não vou responder-te nada, basta que sintas o silêncio dolorido que te verto no regaço para que me entendas. Vejo-o no sorriso juvenil que salta da moldura onde estás refém de uma fotografia que espalhei por cada canto desiludido dos meus dias.


Só sei que me vens mirrando, e calo-me. Doce e tranquila como sempre foste e como te ensinou a vida amarga que te levou pelos primeiros carreiros da infância. Começou por se te mirrar o corpo, ao peso excessivo dos anos e da diabetes. Depois mirrou-se-te a memória recente, por força de uma Mãe tua, frágil, determinada e vertical. Deixando exemplos que o país não aprendeu e um trajeto que vem passando de geração em geração. A veneração que lhe dedicavas, o cuidado preocupado com que me perguntavas por ela, uma santa. E ela à sombra de um cipreste, o único, que a junta mandou abater, sem que houvesse outras sombras em volta. Como continua a não haver, nem de sobro que fosse.

Depois mirrou-se-te a consciência, o que mais me doi, ao peso da idade e da arterioesclerose. Começaste a mirar-me, silenciosa, recriminando-me pelas ausências longas. Que não davam tempo ao ponteiro dos minutos para que desse a volta ao mostrador do relógio que guardo no meu peito. Alternaste o sorriso breve com o choro silencioso. Sem palavras e sem lamentos. Sei de cor todas as palavras, não precisas de mas dizer, soltam-se-me as lágrimas só de as evocar. Mas não sei de nenhum lamento, nunca to ouvi, não posso recordá-lo.

E pergunto-me, minha Mãe, como é possível que nunca te tenha ouvido uma queixa, um lamento, um desabafo. E continue a não to ouvir passados que são estes cinco anos em que se te mirrou ainda mais o corpo e a consciência. E a minha saudade se chama choro e a minha vida se chama desesperança!

1 de setembro de 2012

Há mais de cem anos


Falo-te daqui, deste lugar quase ermo, à distância imensa de mais de cem anos, onde nasceu o futuro de tantas pessoas que ambos amamos e que o passado se foi encarregando de soterrar. Há a mesma estrada estreita que sobe, o barranco ingreme à esquerda, as ruínas do que foi uma casinha pobre à direita, meia dúzia de árvores em volta, a chada entregue à erva daninha. Estão abandonadas as ruínas, as oliveiras e a pequena vinha de que já ninguém cuida. O pouco chão arável está de pousio, ninguém mais lá mora para fazer horta, o milho que dava o pão que o diabo amassava deixou de ser semeado. Antigamente, no inverno, a estrada era um caminho que descia por entre lamaçais até ao povoado, onde se atolavam pessoas e animais. Os moínhos que recebiam o grão e o moiam foram abandonados, as ribeiras secaram, o pão de trigo vende-se em qualquer lado. Assim haja dinheiro, que vai faltando, para o comprar.

Tudo o que conheceste ficou enterrado sob os anos longos que te levaram também. Nada é o mesmo e não ficou ninguém para contar o que aconteceu. A escola desceu pelo monte abaixo, deram-lhe uma casa nova, está ao abandono por falta de crianças que a frequentem. Há camionetas que fazem num quarto de hora os caminhos que percorreste a pé, tantas e tantas vezes, a caminho da aldeia, como lhe chamavas. Foram elas que levaram todos os professores e toda a gente nova que enjeitou a lavoura e a enxada, à procura de melhor sítio e de melhor vida. Isto aqui é terra ruim, como Valgato, que não sei onde fica, nem já há Manuel da Fonseca que mo possa dizer e a tua memória não sabe quem é.

Até a igreja, a que tanto deste da tua vida, acreditando que isso daria melhor futuro aos teus numerosos filhos, tão cedo orfãos de pai e tu viúva. Onde tanto entraste, carregando a pobreza extrema na fragilidade da tua figura franzina, expondo uma dignidade sem fronteiras no teu porte sublime e discreto, sempre respeitada. Sim, até a igreja teve casa nova e ameaçou ruir durante anos. Por vontade do padre teria sido demolida e, coisa estranha num povo velho e sem saber ler, foi este que se opôs à ideia peregrina e santa, e não deixou. E que se tem empenhado em salvar o que ainda o pode ser, reedificando paredes, dando-lhes duas mãos de cal nova, consertando portas e janelas, chorando os frescos do tecto que vieram abaixo com o púlpito de onde se pregavam todos os sermões. E à frente da qual, pelo primeiro fim de semana de setembro, se celebra sempre a Festa Grande, com os mesmos enfeites, simples, em papel de seda, a quermesse, e se vendem os mesmos bolos ancestrais que os tempos ameaçam.

Do Carvalho da Bola apenas resta o local que já se esqueceu do nome. O próprio cemitério se mudou, e disso ainda te deves recordar. Nele moras há mais de cinquenta anos, a um canto que um cipreste protegia do sol e dos ventos desabridos dos invernos longos, frios e chuvosos. Agora há apenas um arbusto invasivo que plantaram na casa em frente, e que explode a cada verão, abraçando tudo, espaços, caminhos, pedras. Este verão fui-me à aldeia e voltei empunhando uma tesoura de poda. Atirei-me a ele, dei-lhe uma derrota mestra, abri-te de novo o horizonte com que vives: um céu azul aqui e ali pintalgado pelo branco de nuvens esparsas, como farrapos de algodão. Que este céu sem limites te proteja, à falta da sombra esguia do cipreste!