30 de novembro de 2022

Faz hoje anos que morreste

 

Faz hoje anos que morreste

cansado do desassossego

e encharcado em bagaço

sem adivinhares o que te reservava o dia seguinte

e sem esperares para sabê-lo.

 

Depois foste sendo descoberto

todo feito em bocados

no interior de uma arca

em que tinhas arquivado a vida dia a dia

carregada de dúvidas e inquietações

e recolheram-te os restos nos claustros de um mosteiro

com vista frontal para o rio

mas longe do Abel

onde ias encostar ao balcão o fato coçado

no ápice em que bebias o copo do costume

de um fôlego e sem palavras.

 

Pouco a pouco foi-se-te conhecendo a herança

na desordem do amontoado de retalhos

em que deixaste as noites sem sono e o catarro

até àquele último dia de Novembro

naquela cama do hospital dos franceses.

 


29 de novembro de 2022

Ideias para uma redacção sem tema

 

Se queres escrever, escreve. Falta-te um tema, um assunto, uma história? Escreve! Escreve ao sabor das ideias que te surjam, mas escreve. E escreve simples e fácil. A escrita é uma forma de comunicação e só se comunica aquilo que os outros entendem. Escreve com correcção, respeita a tua língua, porque é ela que te permite comunicar com os outros. Procura as palavras, cada uma delas tem um sentido preciso, um enquadramento rigoroso. Não utilizes dicionários de sinónimos, não procures palavras difíceis, não qualifiques cada coisa. Evita o adorno dos adjectivos, modera-lhes o uso. Não te preocupes com as metáforas de que ouviste falar e que podem dar brilho ao texto. Elas hão-de ocorrer quando ocorrerem, com naturalidade, ao ritmo do transporte das ideias para o papel. Sim, papel, porque eu uso uma folha de bom papel e o aparo de uma boa caneta de tinta permanente. Sorris? Então experimenta. Descobre o prazer único da escrita à mão, utilizando um bom papel e uma boa caneta. Depois diz-me.

Revê o que escreveste, sê cuidadoso, não te dês por satisfeito. À menor dúvida, socorre-te do dicionário, uma edição escolar basta. Não facilites, todos temos sempre uma hesitação ou um descuido e os dicionários existem para isso, para nos acudirem e para nos salvarem. Revê a pontuação, com calma e com rigor. Lê para ti o que escreveste, onde fizeres uma pausa haverá um sinal de pontuação. Com a importância que lhe quiseres dar, aquele que melhor cumpra a tua intenção de comunicares. E toma nota: nunca é desperdício releres uma vez mais. Muitos erros persistem incólumes à nossa vista e à nossa passagem, por simpatia. Regista que – e é minha a ousadia de o dizer – se o senhor Eça de Queirós fosse vivo, provavelmente ainda não teríamos uma versão final de ”Os Maias”.

E, antes de tudo, se quiseres escrever, lê. Lê muito, lê sempre, lê todos os dias. Lê o que os melhores escreveram. É com os melhores que aprendemos tudo na vida. A propósito, já leste “Os Maias”? Sim? Ótimo, então relê-os. Garanto-te que vais descobrir muita coisa nova e, com isso, aprender a melhorar os teus textos e a senti-los mais capazes de chegarem ao destino. A quem os lê.

 

 

23 de novembro de 2022

Marco Caneira, comentador da Sic

 

Quer dizer, o senhor Marco Caneira andou uma curta vida profissional às cabeçadas e aos pontapés a uma bola e eu nunca me intrometi. Mesmo que não goste de ver nada nem ninguém maltratado, mas pronto, sempre era só uma bola.

Depois as pernas começaram, a pesar-lhe um pouco mais do que se queria e o senhor Marco Caneira reformou-se. Estava no seu direito, tinha descontado para a segurança social, atribuíram-lhe uma pensão para sobreviver. Pelos vistos pequena, como sempre acontece com quem mais necessita. Mas, felizmente, está bem vivo o senhor Francisco Balsemão, que mantém em funcionamento uma estação de televisão para ajudar os pobres e contribuir para a elevação cultural do nosso povo. Vai daí, num gesto de prodigalidade, a Sic acolheu o senhor Marco Caneira como comentador de futebol, uma tarefa exigente sob todos os aspectos.



Eu não esperava que o senhor Marco Caneira ali chegasse e se afirmasse logo como o incontestado sucessor do professor Lindley Cintra ou o ocasional substituto do doutor Paulo Portas, à hora dos jantares de domingo. Mas que diabo, não era preciso exagerar tanto. A gente sempre tem o angolano Gilmário Vemba para se divertir e o senhor Ricardo Araújo Pereira para levar a sério, sem tolerar as cabeçadas no céu da boca e os pontapés na gramática. E a língua portuguesa para respeitar um pouco mais, mesmo quando se não sabe dizer nada e se fala de futebol. Com tantos frangos ainda para virar.

18 de novembro de 2022

Futebol – o mundial do Qatar

 A fase final do mundial de futebol de 2022 vai disputar-se no Qatar, entre o dia 20 deste mês e o dia 18 de Dezembro próximo, entre 32 selecções de países diferentes, uma das quais do país organizador.

Mas o que é e onde fica o Qatar? Para além de se saber que é qualquer coisa árabe, a cheirar a petróleo, alguém sabe onde é e é capaz de o apontar num mapa? Alguém sabe a dimensão geográfica que tem, as grandes cidades, as grandes figuras históricas e intelectuais, os grandes feitos? Tem água, luz eléctrica, casas de banho públicas,  televisão e telenovelas? Tem igrejas, cultos regulares e missas ao domingo, bares para beber um copo, restaurantes onde se possa comer um hambúrguer, caravanas onde se sirvam bifanas pela madrugada? E, já agora, quais as suas grandes glórias do futebol? Foram rivais de Di Stefano, Puskas, Pelé, Eusébio, Maradona? Defrontaram o Real Madrid, Benfica, Ajax de Amesterdão? E ganharam, empataram ou perderam por poucos?



O Qatar é um pequeno país de menos de três milhões de habitantes, situado numa pequena península do golfo pérsico, confrontando a sul com a Arábia Saudita e com uma superfície que é sensivelmente um oitavo da de Portugal. Dos seus habitantes pouco mais de 300.000, representando pouco mais de dez por cento da população, são nacionais, sendo emigrantes todos os restantes. Politicamente é uma monarquia absoluta, em poder da mesma família desde meados do século XIX, sendo que o actual emir ascendeu ao poder depois de ter derrubado o pai, num golpe de estado, em 1995. Monarquia, para quem não saiba, quer dizer poder hereditário. Absoluta quer dizer o rei, a que lá se dá o nome de emir, é que manda, ponto final. Os outros são para obedecer sem reclamar.

A atribuição da realização do mundial de 2022 foi objecto de larga controvérsia e contribuiu para a destituição de toda a élite de dirigentes do futebol internacional, por corrupção, entre eles os presidentes da Fifa e da Uefa, os bem conhecidos senhores Joseph Blatter e Michel Platini, mesmo que a corrupção já venha de muito mais longe.

O mundial deste ano custará muito mais do que qualquer dos anteriores e estima-se que possa mesmo exceder o custo de todos eles juntos. O Qatar foi obrigado à construção de oito estádios para alojar a competição, com capacidade para quase 400.000 pessoas, o que significa que todos os nacionais juntos não conseguem esgotar a capacidade dos estádios. E o preço acessível dos bilhetes vai de cerca de 1.000 a 5.000 euros, o que permitirá a qualquer português titular do salário mínimo assistir a um jogo, de um lugar esconso, se se abstiver de tudo durante um mês e pouco. Ou seja, deixar de comer uma bucha e vestir umas cuecas encardidas.

Preocupam-se agora alguns espíritos iluminados e vanguardistas pelo facto de se tratar de um país árabe, de ditadura implacável, que dá as boas vindas aos turistas desde que, obviamente, respeitem as leis do país. E essas leis discriminam as mulheres, diagnosticam a homossexualidade como uma doença de malucos e acham que o álcool encharca o corpo e corrompe a alma. E essa prática já era observada quando a organização foi atribuída ao Qatar e os milhares de milhões de euros começaram a encher as contas da Fifa e dos altos responsáveis pelo futebol mundial.

E vocês? Acham que tudo isso é desporto? Como todo o odioso futebol profissional que lá vai?

16 de novembro de 2022

José saramago, 100 anos

 

“Que fazemos, os que escrevemos? Nada mais que contar histórias. Contamos histórias os romancistas, contamos histórias os dramaturgos, contamos também histórias os poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e não virão a ser nunca, poetas, dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples pensar e o simples falar quotidianos são já uma história. As palavras proferidas, e as apenas pensadas, desde que nos levantamos da cama, pela manhã, até que a ela regressamos, chegada a noite, sem esquecer as do sonho e as que o sonho tentarem descrever, constituem uma história com uma coerência interna própria, continua ou fragmentada, e poderão, como tal, em qualquer momento, ser organizadas e articuladas em história escrita.”

[Último caderno de Lanzarote]



Acrescento eu, como interpreto, por minha conta e risco:

Toda a literatura é feita de histórias, tenha a forma que tiver, romance, drama, poema. E todas as histórias são construídas pela articulação de palavras simples. As que usa Saramago ou as que usamos nós todos os dias.

4 de novembro de 2022

Porque não tenho um livro?

Porque não tenho um livro?

Porque quando o quis era ainda muito cedo na vida

E não o tinha escrito

Nem tinha dinheiro para publicá-lo

Nem editor que o quisesse fazer

Além disso

Não sabia que Pessoa já estava morto

E que o mercado estava livre de concorrência

Porque a rapariga do quiosque já dobrara a esquina a comer chocolates

 

E agora?

Porque ainda não encontrei um assunto novo e original

Nem as palavras simples e exactas para contá-lo

Nem adquiri bastante conhecimento da língua para fazê-lo

Embora tenha três dicionários à cabeceira

E um prontuário ortográfico de última geração

 

Mas à época ainda não havia redes sociais

E as universidades da vida não tinham

Tão acessíveis cursos intensivos de escrita criativa

Com aulas nocturnas e pagamentos em prestações

 

De forma que passei ao lado de grandes sucessos

E não colhi os aplausos que me seriam devidos

Vai ter de ficar tudo para a próxima encarnação

Senão!



2 de novembro de 2022

O terramoto de 1 de Novembro

 

Em conferência de imprensa, pela voz do seu porta-voz, conselheiro, deputado, chefe do grupo parlamentar, presidente e amanuense, o partido Jabasta anunciou hoje ir chamar o governo ao parlamento, com carácter de urgência. Salienta e lamenta com veemência não o ter podido fazer ontem, dia do infausto acontecimento, por ter sido feriado nacional, estarem encerradas as repartições públicas e paralisado o mais básico e necessário expediente, sem a cautela de serviços mínimos. Ao mesmo tempo reclama a modificação das normas legais porque a salvação da pátria não pode esperar pelo nascer do sol, o peito dos patriotas não consegue conter-se sem ver subir a frequência cardíaca e a legitimidade do governo não deve ser artificialmente prolongada, à custa do oxigénio de garrafa e do aparato intrusivo dos cuidados intensivos e das batas brancas.



Mais ainda acha o partido que é importante saber onde parava o governo do reino, à hora a que foram interrompidas as missas, chamados os bombeiros e mobilizados os meliantes e os vadios, sabido que é estar ultrapassada a época balnear e os banhos de mar nas praias da costa. Como entende ser importante saber o que fazia sua majestade el rei pelo largo descampado da Ajuda, ao desabrigo, longe do recato e do conforto da alcova, quando é certo que nem o paço dos marqueses de Távora fica em caminho ou nas redondezas e não é uso de sua majestade fidelíssima ir a orações ao convento de Odivelas. Para mais quando o tempo era incerto, com vento desabrido e um griso a ameaçar borrasca próxima. Não pode o reino expor na via pública a segurança e a independência nacionais quando, mesmo liberto do mouro, o castelhano espreita de Badajoz e cobiça o ouro que ainda chega de Minas Gerais e o sermão que o padre António Vieira deixou pelos sertões do Maranhão.

E o ministro de sua majestade, o arrogante fidalgote Sebastião José, atarracada figura de peito cheio de vento e de padres-nossos, olhos faiscando de ambição, sem linhagem e sem títulos de nobreza? Onde o levava a sua sege enquanto ruía o paço da Ribeira e se quebrava em muitos cacos o vaso de noite de el rei nosso senhor? Pois, a congeminar ideias que levassem os seus irmãos a serem a sua polícia de costumes e a atentar contra os jesuítas e a santa madre igreja, pelos brasis fora. E a mandar erguer provisória e apressadamente uma real barraca onde precariamente pudesse repousar a real pessoa, sem o serviço dos seus fiéis e dedicados criados. Mal tendo quem lhe enfiasse um frango assado em cada bolso da jaqueta, com que pudesse ir mastigando o tempo e matando a fome, dando estalidos com a língua e lambendo os nobres dedos.

1 de novembro de 2022

Dia de todos os santos

 

Chega Novembro e logo no primeiro dia, sendo feriado nacional, lembra-se a descoberta da Baía de Todos os Santos, como se isso bastasse para afirmar o país no concerto das nações, incluindo a corte de Viena de Áustria, as praias das Seicheles e o arquipélago de S. Tomé e Príncipe.

Dia de todos os santos? Que designação obtusa, sem respeito por valores e princípios que deveríamos preservar e consolidar. Que propósito generalista e inclusivo, como se nele pudessem caber todos, desde D. Afonso Henriques ao Santo Condestável e ao senhor cardeal patriarca de Lisboa. É inaceitável esta abertura esquerdista aos indigentes e aos vadios, acolhendo quem não tem ocupação, vive de expedientes, vende banha da cobra e óleo de jacaré e sobrevive à custa do subsídio de desemprego e do rendimento mínimo nacional. Isso é desrespeitar quem é filho de boas famílias, foi baptizado à nascença, frequentou a catequese, fez a primeira comunhão e vai religiosamente à missa de domingo, comungando a batendo com a mão no peito, para remissão dos pecados. Claro que a questão remonta à fundação da nacionalidade, o que não quer dizer que responsabilizemos o nosso primeiro rei que, todavia, foi seguramente mal aconselhado. Não terá tido o conjunto de assessores de que precisava e que obviamente merecia, apesar dos seus serviços terem onerado o orçamento do estado como, à época, soube salientar o senhor Egas Moniz prostrado, de joelhos, implorando a benevolência divina e a protecção dos pastorinhos de Fátima e do senhor presidente da junta.

E que fez o governo? Criou um ministério, instalou-o no Parque das Nações ou no castelo de São Jorge, deu-lhe um orçamento e nomeou um ministro? Nada disso, limitou-se a continuar à espera de D. Sebastião, não se preocupando sequer com as previsões do tempo, a saber se o mesmo trazia o nevoeiro até ao mar da palha. Limitou-se a esperar e, vá lá, comprou patrioticamente submarinos, nomeando um ministro que foi morar para o forte de Caxias, de forma a vigiar de perto a entrada da barra e os do reviralho das quintas do Seixal. Mas não foi além disso, não lhe deram tempo, encurtaram-lhe as rezas e a duração do terço. E os submarinos não chegaram sequer a Santarém, não derrubaram a resistência das portas do sol, não ocuparam a fertilidade da lezíria, não tomaram Almeirim. Não dominaram mais do que a bacia do Sorraia, tomada pela invasão dos jacintos de água, impedindo a cultura da minhoca, a pesca à linha e a saída das naus a caminho da Índia, a buscar especiarias e a converter os infiéis à força da oração e da espada.

Quase novecentos anos de história e tantos equívocos, apesar do Mestre de Aviz ter dado cabo do canastro ao conde Andeiro e de na Câmara de Lisboa se ter deitado Miguel de Vasconcelos da varanda abaixo, abrindo finalmente caminho à chegada heroica do engenheiro Moedas, com pequeno valor facial mas com elevada cotação na bolsa de Bruxelas e na praça de Monforte. De resto, sem que ninguém gritasse chega, reabilitasse el rei D. Miguel e ordenasse a imediata ocupação de Olivença e reconquista da Índia, de Goa a Damão e Diu. Um visionário cruzado, com a cruz de Cristo pintada na testa, ainda celebrando a portuguesíssima tradição das bruxas e empanzinando-se com arroz de sarrabulho e rojões à moda do Minho, nos restaurantes das margens do rio Lima, acompanhado dos vinhos de selecção da Brejoeira. Não pode ser, todos os santos não, não podem acolher-se todos à mesma manjedoura e ao mesmo pasto. Que na semana que vem isso seja levado em consideração na feira de Espinho para que possa descer o preço do cobertor. E para que voltem à praia os nadadores salvadores, a vigiar as areias e o voo das gaivotas.