2 de janeiro de 2014

O Natal são momentos, o resto é inverno

O Natal são momentos, o resto é inverno. Inverno, manhã de mau tempo, chuva, vento forte, ruas vazias de gente, mar em fúria. Vagas de sete metros, toneladas de água atiradas contra o cimento armado, colunas brancas de espuma e ira, a tocarem as nuvens e a assustarem as gaivotas num voo desordenado e líquido. Solidão e mágoa, o vento vergando os braços longos das palmeiras, a fragilidade de uma silhueta longe e perto, cabelos em desalinho, a face exposta aos salpicos de sal que o vento arrasta, um frio por dentro que não tem medida, a angústia acaba sempre a escorrer-nos dos olhos tristes.

A cidade cresce pela margem do rio acima, ruas estreitas, todas as portas fechadas, nem alimento nem abrigo, só a chuva esgotando-se na corrente das valetas, dia de natal. Há garrafas vazias que a noite solitária deixou espalhadas pelos portais, os corpos dispersaram-se pela alvorada, encharcados no conforto do álcool e na miséria dos dias ainda por chegar. Corpos tisnados nas brasas frias da tragédia, sujos, côncavos, os trapos andrajosos, os olhares parados contra o vazio móvel dos faróis. Que dia ainda tão mais igual aos outros, mais espaço nas ruas para as encruzilhadas que a vida tece.



Depois o silêncio absoluto das horas em redor, as ruínas que os anos foram deixando pelos degraus, o cinzento da esperança que não houve, do passado que não é. O futuro é o horizonte metido num buraco que se abre sob os pés, escuro e fundo, chegando ao centro da terra, só cinzas saindo das crateras, soterrando o verde das encostas, enchendo o leito vertiginoso dos ribeiros de montanha. Engrossando rios de águas barrentas soltando-se das margens, alagando terra firme, arrastando desejos e fortuna para o mar alto. Onde moram todos os naufrágios!