24 de março de 2017

Não queiras domar o rio

Não queiras domar o rio, nasce com ele. Acolhe nos olhos o brilho cristalino das águas da nascente. Segue os saltos inquietos sobre os acidentes do percurso. Estende o leito sob a sombra fresca das veredas, contempla as neves do inverno, no alto dos braços nus das árvores. Converte-te de todo ao fascínio da planície, enche de verde os campos das margens. Ouve o canto dos pássaros, aspira o perfume das flores silvestres. Acompanha a construção dos ninhos e o voo alto das cegonhas. Celebra o nascer do sol, o crescimento das crias, a chegada da noite, as promessas luminosas da madrugada. Abre os braços para a vida, sorri para o fio do horizonte, oferece o peito às ondas de ternura. Sente o coração que te pertence, deixa que bata ao ritmo que entenda. Enche as mãos de quanto desejas, ignora a aridez solitária do deserto, cuida de ti. Deixa que te amem, acaricia a felicidade no teu colo, entrega-te à certeza dos dias futuros. Ama-te!


21 de março de 2017

Dia mundial da poesia

Hoje é um calendário pendurado na parede, com um só dia a estender-se pelos meses todos. Um só dia, 21 de Março, fronteira exacta entre a folha e a flor. Um poema inteiro, como vento varrendo toda a cordilheira dos Andes, até à dimensão do oceano Pacífico, de norte a sul.


A boca sabendo-me a ternura, abraçando toda a melodia do oceano no aperto dos teus braços. Ensaiando um verso, alinhando uma estrofe, tentando uma rima simples, como passarinho fora do ninho. A poesia nascendo na frescura doce dos teus seios, o silêncio cúmplice com que respondes à ansiedade que me enche as mãos. “Erros meus, má fortuna, amor ardente”, ambos temos os olhos cheios de silêncio e de destinos.

O coração sangrando-me na boca, repleta dos destroços em que se transformaram as cidades sírias. O grito de revolta com que me chega a fome sem culpa das crianças de África. A generosidade sem medida dos imbondeiros acolhendo a savana, na orla dourada dos desertos. Pergunto-me porquê e responde-me a sinceridade castanha dos teus olhos, um rio tão longo como o Nilo. Cabem-nos nas mãos todas as estrelas que faltam ao brilho dos olhos das crianças.

A poesia doce, sabendo a amor, sabendo a mel. A poesia trágica, sabendo a dor, sabendo a fel.


16 de março de 2017

Eu não sei já como dizer-te

Eu não sei já como dizer-te. E quanto mais tenho para dizer-te, menos sei como dizer-to, porque se me escapam o teu ouvido atento e o teu olhar sereno. Tenho a boca cheia de palavras, todas à espera. Todas secas, como as areias do deserto, onde não viceja o verde de um carinho. Onde não há sombra que me abrigue ou rio que me refresque. Os pés descalços, sem rumo e sem caminho, porque nada tem nome nem destino. Tudo o que choro são palavras, lágrimas incandescentes caindo-me dos olhos próximos e vazios. Da cor do silêncio de que se há-de fazer o universo.



Sento-me tranquilamente. Com aquela tranquilidade ansiosa de quem espera por nascer. Inteiro, de um só golpe, os olhos abertos para as esquinas que não conhece, as cidades inexistentes e abruptas, o céu por nomear. É indescritível a urgência desta espécie a que o dia me fará pertencer, quando vier. Foi ela a separar os continentes, a dar nome aos oceanos, a inventar a escrita para que ficássemos longe. E existissem corpos sólidos, líquidos e gasosos. Até que Arquimedes viesse devagarinho, por ainda não haver pressa para nada, descobrir a impulsão e o princípio que inventasse os barcos e construísse os portos. Para que houvesse um cais e ali nos pudéssemos encontrar!

13 de março de 2017

Numa folha de papel atravesso o risco do teu corpo

Numa folha de papel atravesso, a lápis, o risco do teu corpo. Nada mais do que a lassidão com que despertas e o gesto sereno como os teus dedos desenham raios de sol nos teus cabelos. O calor perfumado dos teus braços enche de manhã todo o quarto, mesmo para lá da ondulação do cortinado e do assobio nas pontas do vento. A um canto do perfil esbelto do pescoço, vai-te crescendo a sede inquieta de um beijo. Vai ser ele a despertar-te para os segredos do dia claro.


10 de março de 2017

O poema da Caixa Geral de Depósitos

Hoje, contra o meu gosto, a poesia é outra. Porque os prejuízos anunciados pela CGD não são um poema, são um crime. São 1.900.000.000, um bilião e novecentos milhões de euros, entre inverdades e imparidades. Comecemos por aqui, pelas palavras. Uma inverdade é uma mentira, ponto final. Imparidade é um palavrão criado apenas para evitar que o homem comum entenda o que está em causa. No essencial, é crédito mal parado, ou incobrável, atribuído ao longo dos anos, não se sabe a quem. Nem em que condições nem com que garantias. Crédito concedido de forma negligente, de forma dolosa e de forma criminosa. Na impossibilidade de o recuperar, decide-se anulá-lo e deitar as dívidas ao lixo. Se esses prejuízos não forem cobertos com dinheiro novo, a CGD vai à falência, situação em que, aliás, há anos se encontra toda a banca nacional. Este dinheiro sai do Estado e o Estado, directa ou indirectamente, somos todos nós. Apesar dos donos disto tudo que por lá andam.

Então é elementar saber que dinheiro se emprestou, a quem e em que condições. É preciso publicar a lista e esclarecer todas as dúvidas, saber quem são os vigaristas, agir criminalmente contra quem foi responsável. Qual sigilo bancário! Quem não tem rabos-de-palha, não tem nada a esconder. Por alguma razão o senhor Domingues não queria revelar o que iria ganhar nem o que possuía. E quem persiste em esconder as cuecas é muito provável que as tenha sujas!


8 de março de 2017

Mulher

Penso-te o nome e ele enche-me o cérebro. Sobram-me as ideias, desfaço-me em ternura. Transforma-se-me a vida num conjunto aberto de convicções. Penso Mulher e desde logo Mãe. A primeira, a maior, a mais nobre das funções de que te vestes. E, como se isso fosse preciso, chega-me a memória e a saudade da minha. Os olhos que se me toldam, rasos de água. O teu corpo franzino, a energia desmesurada, o trajecto longo. A vida tão ingratamente cheia de espinhos, sem o perfume das rosas. A saudade inteira. E todas Mães, nobres, compreensivas, complacentes, protectoras. Apesar de todas as maldades que todos sempre lhes fizemos, inconscientes e ignorantes. Os cabelos desalinhados, as saias puxadas, o caldo entornado, a irritação a que cedes por momentos. Depois da pequena tempestade, sempre a bondade e a bonança infinitas.

Penso Mulher e desde logo Companheira. Com cerimónia ou sem ela, os relacionamentos não são fruto de papéis, escrituras, rezas e tabeliões. São mais fruto da amizade e da compreensão cúmplice que nos mora na profundidade do olhar. Verde ou castanho, azul até para lá do farol que assinala o início de tudo o que partimos a descobrir, com a verdade por destino. Os ombros que se alinham, as mãos que se dão, os passos que se caminham pela vida. Dar e receber, entrega e partilha, qual de nós sou eu, até onde me sou, se transbordas para lá do meu horizonte. Somos um, qualidades e defeitos, sonhos e aspirações, cabeça e ombro que se alternam, duas lágrimas e um sorriso. Uma vida cheia de esperanças e de futuro.

Penso Mulher e desde logo Amante. O infinito que começa nos olhares que se cruzam, as palavras que se calam, os gestos que se dispensam. Os corpos de que prescindimos, para sermos apenas um, diferente e igual. Só beijos e ternura, a entrega que é tão toda como se não fosse nenhuma, tão apertado abraço. Apenas o arco-íris nas fronteiras do paraíso, o céu é como o amor que nos une, não tem limites, não principia nem acaba. Vinte poemas de amor e uma canção! Uma casa debruçada sobre o oceano, as ondas a morrerem-nos nos pés descalços.



Penso Mulher. Hoje, um dia só, se o ano tem muitos, todos teus de pleno direito Sem simbolismos ou diferenças que te diminuam. Trago-te apenas uma camélia, doce, macia, frágil, terna e sensível. Como o amor que me conforta e que me aquece o peito. Este mesmo que te entrego, hoje e todos os dias para além dele. Sejas tu Mãe, sejas Companheira, sejas Amante. E entre todas as datas, todos os dias são teus!

5 de março de 2017

Estás tão perto que já me parece de noite

Estás tão perto que já me parece de noite. Posso ver-te nos olhos o brilho dos candeeiros que se acendem na rua. E os reflexos esguios que desenham na pequena enseada, onde as águas quietas se aconchegam ao silêncio da hora tardia. Há uma ameaça de chuva miúda, que promete descer pelo cinzento carregado das nuvens e pelas escadas da madrugada de domingo. Mas fica-me sempre, e só, a tranquilidade da tua silhueta projectada contra o meu peito. Pego-te nas mãos, e sinto mais do que toda a luz que emerge do espelho dos barcos, fundeados para o descanso do sono. Chega-me a energia que viaja na crista das ondas. E o deslumbramento que, de repente, explode na copa florida das magnólias, quando a ternura de um beijo se te adivinha no contorno fresco dos teus lábios.


3 de março de 2017

Traz-se sempre a vida atravessada na garganta

Traz-se sempre a vida atravessada na garganta. Uma chuva fria a meio da tarde, algumas pequenas pedras de granizo contra a vidraça. O desencanto no fundo de uns olhos tristes. A caminhada inconsequente dos relógios, o tempo parado. A memória rasa dos sítios onde nunca fomos, o desejo de regressar aos destinos felizes onde nunca estivemos. O desencanto de uma colher de mel tirada de um frasco vazio, urze ou rosmaninho, o zumbido das abelhas sobre as flores minúsculas. A esperança distante como um sistema planetário ainda por descobrir, o sonho no fundo do enorme buraco escuro de que se fez o mundo.



Tudo para nada. É sempre precisa uma razão para todas as coisas. Não servem de nada as estradas que não levam a lugar nenhum. Que interessa a esperança se o verde ainda está por inventar? Há sempre o perfume breve de uma rosa enchendo-nos as narinas, e o espinho que se nos atravessa na vida!