27 de junho de 2006

Zé Sócrates goes to Hollywood

Os governos, todos os governos, e bem, acreditam de forma linear e irreversível que ter ideias é ser idiota. Vai daí, a última coisa que qualquer governante local, regional ou central deseja, em defesa da sua carreira e para benefício do país, é ter uma ideia. Qualquer que ela seja, por mais simples, por mais razoável, por mais racional. Porque ao poder se chega, como se sabe, por complexos e ínvios caminhos, sem realização de concurso público, sem habilitações, sem projectos e, de forma superior, sem nenhuma ideia. O político exemplar, aquele que só tinha qualidades, podia encontrar-se, ainda há poucos anos atrás, na Praça da Liberdade, frente à Imperial, onde hoje funciona um qualquer restaurante de gastronomia regional americana. A promover a eficácia incontornável da pomada para a queda do cabelo e para a eliminação dos calos, conjuntamente com os méritos de uma caneta especial, de tinta permanente, indicada para ileteratos, analfabetos e reformados dos negócios de volfrâmio.

Não admira portanto que os governos, todos os governos, não sejam mais do que encenação e "show off", vocábulo importado do dialecto mirandês, ainda sem versão portuguesa aprovada em plenário de ministros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, incluindo o remoto arquipélago dos Bijagós e as primitivas ilhas da Madeira e de Porto Santo. São frequentes as imagens que a televisão passa, incluindo a de serviço público e das notas soltas do advogado Vitorino, que mais amamos por nos servir a cultura do bacalhau de Quim Barreiros e nos vender em pacotes promocionais detergentes para a loiça e inquilinos para Belém. Com os deputados, ministros e respectivos ajudantes pondo-se em bicos de pés, encavalitando-se sorrateiramente em cima de meia dúzia de pastas de arquivo morto, a espreitar por detrás das deambulações filosóficas do emigrante Pauleta e do doméstico Sabrosa.

Com pompa e circunstância, vestindo elegantemente Rosa e Teixeira como há-de referir o cronista social Carlos Castro, de forma heróica e sem ideias, esta tarde "Zé Sócrates goes to Hollywood", via CTT. Ao anunciar que cada um dos dez milhões de portugueses que somos, incluindo os que votaram Bloco de Esquerda e Garcia Pereira, vai dispor gratuitamente de uma caixa de correio electrónico. Para onde, de forma anónima, passará a ser remetida toda a propaganda à pornografia, ao viagra, aos relógios rolex contrafeitos no Marco de Canaveses e às vantagens do país ter no governo, em todos os governos, uma maioria estável e coerente. Sem ideias e que tenha como projecto a descoberta do caminho marítimo para a Índia!

26 de junho de 2006

A garrafa de gás

Aqui, na Rua de Santa Catarina, dois prédios foram pelos ares há mais de um ano. O trânsito foi vedado a veículos durante uns dias, interdito a transeuntes durante três semanas, vedado a mirones e patos bravos durante um quarto de hora. Quem decide, expedito e pressuroso, nomeou uma das muitas comissões de inquérito em que o país é pródigo a todos os níveis e em todas as circunstâncias. Composta, segundo se supõe, por uma boa meia dúzia de membros, de forma a garantir que se atrapalhassem uns aos outros e que não concluíssem coisa nenhuma. Fixou-se-lhes seguramente a remuneração, o valor das senhas de presença, o subsídio de refeição, o direito a férias e a gratuitidade na utilização dos transportes públicos. Por mero e desculpável lapso não se lhe terão fixado objectivos nem determinado prazos. Mas não ficou esquecida a obrigatoriedade da comissão reunir, em plenário, uma vez de dois em dois meses, com o presidente a presidir e o secretário a secretariar. Porque uma comissão profissional e independente que se preze não aceita trabalhar sob pressão, à semelhança da ministra da educação que durante as greves dos professores não admite sequer referir-se aos respectivos sindicatos.

Após um ano, adiantada em relação ao prazo que não havia, a comissão concluiu pela responsabilidade de uma garrafa de gás. Não se sabe se cheia, se vazia, se fornecida directamente pela refinaria de Leça da Palmeira ou se importada algures do médio oriente, quem sabe se mesmo do Iraque libertado, democrático e feliz. Sobretudo Iraque feliz, não dê nada que dá o Dr. Rio! Mas supõe-se ter havido uma explosão, do mesmo modo que se presume ter sido esta a responsável pelo estrondo que os moradores circunvizinhos insistem em dizer ter ouvido naquela noite fatídica. E a comissão, diligente e sem honorários em atraso, promete concluir sobre isso em período complementar de averiguações que não exceda mais um ano, no máximo dois. Depois, com a legislatura e o mandato dos autarcas correndo para novas eleições, lá se vão a comissão, os honorários, o subsídio de refeição e as conclusões. Nada de novo, afinal. Se calhar o raio da garrafa até tinha gás!

25 de junho de 2006

Património mundial

O Porto celebra 10 anos de consagração como cidade património da humanidade. Não sei onde, não sei como, não sei porquê. Especialmente não sei porquê! Mas, portuense por opção, entendi dever fazer o meu próprio percurso e incluir a Rua de Santa Catarina no meu roteiro. Desci-a esta manhã a partir do Largo da Aguardente, crismado em Praça do Marquês de Pombal, andando mais devagar e procurando fazê-lo de olhos um pouco mais abertos do que o habitual. A Rua da Santa Catarina foi uma artéria emblemática, nos tempos em que comecei a perder algumas noites jogando o monopólio e em que o Dr. Salazar elegia e exonerava ministros, presidentes de câmara, regedores e até contínuos.

Bastou-me a amostra até à Rua de Gonçalo Cristóvão, a cuja esquina fica o bonito edifício do ACP, com uma imponente magnólia branca no quintal e duas soberbas tílias em frente. Ou melhor, cinquenta metros mais abaixo para confirmar o empenhamento do sector público neste desígnio da cidade. As traseiras da escola de Augusto Gil são a confirmação de que a cidade vive. Alquebrada, trôpega, apoiando-se às paredes para chegar ao quarteirão seguinte, caindo em plena via pública sem 112 que lhe acuda. Estão em ruínas, com os alunos ignorando o português e renegando a matemática.

No largo do Bonjardim, também alcunhado de Tito Fontes, ainda está erguido o palanque para a música e para o espectáculo da noite de S. João. Não cheira a manjerico, não se vêem restos de cidreira, não se vislumbra ao abandono uma maçaneta de alho-porro. Ao abandono mesmo só a cidade, comemorando os dez anos de património mundial. Não sei onde, não sei como, não sei porquê. Definitivamente não sei porquê!

17 de junho de 2006

Rua da Alegria, 648


Há anos que passo ao largo e te miro de longe. O olhar de soslaio, o passo apressado, a cabeça disfarçadamente inclinada para diante, escondendo uma timidez juvenil e falsa. De forma a que não pudesses aperceber-te desta admiração e me não cobrisses de ridículo do alto dessa altivez superior e fria. Ao fim de incontáveis dias ousei acenar-te da rua, um aceno breve e tímido mas afectuoso e morno, prenhe na esperança inútil de aguardar resposta. Sobrevoando o barro vermelho dos telhados apenas me chegou o brilho imperceptível de um olhar distante. Era tudo isto por Janeiro. Os dias suavemente cresciam como saltos de pardal, irrequietos e minúsculos. Depressa se virou a esquina do Inverno e, vaidosa, foste ao baú rebuscar os cosméticos de que não precisavas. Tonto, sobreveio-me a angústia, senti-me traído como se me pertencesses, doeu-me o peito de paixão e de ciúme. Arrisquei o sussurro de um olá, perdido no murmúrio de velhas beatas rezando o terço, a quem Deus não ouve. Mais altiva do que nunca, exageraste nas roupas que envergaste, provocantes e fatais. De saltos altos, ficaste ainda mais sobranceira em relação a mim e a tudo o que te era adjacente e próximo. Deixaste que os cabelos fartos ondulassem soltos à brisa suave das manhãs e serenassem, discretos, à canícula das tardes. Por Junho, em apoteose e êxtase, floriste. Altiva, solene e efémera. Mais sedutora do que nunca, o perfume letal descendo pela encosta íngreme, transformando em oásis o casario fronteiro e a poluição da rua. Não soube resistir-te, não consegui resistir-te. Subi a ladeira em passo apressado e de peito resfolegante. Cheguei-me a ti arfando, o coração batendo ao ritmo das paixões adolescentes, as narinas sentindo a fragrância irresistível do teu corpo. Acolhi-me, sôfrego, à amplitude grandiosa do abraço. Não tive nem forças nem braços com que pudesse abarcar-te o tronco. A emoção traiu-me, chorei meia dúzia de fotografias em contraluz, cabisbaixo voltei à rotina de passar defronte e admirar-te de longe. Do ponto mais alto da cidade reduzes a peões toda a nobreza que te enche o horizonte. Tudo se curva a teus pés. Submisso, raso, rasteiro e vulgar. A cada manhã e a cada tarde, seja a época do ano aquela for, faça chuva ou faça sol, vou venerar-te. Esta é, definitivamente, a minha tília!

11 de junho de 2006

As tílias em flor

Eu não percebo nada de ervas, nada de flores, nada de arbustos, nada de árvores. Nada de nada! Por isso estou pronto para incorporar o conjunto dos eleitos do senhor Scolari, se ele decidir ampliar o rol para 24. Do mesmo modo que estou apto para a distinta e preclara vereação, caso quem pode decida manter inalteradas as regras do sufrágio! Não me proponho nem para presidente da Porto 2001 que já em 2005, com ligeiro avanço em relação à data prevista, inaugurou a Casa da Música, nem para "requalificar" - arejado o neologismo! - a Avenida Desaliados onde acabam de semear granito no sítio em que outrora medravam papoilas.

Mas, por favor, apressem-se! Passem sob as tílias que estão em flor. Nas traseiras dos Paços do Concelho, onde podem virar as costas à Câmara e fazer como fizeram os eleitores comunistas quando votaram Mário Soares para a presidência da República. Em frente ao Automóvel Clube de Portugal, na Rua da Alegria, entre a Rua da Firmeza e a Rua da Escola Normal, em qualquer outro lugar onde ainda sobrevivam ao vandalismo do serrote. Sintam nas narinas o perfume inconfundível e sublime que desprendem. Mesmo quando despojadas do aspecto majestoso pelas podas, pelos arquitectos ou pelos autarcas. E vocês, por favor também, com a seriedade de quem sabe, digam alguma coisa sobre as tílias em flor!

9 de junho de 2006

Avenida Desaliados

Estou pasmo! Onde, senão no Porto? Onde, senão nesta mui nobre, leal e sempre invicta cidade? Que outro lugarejo, aldeia, vila ou cidade nacional pode orgulhar-se do mesmo? Incluindo Valongo, Gondomar, Penha Garcia ou a frívola Lisboa do Dr Santana que diz andar por aí. Que outra cidade estrangeira, mesmo pertencente aos países mais desenvolvidos da União Europeia, como a Letónia ou a Suazilândia. E a Suazilândia, se não pertence à união há-de vir a pertencer e se não está geograficamente na Europa há-de vir a estar. Porque ou a União Europeia se impõe e o consegue ou a há-de democratizar o senhor George W e depois de a democratizar a porá onde lhe aprouver, incluindo Guantanamo.

A cidade dispõe, de há dois dias para cá, de um lavadouro público, com vista para os Paços do Concelho, encomendado pelo mestre de obras Rui Rio e inaugurado solenemente pelo presidente da Câmara. Projectado e erigido pela firma de trolhas SS Moura e Vieira. Falta-lhe ainda a cobertura, mas a água é corrente, límpida e fresca como a que nasce em Arca de Água, por detrás do lago onde chafurda e grasna meia dúzia de patos famintos e heróicos.Acotovelam-se as lavadeiras transportando desde a Rua de Liceiras, em sacos de plástico do Pingo Doce, as ceroulas encardidas dos clientes, as toalhinhas de bidé e o detergente comprado na Vândoma.

Que de bom aviso e grande visão política foi conservar de pé os pinheiros frente ao município. Sempre servem para amarrar cordas de nylon que permitam e facilitem o estendal. Seca mais depressa a roupa com a brisa que vem do mar e o corrupio apressado da vereação que a acentua. A Avenida dos Aliados já era. Viva a Avenida Desaliados!