28 de fevereiro de 2015

Sem hemoptise nem tango argentino

Vi um sorriso breve a pintar-te a face e a emoldurar-te o olhar, e sobreveio-me a vontade espontânea de te acariciar os cabelos desalinhados e de te chegar ao coração, à descoberta de que ternuras lá poderias ter guardadas para os dias em que o verde da esperança se confunde com o amarelo das acácias e nos chega da curva onde se perde o horizonte e fevereiro vai morrendo no calendário.


Dar-te a mão, sentir o carinho na ponta dos teus dedos finos, um calor morno a saltar-nos dos olhos, um solo de saxofone a descer-nos pelas pernas, os sobreiros correndo à desfilada nas bermas da estrada, as coordenadas de um mar chão como destino. Um por do sol, incomparável e único, a desenhar-se na fímbria do mar, enfeitando a paisagem marítima e azul, sem ondas e sem barcos, só bancos plantados na praia de areias finas.

Mas sempre se sentiu uma brisa fria mais que fresca a limitar a distância até onde se estendia o meu olhar baço e a força do teu desejo mais inseguro do que certo. Trazendo as nuvens para mais perto, carregando-as de cinzento e chuva, as palavras sem sentido, o pensamento sem morada certa ou número de polícia. A brisa virou borrasca, a chuva tombou feita granizo, o por do sol afogou-se nas águas revoltas que se embrulhavam no limite do que eu não via. O verde fez-se folha caída do outono de frio e vento, a esperança morreu, vestida da lama viscosa de que se engalanou! Ao contrário do poema de Manuel Bandeira, nem se tocou nenhum tango argentino, não houve nem hemoptise!


20 de fevereiro de 2015

Vermelho e branco, as cores da vida

Esta chuva miúda que atravessa a tarde que amanhece e pulveriza o céu onde não mora mais nenhuma réstia de azul. Só um cinzento esquálido, uniforme e triste, sobre o qual se projectam os braços descarnados das árvores, numa súplica de sol, flores e verde que começam a adivinhar-se nos botões que se vão formando nas pontas dos ramos das magnólias. Para já, só mimosas, uma invasão amarela ladeando a beira das estradas, espalhando poleiros agressivos e invadindo terras entregues ao pousio e ao abandono daninho.

Uma tarde assim, carregada de tristeza, trazendo-te ao olhar sereno e meigo o brilho baço da humidade que te chega às pálpebras, silenciosa e breve, até que as lágrimas te saltem pela face, tumultuosas como a nascente de um rio de montanha e o ruído do soluço se assemelhe ao estrépito com que as ondas altas se desfazem contra os molhes que a engenharia dos homens semeia à entrada dos portos onde se abrigam os navios. E assim foram tantos dos teus dias, o teu corpo abandonado à quietude da cama e à falta de alimento a que faltavas, que me doeu a alma e, em silêncio, me sangrou o coração.

E tu ausente, para lá da bruma que encharca o horizonte e há-de engolir o dia, entregue à lentidão com que as horas se escoam nos relógios, o sol das papoilas adivinhando-se numa folha de calendário como num poema de Drummond, a primavera quase à espera quando se dobrar fevereiro, como ele dizia a China é vermelha e branca, tem as cores da vida. A vida também te voltou como uma benção, que o sol, e as árvores e as flores e todos à tua volta aplaudiram, porque regressou cheirando a vitória e carregada de triunfos. Sê bem vinda, de regresso a ti própria, o olhar tranquilo, as lágrimas para lá do sítio onde acabem todos os rios, a confiança estampada no sorriso franco e no abraço forte com que recebes cada dia que nasce a oriente.


19 de fevereiro de 2015

Um abraço e duas linhas de ternura

É este sol frouxo, do fim desta manhã de inverno, geometricamente emoldurado pelas retas paralelas da linha férrea que me vai trazer o comboio que virá do infinito, com paragem marcada nesta cais deserto onde me acotovelo com o meu silêncio e esta tua longa ausência agreste, sem limite e sem medida. E serás tu a encher cada canto do mesmo cais em que me perco, raio de sol brilhante e único, enchendo-me os bolsos de esperança e a vida de sentido, a caminho de um destino para lá do horizonte onde se esboçam nuvens brancas, sem chuva nas entranhas.

Afago-te os cabelos soltos, cheirando ao perfume do dia claro, e bebo-te o sorriso alegre que trazes pendurado na face feminina, os braços abertos para o abraço apertado que acolherá o beijo que se desenha na ternura túmida dos teus lábios, oferecendo-se ao sol que se vai escoando por detrás da elevação quase rasteira das colinas que te embelezam o peito onde pulsa um coração de dimensão tamanha.


À passagem pela cidade em que te encerras sinto a quase solenidade de um convento austero e antigo a que te acolhes, despojada de fortunas, os pés descalços para a caminhada que faremos de mãos dadas, um amor seguro e fértil brotando do suor nervoso que nos escorre pelos dedos. E sem medo nem das palavras nem da distância a que se projetam, toco com suavidade cada momento dos teus dias e cada bocadinho minúsculo do teu corpo franzino de rapariguinha. Enquanto te sussurro ao ouvido um arrepio que te faz estremecer e quase te paraliza: não deixes que te perca na curva que o rio faz antes do açude, enquanto o atravessamos ignorando rápidos e correntes.

14 de fevereiro de 2015

Dia dos namorados

Olho-te no fundo dos olhos e é sempre dia de São Valentim. Há sempre um sol limpo que brilha no meio da manhã cinzenta, quando o inverno vai a meio do caminho. Perder-me no teu olhar sereno e calmo é sentir que a ternura não tem convenções e não respeita calendários.

Sinto que o olhar te esconde todo o sonho e todas as muitas descobertas ainda por descobrir. Com ele te percorro todo o corpo desnudo, te desperto a sensibilidade à flor da pele, cada toque suave a estampar-te no rosto um sorriso gaiato e feliz, chegando-se ao gume de afetos que te habita o coração.

Que podia ter de melhor, no conforto morno dos lençóis, com a manhã ainda triste enchendo a rua, do que a chegada sussurrada de um beijo e o aperto forte de um abraço que nos funde? O dia dos namorados todos os dias mora nas profundezas ternas do teu olhar, em que me fixo. Bem hajas!


12 de fevereiro de 2015

Amigos são amigos

Amigos são amigos. Simplesmente. Não fazem da amizade um modo hipócrita para encurtar caminho e atingir objetivos perdidos na bruma do tempo. Não se enganam uns aos outros, estão sempre disponíveis reciprocamente, sem condições e em qualquer momento ou lugar. Mão estendida, peito aberto, um sorriso franco pendurado do rosto.

Amigos não são navegadores dobrando a sempre tempestade do cabo das tormentas, à descoberta do caminho marítimo para a Índia, na ânsia do saque e do carregamento de especiarias, pimenta do reino e cravinho, o lucro gordo garantido no regresso aos portos assoreados da Europa.


Amigos não são inventores a engrossar contas em bancos suiços, à custa da venda de telefones e lâmpadas de incandescência em casas da especialidade e supermercados. Os amigos não mentem, mesmo que a verdade seja um ferro em brasa a acentuar-lhes o contorno dos lábios e a deixar-lhes na língua a consciência do voo sereno de uma pomba branca.

Os amigos não traem , entregam-se numa viagem idêntica de ida e volta. Não se falam durante anos e a ausência aproxima-os, quanto maior, mais a distância os irmana, as dificuldades igualam-nos como se fossem apenas um. Não se cobrem do escuro da noite para invadir garagens e esventrar pneus, como se sangrassem abdoméns flácidos e vulneráveis, sentindo-se valentes como a padeira de Aljubarrota. Dão-se as mãos, olham-se nos olhos, apertam-se num abraço que lhes sobe pela espinha e lhes chega ao coração.