30 de novembro de 2004

A Baixa do Porto

O blogue A Baixa do Porto é mantido por Tiago Azevedo Fernandes (TAF) que o conseguiu transformar num exemplo único de abertura à participação de quem devota algum sadio interesse à cidade em que vive. Reveste, em minha opinião, a vertente de serviço público que a autarquia nunca assumiu nem tão pouco alguma vez quis assumir. Estimula a troca incondicional de ideias, na medida em que as acolhe e lhes dá eco, sem fazer uso do lápis azul e sem acrescentar-lhes nenhuns comentários. Posso assegurar que sou, naquilo que digo, perfeitamente insuspeito: não conheço TAF, não sei onde mora, não sei o que faz, não nos encontramos sequer para o cimbalino de depois do almoço.

Comecei por enviar-lhe notícia dos posts que aqui inseria e que tinham relação com o Porto. Muito redigidos ao meu jeito pessoal e solitário, na procura da ironia, algumas vezes na raia do sarcasmo, quase sempre na crítica sem complacência à ofensa que decerto é tomarem-nos levianamente por tolos, como muito convencidamente fazem. Sem o solicitar, foi-me "linkando" concedendo, generosamente, que as linhas que ia dedicando à cidade em que vido eram mais uma participação que se enquadrava nos propósitos do blogue.

As opiniões a que dá acolhimento não são, felizmente, unânimes. A unanimidade é coisa abstracta, apenas possível em congressos de partidos políticos que fingem eleger dirigentes e programar patrioticamente o nosso futuro. E o conteúdo do blogue não é político, é cívico! São, por isso mesmo, devidos rasgados elogios a TAF e ao blogue e, sem peso na intervenção, passei a inclui-lo no meu roteiro diário de voltas pela cidade virtual, como um turista permanente que a descobre a cada dia que passa, cada vez mais doente e sem cuidados paliativos.

Um pequeno contributo de Pedro Aroso, no dia 28, a que deu o título "O pior cego é aquele que não quer ver", contestando posições assumidas pelo presidente da Câmara acabou, sem que o autor muito provavelmente o tivesse desejado, por conseguir duas espantosas coisas. Uma delas, de todo temporã e dispensável, a invasão da indigente politica profissional, com cartão de militante, quotas em dia e desempenho de cargo. A outra, a aplaudir a mãos juntas, de pé e por aclamação como nos congressos, trouxe-nos a subtileza fina da ironia e a gargalhada atónita e quase obscena da comédia revisteira. Celebre-se, quanto a esta, o serôdio aparecimento do presidente de uma Junta de Freguesia da cidade, eleito pelo PSD, e a sua longa história trágico-marítima num inumerável rol de disparates e um equívoco.

Não vou aqui enumerar exaustivamente cada um dos panegíricos factos do extenso e desbragado rol, tanto mais que há dois dias que não contenho o riso em que me contorço até às lágrimas, com prejuízo do diafragma, da traqueia e da bexiga que se me solta em frequentes e curtos espasmos à frenética cadência da gargalhada. Mas não posso todavia deixar de salientar o rigor orçamental IMPRESSIONANTE e sem paralelo. Só por isto tem o autor da fábula entrada garantida no paraíso, sem se prostrar em oração virado para Meca, sem respeitar o período de jejum imposto pelo Ramadão, sem necessidade sequer de adquirir bilhete de ingresso. Com direito a todas as mordomias, incluindo carro de serviço, despesas de representação e um razoável número de virgens, com véus transparentes cobrindo-lhes as faces e requebrando sensualmente as ancas ao ritmo da dança do ventre.

Seja-me permitido que apenas destaque aqueles que, pessoalmente, mais me sensibilizam. Desde há anos que tremo de pavor, se me esvaem as forças e se me enrubesce a face sempre que pressinto que alguém, por chacota, me vai falar na Casa da Música ou no túnel de Ceuta. Podiam referir-me coisas de que me orgulhasse e que modestamente me elevassem o astral como tanto quer o primeiro-ministro e melhor consegue o litro do bom verde de Amarante. Podiam falar-me nisso, no festival da francesinha, cuja fama ultrapassou a Foz velha, se espraiou pelas esplanadas da praia dos ingleses, galgou terreno e chegou a heróicas paragens de Pampelido. Dizem até que velhos faroleiros gritam a grandeza do evento para o nevoeiro cerrado que envolve o cabo Finisterra, pondo em causa a segurança da navegação de antigas caravelas movidas a energia nuclear.

Quanto ao resto, descanse o pequeno elo da cadeia autárquica. Correrei ao site onde mora o amo que tão fielmente serve e tão garbosamente defende. Deixarei recado sobre o destemor com que abre o peito à luta e se expõe às setas imprevidentes da cegueira que não vê. Não será por isso que não terá lugar nas listas para as eleições de 2005. A tempo de ser oficialmente convidado para a inauguração oficial da Casa da Música e para o respectivo beberete. Em 2001, como manda o rigor do calendário a que se acorrenta!

Pode ser?

A pergunta para o referendo:


Em Portugal - 30 palavras:
Concorda com a carta de direitos fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia nos termos constantes da constituição para a Europa?



Em Espanha - 15 palavras:
Aprueba usted el tratado por el que se instituye una Constitución para la Unión Europea?




Bem, até já estamos habituados a isso. De Espanha vem-nos tudo excepto, segundo a tradição, bom vento ou bom casamento. De resto vêm os tomates, as cenouras, as laranjas. Vem a carne de porco, a carne de novilho - eufemismo para designar vaca maior de 35 anos, com quatro filhos e três netos! - e até o frango do campo, criado no cativeiro do aviário forçado a comer mesmo que não queira. Vêm os trapos com que escondemos as misérias e exibimos as plásticas e os silicones, feitos moda nos cabides da Zara. Vêm-nos o feijão cozido e as alubias, o grão-de-bico e os garbanzos, previdentemente conservados em latas de 400 gramas. Da mesma forma que nos chegam médicos e enfermeiros que, ao menos, impedem que morramos sob os auspícios do ministro da saúde, entretido a celebrar contratos com o grupo Mello e a reduzir o défice do orçamento à custa da comparticipação dos desempregados no preço dos medicamentos.

Portanto, não seria nenhuma novidade. O galego Fraga Iribarne, mesmo velho, nunca seria pior do que o doméstico Alberto João, mesmo que não haja bananais em Pontevedra e não tenham nenhuma tradição os corsos de carnaval no cabo Finisterra. Qualquer ignorado e cinzento deputado da Andaluzia apresentaria mais projectos do que o Silva de Águeda e o alcaide de Vigo asseguraria, certamente com vantagem, a polémica tripeira sobre a avenida da Boavista e o trajecto do Metro do Porto. E assim sendo poderíamos anunciar as nossas ofertas de emprego nos periódicos da Galiza, da Andaluzia, das Astúrias e até da Catalunha. Começaríamos por um qualquer jovem que tivesse acabado um apressado curso de direito e apresentasse como currículo a leitura do D. Quixote.

Como primeira tarefa ser-lhe-ia entregue a redacção da famigerada pergunta para o referendo que ainda não tem data. Por razões de produtividade e para contento do empresariado nacional o contrato de trabalho não seria sequer a prazo certo: seria à palavra, que não à linha. Fixar-se-ia um limite máximo de quinze, nem mais uma. As que excedessem o limite poderiam não ser consideradas e, ponto assente, não contariam para o cálculo dos honorários. Poupar-se-ia dinheiro como quando se vai a Badajoz comprar caramelos ou a Tuy meter gasolina.

Ah, antes que esqueça! A pergunta pode ser mesmo escrita em espanhol, a ver se a gente consegue entender alguma coisita da porra do texto. Porque o que a gente não entende mesmo é aquele esquisito dialecto que os deputados falam na Assembleia da República e que os professores de português utilizam para fazer dos nossos filhos ileteratos habilitados com licenciatura. E sem emprego!

29 de novembro de 2004

O aviário

No Portugal profundo, em pleno nordeste transmontano onde a cultura da couve tronchuda e a confecção da suculenta posta à mirandesa continuam a ser apreciadas, - faça-se, já agora, publicidade a Sendim e à tradicional casa Gabriela! - o primeiro-ministro foi inaugurar três euros de portagens e fazer uma incursão rural empunhando a rabiça do arado. Saiu-se como se esperava que saísse, nem melhor, nem pior do que qualquer das estrelas Lux do quintal dos ranhosos: não sei se diga, não sei se fale, não sei se grite!

Adaptando-se à terminologia rural e beneficiando da sua passagem por uma qualquer escola agrícola das redondezas, afirmou que o governo é de aviário e está choco. Como se sabia já nem as galinhas se reduzem às curtas expectativas de se agacharem na cesta colocada ao canto do galinheiro, aconchegarem-se aos ovos que galos à antiga previamente fecundaram e ficar a aguardar que trémulo, macio e frágil o pinto rompa a casca. Hoje os ovos colocam-se dispostos no tabuleiro de uma chocadeira, sob aquela irritante luz mortiça e os pintos nascem naturalmente como filhos de pai solteiro. Não se imagina que mesmo um pinto possa indicar uma chocadeira como sendo sua mãe ou que esta, inerte e morta, possa reivindicar a maternidade como fez o Dr Menezes em relação à estrada de Francelos.

Mas o Dr Santana apenas alterou a linguagem adaptando-a à ruralidade do complexo agrícola do Cachão. Não veio dizer nada de novo. Nem ele nem o ministro que tinha, entre outras, a competência política para receber a direcção do Benfica e verificar-lhe os trabalhos de casa, deitando pela janela fora os inúteis e os mal feitos. Tirando isso veio apenas dizer que é feio e pouco ou nada cristão bater no ceguinho. Não se aceita de facto que os irmãos a quem Deus não privou da visão se entretenham a dar-lhe chapadas e estalos sem que ele possa ao menos saber de que lado caiem. Assim sendo, melhor é que o Dr Sampaio o resguarde, como tanto gosta de dizer. Porque senão nem sequer chega à beira da manjedoura onde lhe seria servida a primeira ração e fornecida a primeira bebida. E, à cautela, é mesmo melhor resguardá-lo de vez!

28 de novembro de 2004

Cabeçudos

Sinto - tenho a certeza que é assim - que sou a grande cabeça em Portugal (de certeza) e na Europa também, de uma nova forma de pensar o jogo, os jogadores e o treino.
[José Mourinho, Única/Expresso, 27-11-2004]

E reuniu o PCP, em conclave e à porta fechada, o seu comité central. Depois foram para Almada perder três dias num congresso. Sob a benção do Cristo-Rei mas sem o nacionalismo do galo de Barcelos. E acabaram a eleger o camarada Jerónimo de Sousa para secretário-geral que, desculpe-se-me a irreverência, pode dançar muito bem o samba e o cha-cha-cha, mas tem nome de heroi imperialista de livros de coboiada. Quando, modestamente, este rapaz passeia humildemente a cabeçorra por terras de sua magestade. Ele, por vontade de Deus e para desgraça do camarada Garcia Pereira, predestinado para levar a carta a garcia e a Europa è democratização do Iraque. Sem arrogância, sem pretensões, sem reclamar sequer o salário mínimo nacional ou a demissão de Pinto da Costa. Há filhos que não merecem o continente que têm, por melhores que sejam as promoções!

Mea culpa

Desde criança que toda a gente, em todo o lado, tem passado a vida a azucrinar-me a cabeça com a velha fábula de que só o trabalho dignifica, só o trabalho honra, só o trabalho dá saúde, só o trabalho produz riqueza. Sempre que por vontade própria me recusei a trabalhar fui rapidamente apelidado de indigente, vadio, doente mental e calaceiro que não tem onde cair morto. Sempre me fui marimbando para isso e, ao típico jeito português, fugindo para a frente na expectativa de que a turba pudesse ficar para trás. Na vida, como nos impostos, não se devem pagar os que estão em mora, deve-se é fugir dos fiscais!

Desta vez rendo-me à evidência e faço o meã culpa, de mão no peito se ainda assim o continuarem a exigir práticas ancestrais. Um pasteleiro - entenda-se confeiteiro na terminologia minho-galaica de além Douro! - e um operário têxtil acabam de ganhar mais de 44 milhões de euros no euromilhões. Não saiu a nenhum dos herdeiros do António Champalimaud, foi a dois simples trabalhadores. De facto o trabalho é que dignifica, honra, cura e faz enriquecer!

27 de novembro de 2004

Porto Vivo




Com pompa e circunstância nasce hoje, formalmente, a Porto Vivo - Sociedade de Reabilitação Urbana. Assiste ao parto o próprio presidente da República, auxiliado por alguns membros do governo, e espera-se que não venha o Dr Rio reivindicar a respectiva paternidade nem o Dr Menezes a correspondente maternidade. Depois da polémica que antecedeu o parto espera-se que o nascituro venha robusto e possa crescer robusto. Que tenha os cuidados de uma mãe extremosa e que essa mãe apenas possa ser a cidade. A cidade ela própria, sem representantes e sem representados, instituição sem estatuto jurídico, sem privilégios e sem obrigações a que não corresponda nenhum retorno. Que não tenha outro propósito e outra função que não sejam o de ser mãe com a inerência de conceber os filhos, de os parir e de tratar deles para que possam ter futuro. Um melhor futuro do que o nosso, um melhor futuro do que aquele que vamos deixando escapar por entre os dedos para os nossos próprios filhos.

Mas o acto é um acto cercado de vazio político, que não anuncia projectos reduzidos ao pragmatismo da acção concreta, que se fica muitas vezes pela vulgaridade do politicamente correcto, a que não corresponde nada e de onde se não pode esperar coisa nenhuma. Ainda o Dr Sampaio não deu as duas habituais palmadas nas nádegas da criança e já as críticas e as recriminações se sucedem. Nuno Cardoso, na ânsia de ser candidato à próxima vereação, faz uso da interminável duração das pilhas Duracell que se vendem por aí: não se lhe acaba a carga, mantém-se como um sempre-em-pé irredutível e teimoso. Salientando que a SRU não vai resolver todos os problemas da Baixa, que mais importante do que ela seria conseguir a aprovação rápida dos projectos de requalificação de áreas comerciais, que foram necessários três anos para a constituir e que ele, em três meses, criou duas empresas municipais, que é necessária uma agenda cultural coordenada, se é que isto é alguma coisa. Ocorre-lhe por último, luminosamente, a ideia de um cartão de utente da Baixa, em oposição à terminologia actualmente prevalecente que refere o cliente a torto e a direito e a respeito de tudo e de nada. Não lhe ocorre uma ideia positiva, um conceito diferente, o embrião de um projecto que possa deitar-se à terra, germinar, crescer e dar frutos. É pouco! É mesmo muito pouco para tanta altura e tão desmesurada ambição.

Não se pense que vão melhores as coisas pelas cabecinhas dos que, como a pescada, antes de o ser já o eram. Joaquim Branco vai ser o presidente da comissão executiva da novel sociedade e concede hoje uma entrevista ao jornal Público que, no mínimo, deixa muitas dúvidas e imensas inquietações. Desde logo anuncia que se parte com atraso, o que não é uma fatalidade, é um atributo amplamente reconhecido, vulgarizado, a que mais ninguém hoje atribui a mínima importância. E anuncia o desejo de que se construa habitação na rua de Sá da Bandeira, junto à Praça de D. João I, e um hotel de charme - seja lá o que isso for - no passeio das Cardosas. Garante que as casas reabilitadas não terão preços especulativos, quando isso não pode nem deve ser garantido nem por ele nem sequer pela comissão a que presidirá. E confessa que lhe não repugna a ideia de ter habitação no mercado do Bolhão aludindo, de forma desnecessariamente pejorativa, aos fundamentalistas "que pensam que aquilo deve ser só para vender sardinhas". Invoca sem medida e sem critério o mercado como regulador natural e justo de todos os preços. Sabendo-se, como se sabe, que neste país e nesta cidade nunca nada houve de mais pura e desenfreadamente especulativo do que o sector da construção civil.

Não há projectos concretos, calendários, custos ou sequer propósitos. É tudo vago, é tudo desalentadoramente vazio, é tudo inutilmente político. A propósito de obras anteriormente feitas, em que se gastaram fundos públicos significativos, justifica o fracasso com a falta da figura surrealista de um gestor de centro urbano - seja lá isso aquilo que ele entender que deva ser. Nunca se fala nas pessoas, a não ser para referir que são velhas e que serão despejadas de habitações que ocupam há décadas, invocando uma lei do arrendamento que, seguramente, será a desgraça de muita gente e a solução de muito curtos e poucos problemas. E nada se faz, nada se conseguirá sem as pessoas. Esta cidade milenar, como todas as outras, foi construída por pessoas e para pessoas. Foi ao ritmo da sua respiração, à abnegação do seu esforço, ao seu sentido de progresso que ela cresceu pelo morro da Sé abaixo, pela beira rio, pelas encostas acima, até Paranhos. Não há projectos sem pessoas e nenhum vingará sem elas. A prova está no tal entaipamento da Viela do Anjo e do Largo do Colégio. Não foi a falta do hipotético gestor urbano que levou ao fracasso do projecto. Foi a falta de um projecto pragmático que tivesse pensado na zona como uma solução e não como uma moldura. Que apenas servisse para a fotografia. Que a criança que hoje nasce possa ter outra orientação, outro sentido de vida, outro futuro!

26 de novembro de 2004

Megalomania

O exemplo mais fiel da mania das grandezas e da arrogância dos pequenos e insignificantes é a do caniche, resguardado - a palavra foi adoptada do léxico oficial dos últimos dias - na varanda do primeiro andar, ao colo protector da dona, ladrando freneticamente enquanto esperneia, a um ausente e desinteressado pastor alemão que passa na rua e que só para para alçar a perna num candeeiro de iluminação pública. De longe e com as costas quentes sempre todos os pequenos foram valentões, sem que a figura queira ter conotações com casos conhecidos e reais.

Portugal comporta-se tradicionalmente como um caniche a que falta o seio abundante e acolhedor de uma selecta tia da linha de Cascais. Mas o que lhe falta do conforto que um bom e rico par de mamas pode proporcionar sobra-lhe, seguramente, na valentia com que ladra aos passantes e na disposição com que ameaça engoli-los inteiros, com ossos e tudo. A arrogância é uma epidemia nacional que abrange tudo, mesmo quando os resultados e as estatísticas nos reduzem àquela dimensão terceiro-mundista de que falava Melo Antunes.

Há dois anos uma selecção nacional de futebol partia para terras do oriente, a representar o país num campeonato do mundo. Nos cumprimentos de despedida o primeiro-ministro da altura, arrogantemente, fazia a encomenda: tragam a taça! Nada de contenção que essa é para as pensões, o salário mínimo e os aumentos dos ordenados. Podia ter dito: dignifiquem o país, honrem as camisolas e a bandeira nacional, consigam o melhor resultado que estiver ao vosso alcance. Coisas assim rasteiras, vulgares e banais que poderiam ser pedidas por um qualquer Tony Blair ou George W. Bush com quem Deus não foi muito benevolente no que respeita à inteligência medida a metro.

Este ano um imigrante brasileiro, contratado a mais de trinta mil contos por mês, regressado vitorioso do tal oriente onde - como sempre - nos perdemos, pintou com palavras simples as paredes do país de vermelho e verde e fez do samba a canção nacional. Antes disso já as sumidades em que o Entroncamento é fértil tinham edificado estádios novos com dinheiros que não havia, que não eram precisos para nada e que, de um modo geral, ninguém hoje sabe para o que servem. Quanto à taça, como dois anos antes, viste-a! Tudo correu bem, fomos fortes, prometemos mundos e fundos, quisemos em vida todas aquelas virgens que os islamitas parece que têm depois de mortos. Foi o que se sabe: começámos gregos e acabámos ainda mais gregos.

Agora é reincidente o comandante Vicente Moura, presidente do Comité Olímpico de Portugal. Meteu-se-lhe na cabeça que Lisboa há-de ser candidata à realização de uns jogos olímpicos: é a habitual mania das grandezas nacional, a arrogância resguardada do caniche, o ridículo do valentão a gritar para que o segurem. Não se exige ao comandante Vicente Moura que conheça o país, que saiba o que tem e que faça uma ténue ideia do que precisa. Mas exige-se-lhe que tenha ao menos senso comum e sensatez mínima. A não ser assim ainda o país o recupera como garboso militar e lhe impõe o grande projecto nacional de reconquistar Olivença e dominar terras de Espanha, de Badajoz aos Pirinéus. E imbua-se o comandante de sentido patriótico e de espírito de poupança. Não queira contribuir para que os pensionistas e os beneficiários do salário mínimo esbanjem os aumentos de nove euros na compra de bilhetes para ver provas de salto em altura.

25 de novembro de 2004

Mórbido

Não fosse mórbido e a palhaçada passaria despercebida, mesmo apesar dos excessos. Mas esta manhã, iniciada pela madrugada, confirma uma de duas coisas. Ou estão certos os donos das televisões ditas privadas porque realmente se comportam em relação ao obscurantismo como se comporta a sua parceira cognominada de pública e devem ser-lhes pagos os proveitos que reclamam. Ou, inversamente, não basta demitir o director de informação da televisão alcunhada de pública. É preciso ir mais além e demitir toda a direcção, toda a administração, a tutela política e o governo inteiro. Poupem apenas o ministro-adjunto do primeiro-ministro, com estatuto de inimputável e beneficiando de imunidade como aquele brilhante deputado de Águeda, que sabe pedalar e equilibrar-se em cima da bicicleta.

O caso Casa Pia está de volta, com o início do julgamento marcado para esta manhã. Pouco importam as pessoas que vieram de longe, por doentia curiosidade e por evidente falta de ocupação prestável e útil. Ou as que chegaram ainda de mais longe adorando arguidos como se adorassem vacas sagradas nas lamacentas margens do rio Ganges. Não conta sequer a qualidade dos repórteres de rua que a apelidada comunicação social destacou para não se sabe que serviço informativo. Desde o português horroroso, aos incontinentes "hum…hum" que são a imagem de marca do presidente do glorioso. Até à imbecilidade vazia e inútil das perguntas como aquela dirigida a um dos juízes: "que expectativas tem para este julgamento?".

O homem, que no arrazoado do repórter era "juiz-asa", não se sabendo se atacava pela esquerda como o António Simões, ou pela direita como o José Augusto, não respondeu e foi forçando caminho como quem, nos velhos tempos e em noite de S. João, procurava ir da Praça da Batalha às Fontaínhas apenas para comer duas sardinhas e um pimento. Mas via-se-lhe perfeitamente na expressão confiante que, à semelhança de Victor Fernandez, esperava ganhar o jogo por larga margem e passar à fase seguinte da competição. Como se fosse o Chelsea ou o Futebol Clube do Porto!

24 de novembro de 2004

A sueca

Para o português comum, inveterado macho latino, Zézé Camarinha anónimo sem proveito e sem currículo, sueca quer invariavelmente dizer uma gaja alta e loura, de olhos azuis e pele de leite. Que frequentemente aparece por terras algarvias, trazida no bojo de um qualquer avião fretado para uma excursão de saldo e alguns dias de sol.

Não é essa, esta sueca. Esta sueca é o fulcro, o centro nevrálgico do governo, o jogo de cartas em que se faz renúncia e se não entrega a manilha seca ao vigor poderoso do ás da batota. Santana Lopes o disse e amanhã, para que tudo continue a ser normal, o desdirá. Não fez uma remodelação, fez alguns ajustes. A mesa é a mesma, o pano verde não se mudou, apesar dos buracos que apresenta, já queimado pelas beatas de fumadores menos cautelosos. Os baralhos a usar são os mesmos, de plástico barato, que desbota e perde a cor, as figuras e os números. Adquiridos na conveniência nocturna de uma loja de chineses, a caminho da Reboleira.

O grupo da sueca de Santana Lopes levantou-se dos lugares que ocupava, desentorpeceu as pernas, trocou de parceiros e volta a sentar-se ao redor da mesa. De jogo e do orçamento. Nada mudou, até o qualquer coisa da silva continua a ser ministro. É a imagem de marca do governo, não pode ser dispensado.

23 de novembro de 2004

Decadência

Não é sinal de nenhuma pujança ver a cidade perder população a cada ano que passa, senti-la esvaziar-se de crianças e de jovens, notar que cada vez mais velhos confluem para as praças, à procura do sol e do entretenimento do jogo de cartas. Não é sinal de vitalidade verificar que o comércio definha à míngua de clientes e que as prateleiras acumulam pó à falta de movimento e de produtos. Não rejuvenesce uma cidade velha, de degraus cambados nas soleiras das portas e de olheiras de granito nos arcos das janelas, quando se embeleza artificialmente por fora, carregando-se de rouge e de baton ordinários, comprados em lojas de chineses. Não se revitaliza uma cidade que renova ruas, assenta paralelo e pedras de granito, estende carris para eléctricos que nunca hão-de afagar-lhe a ferrugem trazida pela invernia.

Morre num regime de morte lenta a cidade que se arrasta, coxeando, apoiada na segurança da bengala, a caminho de Agramonte ou do Prado do Repouso. Sítios únicos e fatais onde a densidade demográfica vai crescendo a cada novo funeral. Morre a cidade que pela noite dentro se abandona ao nevoeiro denso e frequente, às ruas desertas e à luz mortiça dos candeeiros onde já nem cães vadios alçam a perna. Morre a cidade que pela madrugada fora se torna irascível e violenta, que acoita marginais, traficantes e pobres diabos. A que deixa que nas suas barbas se cometam violentos homicídios e passem incógnitos e impunes os respectivos responsáveis.

Não renasce a cidade que viu fecharem-se quase todos os cafés a cujas mesas pulsava grande parte da sua economia. Nem renasce quando assiste, indiferente e despreocupada, ao encerramento progressivo das escolas por falta de alunos. Não se renova a cidade que abandona ao silêncio e à derrocada os edifícios públicos e privados, como salvados arqueológicos. Não se renova com as pinturas das fachadas da Viela do Anjo, com o piso novo da Rua Escura, com a reciclagem de pobres toxicodependentes e uma outra geração de empresários do tráfico. A cidade não se renova e não renasce votando-se ao abandono e abandonando-se à ruína.

Hoje sobrevêm-me esta amargura com o Jornal de Notícias e o encerramento da Escola Carolina Michaelis, depois de outras. Com a constatação dos edifícios ao abandono como o palácio dos condes de Azevedo, o edifício da Escola Cal Brandão, a Casa de Reclusão Militar. Fica o registo e que bom seria que não passasse de registo. Infelizmente passou, de há muito!

De boas contas

Um velho ditado popular que gira por aí assevera que "não basta à mulher de César ser séria, é preciso também que o pareça". Seja este César aquele que for, parece que mesmo os atributos que a mulher possua o não podem certificar a ele como homem sério. É preciso também que ele o pareça e, mais do que isso, que o seja.

A observação vem a propósito do ministro qualquer coisa da silva, também conhecido pelo ministro do contraditório, e ainda dos três anos que o tribunal despendeu para o conseguir notificar. A ele que é licenciado em direito, tinha escritório de advogado, morada conhecida e desempenhava cargos políticos do domínio público. Que eu me recorde, a furtar assim as canelas à biqueira dos adversários nem sequer Chalana nos seus melhores tempos. Apenas a enguia, essa é que se nos escapa por entre os dedos!

22 de novembro de 2004

Mude-se o nome

Manhã de segunda-feira, mesmo antes do início sacrificado de nova semana, passo por aqui. Aliás, como sempre faço. E sou remetido, por atalhos e caminhos de montanha, até aqui. É óbvio que se me altera a disposição, sinto melhorar-me a componente moral e, como tanto e tão insistentemente quer o primeiro-ministro do momento, sobe-me vertiginosamente o astral. O meu dia vai ser melhor, a produtividade aumentará, o país começará a deixar a cauda de tudo, ao encontro da Europa e do super comissário Barroso. Posso dispensar a consulta com a vidente Maya, transportada no seu corcel de 300 cavalos, nascido e criado nas coudelarias da Mercedes Benz.

Isto dá-me ânimo, vou escrever àquele rapaz que é chefe do grupo parlamentar do CDS, de aspecto tão bem educado que de certeza é contra o aborto e o sexo antes do casamento. E pedir-lhe que, depois das suas orações matinais, pense no assunto e faça o requerimento para que se ponha fim a este desaforo. Então algum cristão convicto, algum católico praticante, poderá ter averbada no bilhete de identidade esta morada, poderá baptizar os filhos nesta terra ou dizer seja a quem for, seja onde for: faz favor de ficar com o meu cartão de visita?


Amor livre

No concelho de Vila Nova de Gaia, na berma de uma qualquer recém inaugurada estrada regional, andando de cá para lá e de lá para cá, discretamente sob a frondosa copa de antigas árvores - ulmeiros ou não! - Luís Filipe Meneses reivindica a maternidade do rebento, imputa a paternidade ao engenheiro Cravinho e responsabiliza o engenheiro Mexia, como escolhido padrasto, pelo fornecimento de cama e mesa.

Certamente de seguida correrá ao tribunal de família a reclamar uma pensão de alimentos que permita ao cachopo apresentar-se no infantário de bibe lavado, calçando sapatilhas sem buracos no sítio do dedo grande e usando calças de bombazina sem nenhum remendo no cu.

21 de novembro de 2004

A pergunta – 2

O entendimento afinal continua possível! Depois de se terem posto de acordo quanto à clareza, à objectividade e à síntese da pergunta, os grupos parlamentares do CDS, do PSD e do PS voltam à mesma sintonia.

Apresentarão uma proposta de lei - a ser obviamente aprovada! - no sentido da pergunta e de um manual de interpretação serem impressos em opúsculo utilizando papel de boa qualidade e um "design" atractivo, tipo folheto das promoções do Continente, com detergentes a menos de um euro e batatas da Póvoa, não greladas, a menos de 5 euros o saco de 20 quilos.

Esse opúsculo será remetido para todas as residências do país, como correio não endereçado, com a intenção de que o eleitor possa ler e estudar convenientemente a pergunta antes de se dirigir às urnas. O triunvirato anunciará ainda outras formas de colaboração e de esclarecimento do eleitorado não licenciado em filologia românica ou que não tenha acesso ao prontuário da eurodeputada Edite Estrela.

A pergunta – 1

Porra! Tenham juízo! Vocês, como eu, passam a vida - muito justamente, aliás! - a criticar a classe política, de uma ponta à outra do hemiciclo. Bem, condescendamos, e digamos ainda ao Manel e ao Dr Garcia Pereira que não desfalecem na luta pela assimilação. Passam a vida, como eu, a qualificar os seus membros de calaceiros, demagogos, incompetentes e corruptos. E eles, em relação a isso, fingem-se de mulheres sérias: entra-lhes por um ouvido e sai-lhes pelo outro!

E agora que esperavam vocês? Que em vez de uma pergunta inútil, demagógica, incompetente e parva vos fosse apresentada uma versão moderna da Ave Maria ou uma proposta de beatificação do sistema político, transportada por anjinhos cândidos e sapudos, entoando cânticos celestiais, prontos a entrar no paraíso? Tenham maneiras!

20 de novembro de 2004

Almeida Garrett

Almeida Garrett nasceu no Porto em 4 de Fevereiro de 1799 e faleceu em Lisboa em 9 de Dezembro de 1854. O que quer dizer que dentro de menos de três semanas se completarão 150 anos sobre a sua morte. Garrett é, por todos os motivos, um dos mais ilustres filhos da cidade e aquele que não deixa à excelentíssima autarquia espaço de manobra para invocar esquecimentos. De facto, mesmo tarde e a más horas, mesmo depois de polémica e sinuoso percurso, foi-lhe erigida uma estátua mesmo em frente ao edifício dos Paços do Concelho. A distinta vereação só não dará por ele se, como faz, entrar pela porta das traseiras e depois se não chegar à varanda para mirar as artísticas obras do Metro que decorrem na avenida.

A tão curta distância da efeméride, nada está previsto, nada está programado. A Cooperativa Árvore, segundo o Jornal de Notícias de hoje, terá solicitado à Câmara o apoio para um tributo com que tenciona assinalar a data. Ao que parece a intenção é modesta e a exigência desmesurada. Pediu-se à Câmara a cedência gratuita da Biblioteca Almeida Garrett e a atribuição de um pequeno subsídio para a distribuição de convites. A Câmara, pelos vistos, nem sequer se dignou responder. Pensa-se mesmo que o respectivo presidente, no dia certo, acompanhado da vereação, possa descer à Praça Humberto Delgado a cumprimentar o finado em pessoa e a manifestar-lhe a sua fria gratidão dos dias de Dezembro. Talvez até mesmo aproveite para lhe perguntar se lhe falta alguma coisa e se não se importa que, pelo Natal, o entaipem de novo no meio de andaimes e de tábuas de pinho, carregando-lhe por cima com um Menino Jesus de esferovite pintado a Robbialac.

Apregunta

Apregunta épros alumiados mulher! Não taprocupes! Jáfoi feitaplos alumiados, doutoresde apalpar asmamas ereceitar remédios prameter nocu. Agente nuncaresponde àspreguntas dosalumiados: dizsempre simsenhor ipronto. Olhacu meuhome quando eranovo saíamede casaàs cincoda manhã, coma marmita cutacho, iapra obra, voltava pelassete. Nuncame apreguntou nada nãosenhor. Sómedizia Maria abreas pernas ipronto, jáestava. Depoiséque começaram a darlhe osanos, opó dotijolo ea febredo cimento ipronto, deixoudeme amandar. Olhamulher dantesera obrade NossaSenhora, agoraé obrado mafarrico. Chegaslá botasacruz na casinha queles querem ipronto. Senão fosseassim elesaté apreguntavam direito. Assimcumassim aquilonão vaibaixar opreço docarteirão de sardinha, olha fodeide-vos!

19 de novembro de 2004

O charco

Não há muitos anos o Porto era olhado de soslaio, o ministro Sarmento diria que lhe faltava a credibilidade que também diz faltar ao relatório da AACS e o ministro qualquer coisa da silva iria mesmo ao ponto de dizer que a cidade padecia de parcialidade e não apresentava fundamentação quanto ao seu arreigado regionalismo. Chegando a Santo Ovídio já a gente se despedia da família e qualquer viagem do Futebol Clube do Porto a Lisboa, para cumprir calendário e levar três ou quatro do Sporting, era um acto heróico como seguir para as colónias a cumprir aqueles dois perdidos anos das nossas vidas. Toda a gente recorda, com a saudade com que se invoca o invulgar desempenho de Raul Solnado, uma velha rábula que passou no Zip-Zip de boa memória.

Lisboa ficou mais perto, a malta começou a deixar de ter medo de lá ir, o Futebol Clube do Porto começou a jogar em Alvalade ou na Luz como nas Antas, às vezes até melhor. Isto aconteceu um pouco por força da auto-estrada do norte que o ex-ministro Medina Carreira, se se recordam, achava politicamente que não era precisa para nada. Vai daí aquela gente, que o sportinguista Meneses de Gaia entretanto apelidou em congresso de sulista, elitista e liberal, começou a procurar justificações e formas depreciativas de diminuir este estranho povo de além Douro.

Alguns hipotéticos postulados persistem até hoje. Ou é porque se trocam os bês pelos vês, ou é pela pronúncia do norte, ou é pelo palavrão corrente ou ainda pelo sistema, indefinido e intangível, que tanto preza o Dr. Dias da Cunha. Acontece que em Lisboa, mais do que no Porto, toda aquela gente anda distraída a olhar para o próprio umbigo, não sabe o que diz e não faz a mínima ideia do que seja o Porto, o norte ou o país. Não têm também sido fáceis, no sentido de bem sucedidas, algumas incursões de personalidades da vida portuense à margem direita do Tejo, nomeadamente no que respeita à classe política.

Tem-nos valido a desatenção e a leviandade com que aquela gente se passeia por S. Bento, pela Gomes Teixeira e pelo Parque das Nações. Porque nós por cá bem temos persistido em criar obras-primas para a chacota nacional. E não vale a pena estarmos agora aqui, uma vez mais, a enunciar a nossa vasta série de ex-libris. Mas podemos acrescentar-lhe mais um, que vai passando, sossegadinho, quase sem darmos por ele.

Tal é o caso do parque de estacionamento construído na rotunda do Castelo do Queijo, a concorrer directamente com o chamado edifício transparente e a dar menos nas vistas porque se esconde, envergonhadamente, debaixo da terra e sob a estátua. Realmente, ao que parece, o parque dá-se mal com a humidade e muito pior com a chuva. Crê-se que com a mania das grandezas e com ciúmes do mar lhe plagia os comportamentos. E, vai daí, alaga-se como se fosse sempre preia-mar. Ao que parece os poucos automóveis que o procuram, sedentos de repouso e de recato, têm de fazer uso de motores fora de borda e os condutores que habilitar-se com a carta de marinheiro. Apenas os pescadores compulsivos têm evitado as suas margens por falta de lanço para atirarem o isco longe e ficarem à espera que o robalo ferre. Porque se assim não fosse já ali se teriam realizado concursos de pesca desportiva. Com sucesso garantido e participação internacional.

A Câmara do Porto parece ter entretanto já lançado o concurso da empreitada para resolver o problema das inundações. O que corresponde, ao menos, a assumir publicamente, perante a cidade e perante o país, que aquilo que ali se construiu foi um lago artificial. É o nosso Alqueva: mais pequeno, cremos que mais moderado no custo, se calhar com uma albufeira menor. Seria de pensar nisso, talvez no próximo Verão ali pudéssemos já assistir a competições de desportos náuticos. E quando toca a meter água a gente já sabe que se sai sempre bem, carago!

A farsa

Deixem-me começar por agradecer ao João Pedro o comentário que me deixou no "post" anterior, com o seguinte texto: Manda o rigor dizer que não foram os partidos que suportam a maioria parlamentar que chegaram a acordo sobre esta pergunta. Foram os partidos que apoiam o governo mais o principal partido da oposição - o que é um pouco diferente, não será?

Sim, claro que é diferente! Quanto à correcção não é uma mera questão de rigor. É, muito mais do que isso, uma extensão da verdade subjacente à pergunta. O lapso que cometi comprova, entretanto, duas coisas. Primeiro que nunca a atenção foi demasiada para compreender algumas situações e, segundo, que da anedota à farsa não vai, muitas vezes, mais do que um saltinho de pardal.

O assunto passa, assim de repente, de anedota a farsa pela amplitude e pela gravidade que assume. Porque num universo de 230 deputados que compõem o parlamento, 215 conceberam o disparate e pariram o aborto, o que representa mais de 93 por cento. Como o Stape tinha, em finais de 2003, 8.687.945 eleitores recenseados e como, segundo dizem, os deputados representam os eleitores, isso significa que a pergunta foi formulada por 8.121.340 deles. Assim sendo, apenas 566.605 eleitores, representados no parlamento por uns insignificantes 15 deputados, não concordam, não entendem e não conseguem interpretar o simples, linear e objectivo português em que a pergunta foi redigida.

Pasme-se todavia com o milagre digno de Fátima e a beatificação devida por Roma. Os tais 566.605 eleitores, representados por solitários 15 deputados, correspondendo a menos de 7 por cento do total, não atinge sequer a taxa de analfabetismo que este estranho país oficialmente publicita. O que comprova a inatacável erudição e sapiência dos deputados eleitos para os representar. E que naturalmente inviabiliza quaisquer tentativas - como a minha! - de questionar a boa fé e o patriotismo daqueles 215 homens sábios.

18 de novembro de 2004

A anedota

Os partidos políticos da maioria parlamentar que suporta o governo chegaram a acordo quanto ao teor da pergunta a submeter ao eleitorado relativamente à constituição europeia, em referendo. É esta:

Concorda com a carta de direitos fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia nos termos constantes da constituição para a Europa?

Fica a perceber-se porque razão os alunos têm más notas a Português, porque detestam a disciplina e hostilizam os professores, porque arremessam para o lixo compêndios e gramáticas e porque acabam a não saber ler e escrever aquela a que chamam língua mãe. E não é caso para menos, afinal a razão está com eles! Muito mais complicado seria perguntar: concorda com a constituição europeia?

Campo de reeducação







Vou ouvindo pela manhã fora, na TSF, o ministro Sarmento reduzir a uma peça vazia e inútil o relatório apresentado pela Alta Autoridade para a Comunicação Social sobre os elogios públicos que o ministro qualquer coisa da silva em tempos dirigiu a um conhecido comentador em vias de extinção. O relatório, diz o ministro Sarmento, não tem credibilidade, ponto final, não se fala mais nisso.

A emissora nacional que usa a sigla TSF, programa a mando do independente Luís Delgado, supervisionado por Horta e Costa sob orientação directa da central de informação que o ministro tutela. E que o orçamento, na defesa do interesse e da soberania nacionais, legitimamente paga com o dinheiros dos nossos impostos e com os proveitos da venda daquilo que também é nosso.

Assalta-me a dúvida - porque eu tenho-as - quanto ao exacto significado de credibilidade. Pobre de conhecimentos e ainda de recursos, socorro-me daquilo que tenho à mão: o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 6ª. Edição, e anoto:

Credibilidade - qualidade do que é crível.

Crível - digno de crédito, verosímil.

Verosímil - que parece ser verdadeiro, que não repugna acreditar, provável, plausível, crível.

Quer dizer, se bem entendo, o ministro Sarmento limita-se a dizer que o tal referido relatório não é digno de crédito, não parece ser verdadeiro, repugna acreditar nele, não é nem provável, nem plausível, nem crível. Com menos palavras e mais curta conversa é simplesmente falso e mentiroso. Dói-me desde logo, pelo ministro. E faço os esforços de que sou capaz para me imaginar vestindo-lhe a pele, o que é difícil.

Deve de facto ser frustrante de todo governar um país e um povo que não são nem dignos de crédito nem sequer verosímeis. Politicamente a oposição não é crível e o mesmo acontece até com os Drs. Marques Mendes e Pacheco Pereira que, não sendo oposição, o imitam muito bem. A justiça não é crível e ainda hoje se lhe imputam irregularidades processuais que datam do século dezoito. Na educação resta a credibilidade da ministra e o rigor na colocação dos professores. Na saúde a única credibilidade limita-se à extinção das listas de espera e à redução das comparticipações nos medicamentos, apesar do esforço titânico dos hospitais esseá. Na defesa nacional e no mar, haja Deus, a credibilidade é assegurada pela encomenda de submarinos e pelo funcionamento dos estaleiros. No plano interno a credibilidade é assegurada pela Brisa e pelo ministro Mexia, dando-se o devido desconto ao presidente da câmara de Tavira. No plano externo a credibilidade já se reduz à exportação de traficantes e às sucessivas importações de droga da Colômbia.

Como sempre se soube, a rádio Moscovo não fala verdade. Como mais tarde acrescentou um secretário-geral, o tal relatório padece de parcialidade e assenta numa miserável ausência de fundamentação. Não há quem emita um despacho a mandar aquela gente para um campo de reeducação? Rapidamente e em força?



Dia estragado

Acordo estremunhado, levanto-me a cambalear, esfrego água fria na cara a ver se espevito. O rádio sempre ligado na mesma estação, velho hábito que já deveria ter corrigido. Já não tem interesse, já não vale a pena.

Vou ouvindo uma rapariga desabrida que parece querer impingir dez pensos rápidos a um dos passantes apressados que todas as manhãs fogem a correr para fora das estações de metro. A voz mais estridente do que lamurienta, insiste e reinsiste, não desarma.

Apercebo-me que obtém resposta. Voz masculina igualmente desabrida, ainda mais estridente, a escada rolante que não para a erguer-se do fundo na estação do Parque até à superfície. A água fria desperta-me, começo a perceber as coisas, apuro o ouvido.

A voz parece-me familiar, fecho a torneira, baixo a tampa da sanita a abafar o som da água que corre do autoclismo, aproximo-me do rádio, aguço o sentido. Não me enganei. Afinal a desabrida rapariga não procura vender pensos rápidos tão cedo, mesmo que a vida seja difícil. Está ao serviço da comunicação social e pergunta sobre a extensa novela do contraditório, com enfoque nos episódios da Alta Autoridade para a Comunicação Social e respectivo relatório que afinal parece beliscar o ministro qualquer coisa da silva.

Quem lhe responde, estridente e desabrido, é afinal o nosso super ministro, três em um, de Estado, da Defesa Nacional e do Mar que há, de ir e voltar.
...
Oh não! Não, não, não,não...
Estou num dos dias mais gratificantes como ministro da Defesa.
...
Quero lá saber! Quero lá saber!
Minha senhora: estamos aqui a gerar postos de trabalho, emprego, riqueza nacional, uma indústria a renascer, quero lá saber dessas coisas!
...
Eu vou ver os navios-patrulha, sabe? Minha senhora: estou a tratar de investimentos, tecnologia, postos de trabalho.
...
Eu é que sei o que é que para mim é importante, tá?
...
Boa noite minha senhora. Vamos embora Fernando: mostra-me lá os patrulhas!

Bem, posso continuar com a minha higiene matinal e com o esforço ingrato para despertar. Tranquilizo-me. Confio no futuro como se me fosse sair o euromilhões. A retoma está em marcha. Nem o Eurostat vai ter dígitos que cheguem para registar o crescimento.

17 de novembro de 2004

Secretário-geral

Desajeitadamente o PCP tirou hoje da cartola o camarada Jerónimo de Sousa como indigitado sucessor de Carlos Carvalhas no cargo de secretário-geral. Tão desajeitadamente que já toda a gente sabia, menos ele, embora confessasse não ficar surpreendido com a escolha. Agora, sem concorrência, sem nenhuma explanação de ideias e sem nenhum projecto, será eleito no próximo congresso, com cem por cento dos votos e por aclamação. Melhor nem mesmo a entronização do companheiro Santana Lopes na confraria do galo de Barcelos, com oitenta e nove por cento dos votos e por aclamação. Com o voto contra do gigante Marques Mendes que teve a coragem de deixar claro que as ideias se não medem aos palmos e que, caso assim se queira, se não deixa atrasar o pagamento de quotas.

Quanto ao PCP, renova-se. Quanto aos militantes que o dirigem, que não propriamente quanto à estratégia a seguir na defesa das ideias que perfilha. Tanto assim é que o Daniel Oliveira, por descuidada gralha do sacana do teclado, alude ao sectário-geral e às más notícias para tudo o que é canhotinho. Jerónimo de Sousa, orgulhoso pela nomeação, pensa que se poderá reedificar o muro de Berlim e injectar Fidel Castro com uma mezinha que lhe restitua a habilidade para conduzir tanques e a juventude para invadir Guantanamo. Um adágio popular diz que não deve o sapateiro subir além da chinela. Mas nunca ouvi nenhum que dissesse que não deve o serralheiro de ir além da bigorna.

O tabaco mata

Assinala-se hoje o dia nacional e inútil do não fumador. Com a solene hipocrisia dos actos balofos e o desvairado neoliberalismo daquilo a que chamam a economia de consumo. Gente engravatada irá às televisões pronunciar-se sobre o assunto, dizer palavras que pouca gente entende e que o resto ignora. Haverá discursos, balanços, pontos da situação. O governo chamará a si todos os louros das nenhumas vitórias que não houve. Conselhos e comissões de prevenção e combate ao tabagismo darão sinal de vida, arriscar-se-ão a pôr a ponta do nariz de fora da porta, apesar do tempo seco e do frio agreste. Reclamarão do Estado o aumento dos salários e a troca dos automóveis de serviço.

Os maços de tabaco ostentarão, com orgulho, inscrições que levem a todos as novas dos reis magos: o tabaco mata! O governo continuará a decretar, regularmente, o aumento dos preços. Contribuindo para reduzir o sofrimento de cada compulsivo fumador, reduzindo-lhe a esperança matemática de vida e encurtando-lhe o caminho que vai directo ao cemitério de Agramonte. E arrecadará o imposto que não servirá para nenhum desígnio nacional nem para nenhum fim de utilidade colectiva. Silenciosamente A Tabaqueira aumentará a quantidade de tabaco vendido, melhorará as margens, verá os lucros subir em flecha sem investimento e sem esforço. Congratular-se-á por contribuir para a redução do desemprego: cada fumador morto será um desempregado a menos.

Por mim vou celebrar o dia da forma sublime com que o cidadão comum encara o cumprimento da lei. Invocando o dia 2 de Março de 1993 e os dois cigarros, os últimos, que consumi antes das nove horas da manhã. Depois de, no dia anterior, ter encaminhado para a tesouraria da Tabaqueira o correspondente a nada menos que três maços inteiros, ou sejam, sessenta cigarros. Já fui à procura de um CD com um excerto da Tabacaria dito por João Villaret, que o disse como ninguém conseguiu voltar a fazê-lo até hoje. E vou desgastar-me o resto do dia a ler o poema inteiro, de fio a pavio, como persistente forma de combate e de resistência.

...
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
...


16 de novembro de 2004

Porto sentido

Os jornais noticiaram hoje que a discussão pública do PDM do Porto foi adiada. Não surpreende que, à semelhança do país, também o Porto vá sendo sucessivamente adiado. Lamentavelmente vai sendo também adiada a reforma de políticos que gerem a cidade e que deveriam de há muito ter-se dedicado à pesca ao longo da margem direita do rio Douro. Naturalmente sem nenhuma pensão calculada segundo os critérios da Caixa Geral de Depósitos para alguns dos seus felizes administradores.

Agora, e também à semelhança do que vem sendo habitual no que respeita à cidade, a razão invocada.só serve a chacota colectiva. De facto a discussão foi adiada por não ter sido entretanto aprovada a acta da sessão da Assembleia Municipal que aprovou as alterações. Porquê? Porque os responsáveis da mesa se esqueceram. O vereador Paulo Morais, moderadamente, lembra que a cidade não pode estar dependente deste tipo de atrasos. A cidade não pode é estar dependente deste tipo de irresponsáveis que o incauto cidadão elege de quatro em quatro anos. Não se pode aceitar como justificação a ambiguidade da responsabilidade política, conceito vazio de sentido e de conteúdo.

Os autarcas propõem-se governar a cidade e são eleitos pelos munícipes. São eles que se guerreiam para ser candidatos, não é o eleitor que os leva às cavalitas, à força e amarrados de pés e mãos. Fazem-no por sua própria vontade e são pagos por isso. Devem também ser responsabilizados por isso. Em termos disciplinares, em termos políticos e em termos cíveis. Alegar o esquecimento, seja no que for, mais do que incúria é insulto grosseiro a quem, confiadamente, depositou o seu voto nas urnas.

Cuecas no estendal

Cuecas de gente famosaEstou que não me contenho. Já as vi envergadas por crianças, adolescentes e adultos. De pano-cru, riscado, algodão e popelina inglesa. Ataviando militares de carreira, polícias e paisanos. Clérigos de sotaina e abstémias irmãs com voto de castidade. Trolhas, carpinteiros de tosco e picheleiros. Ministros, deputados, autarcas e eleitores sem cadastro. Nacionais e estrangeiros, brancos, pretos e mestiços. Fiéis da IURD e de outras crenças e acreditações. De Vilar de Perdizes a sítios onde mesmo o coelho só medre na coutada. Pelo joelho, meia perna, cobrindo as misérias, deixando tudo à mostra. O país, esse, esperançosamente, já alguém o pôs de tanga e se entreteve a mirá-lo discretamente.

Agora de gente famosa! Lisas, brancas ou de cor, às riscas ou aos quadradinhos, género tabuleiro de damas ou camisolas do Boavista. Em tecido ou de malha, com ou sem borboto. Imaculadas da lavagem com omo e aloé vera, encardidas, mesmo borradas, a crosta seca. Inodoras, perfumadas, mal cheirosas. Nunca pensei que usassem! A Lili de cuecas, a Cinha de cuecas, o conde de cuecas, o Santana de cuecas. O major, o Pinto da Costa, o Dias da Cunha, todo o sistema de cuecas. As nádegas a espreitar, roliças, redondas, obtusas, em formato de trapézio, descaídas.

Vou a correr à FNAC a comprar dois bilhetes de ingresso no evento. Cadeiras de orquestra, assim ao meio da sala, de onde se veja bem o que passa no Espaço T. É preciso estar atento, manter-me vigilante. A seguir hão-de certamente vir os cus. E desses só vi os de Judas e mesmo assim depois de ter pago pelo livro do António Lobo Antunes!

Monólogos interditos

O rescaldo de Barcelinhos
No rescaldo da excursão de fim de semana realizada por seminaristas do bairro da Lapa ao condado de Barcelos, para celebrar o S. Martinho, mastigar castanhas e provar o vinho, a paróquia acabou ontem abanada por um abalo sísmico não registado nos sismógrafos do Terreiro do Paço. Alguma comunicação social, tresmalhada e órfã da tutela de Rodrigues dos Santos e "sus muchachos", cuja demissão surpreendeu a RTP e confortou o ministro Sarmento, pôs-se diligentemente em campo a fazer o seu trabalho e a procurar a tal "cacha" para a celebridade.

Ia o ministro Portas saindo calmamente do seu forte, vestindo desportivamente casaco azul com botões de metal e levando o canito pela trela quando foi abordado por uma jovem estagiária, licenciada numa das 318 escolas superiores que o país financia para continuar analfabeto. Contratada a recibos verdes, a bem da redução de custos, do aumento da produtividade e da criação de riqueza com base no trabalho.

Repetidamente chamou por ele, para que a ouvisse. Senhor ministro, senhor ministro, faxavor. Era por causa do congresso, da sua ausência e da derrocada que esteve eminente, segundo consta na quinta, como me garantiu fonte segura.

Olhe jovem, eu gosto muito da juventude, passo os dias a trabalhar arduamente para que possa ter um futuro radioso, nunca me esqueço dela nas minhas orações da noite. Mas você é claramente inexperiente, nota-se-lhe nos tremeliques com que empunha o microfone e na gaguez com que desarticula as perguntas provocatórias que me quer fazer. Eu, que também fui jornalista de princípios, sem nunca atacar políticos ou denegrir cultos frequentadores dos saraus do casino, vou apenas responder-lhe às perguntas que eu próprio fizer.

Se me pergunta se eu sou o Paulo Portas, sou. Mas indignei-me com aquilo que vi na RTP, e posso indignar-me desde que o Dr Mário Soares me garantiu institucionalmente esse direito e a quem, por isso mesmo, já agradeci em cerimónias públicas e nas salas VIP dos aeroportos. Aliás é conhecida a admiração que mantenho por aquela ímpar figura pública. O meu único desencanto é não ter andado no Colégio Moderno, mas a minha família não tinha posses para pagar as mensalidades pouco socialistas.

Se me pergunta se estive em Lisboa no último fim de semana, estive. Sou de Lisboa, nasci aqui, na maternidade Alfredo da Costa quando aquilo era um estabelecimento respeitável onde não eram gratuitamente aceites mães solteiras. Depois resido também aqui, no forte, com terraço a dar para as ondas, onde me espreguiço ao sol, tendo o cuidado de não cair como o Dr Salazar que Deus tenha sob sua eterna protecção.

Além disso, sou ministro, triplamente ministro. Ministro de Estado, da Defesa Nacional e do Mar. São muitas responsabilidades para um homem só. Você já imaginou a carga da minha agenda? Ando para aqui com uma borbulha nos costas e uma estranha azia no estômago, que não prenuncia nada de bom, e ainda não tive tempo de ir ao médico. Nem posso embarcar, enjoo, dá-me vómitos, acabo por sujar o verniz do convés, não é figura que se faça. Especialmente quando se é ministro.

Se me pergunta se fui ao congresso, digo-lhe que não. Era longe demais e estava também ocupado demais. Mas mandei um ajudante e escrevi uma mensagem em que me esmerei. Não disse mal de mim nem de nenhum colega meu e dos realmente patriotas e competentes, como os do PP, até disse bem.

Se falei com o ministro não sei quê da silva? Falei com ele e com outros durante o fim de semana. Fui sabendo como corria o Gil Vicente contra o Futebol Clube do Porto, quis saber do tropeção do Benfica no enclave franco da Madeira. Fiquei na expectativa de ver como se sairia a cruzada do filho do major ao sultanato onde o sistema não penetra. E não penetrou, foi penetrado por seis vezes!

Se me pergunta se nos encontrámos em casa de um amigo comum, digo-lhe que sim. Fui convidado a ir lá tomar um café - Delta, para não dizer que não defendo o multi-partidarismo! - e apenas fui informado que ele passaria por lá. Como poderia adivinhar que ele ia lá estar exactamente quando eu lá fosse para o café? Sou ministro, triplamente ministro, predestinado por vontade de Deus, mas não sou o Luís de Matos.

Se não seria natural suspeitar da presença dele? Comigo nada é natural e suspeito de tudo. Mas nunca me ocorreu que estando ele logo ali um pouco acima, com pequena variação da latitude, lhe pudesse ocorrer passar por casa desse amigo comum, a estreitos 400 quilómetros de distância, para tomar um café, dar duas de conversa e trocar impressões sobre a não interferência na comunicação social.

Ai, agora deixe-me ir que se faz tarde. O canito impacienta-se, ainda me suja a parada, acaba a levantar a perna junto à guarita da guarda. Ó mamã! Prepara-me o iogurte Danone magro, com pedaços, das dez e meia!

15 de novembro de 2004

Funeral do sacrifício

O Dr Lopes, com a intuição política que o Sporting ainda hoje lhe agradece e a autoridade que Marques Mendes lhe não quis reconhecer de mão beijada, anunciou em Barcelos que não iria exigir mais sacrifícios aos portugueses. Estando estes ausentes da cidade e do recinto do congresso, foram os presentes a aplaudir para de seguida se colocarem na fila para a recepção de mordomias, as viagens de estudo e a reclamação de empregos.

Tal decisão política, do maior alcance social e benefício do senhor José de Mello, fica a dever-se ao faro do PM - salvo seja! - e à retoma económica, repetidamente anunciada algumas trinta e cinco vezes desde que José Barroso - também conhecido por Durão Barroso - prescindiu dos relevantes serviços de assessoria do bruxo Zandinga.

Mas desta vez é mais a sério do que das outras: o desemprego subiu! Situando-se em 6,5% em Dezembro de 2003, era de 6,4 em Março deste ano, caiu ligeiramente para 6,3 em Junho e recuperou vigorosamente para 6,8 em Setembro. O INE deve, naturalmente, passar para a tutela do ministro Sarmento, vice-presidente do partido e estratega mor da central de informações. O orçamento vai ser aprovado, o ministro da defesa emagrece por questões de imagem, o país está salvo. Pode o Sr Eça descansar em paz: isto não é nenhuma Campanha Alegre!

Era melhor turmas mistas

O funeralA TSF é mais um elo da cadeia do pouco escrupuloso universo da PT. Pouco escrupuloso porque nos priva, sem nenhuma razão e sem uma palavra, da sensatez, do equilíbrio e da erudição de profissionais de comunicação - antigamente conhecidos por jornalistas - como Mário Bettencourt Resendes e Luís Delgado a quem estava cometida parte de nossa educação como ignorados membros da classe operária, depois do abandono do sempre lembrado camarada Arnaldo Matos. E redu-los ao ofício amanuense de administrar empresas e maximizar o lucro como se fossem gerentes das lojas Modelo ou chefes de cozinha da Pizza Hut.

Depois dá no que dá, promovendo a realização diária de dois fóruns - rapazes de manhã, raparigas à tarde, nada de misturas que ainda se emparelham - devotados aos mais blogosféricos temas da actualidade. Os resultados da bola, as eleições do Benfica, o congresso do Lopes e a borracha do Rocha. Ignorantes e alarves, sem a superior orientação que lhes subtraíram, os portugueses discutem tudo como se fossem as inutilidades da Quinta e as recauchutagens da Lili. Hoje discute-se o funeral que o Vasco P. Valente noticiou na sua coluna necrológica. Há quem tenha gostado muito, tivesse achado que não havia flores menos nobres do que orquídeas, sinta o homem como um estradista. Há também quem se insurja contra as flores de plástico, tudo imitação, importadas dos arredores de Pequim, a comporem as palmas e as coroas, de fita negra e cartão de condolências.

Por mim, estradista foi só o Joaquim Agostinho que Deus haja, subindo os Alpes como se fossem a serra da Malcata. Com as feras do pelotão a gritar "doucement Tino", já com Huez à vista e a vitória assegurada.

14 de novembro de 2004

Praia da Vieira

Praia da VieiraAlém castelo de Leiria, Praça Rodrigues Lobo, rio Liz correndo tranquilo sob as amarelas tílias de Outono. Além Marinha, museu do vidro, fábrica Irmãos Stephens. Além pinhal do rei, Rainha Santa, regaço de rosas, D. Diniz o lavrador. Praia da Vieira, sóis de sábado, ventos de Novembro.

A antiga aldeia de pescadores, camisas grossas de xadrez, pés descalços, ajudando juntas de bois na recolha da rede. Boa faina, canastras de sardinha e carapau, mar amigo, pai e padrasto. Memórias passadas, papagaios de papel, velas inchadas arrastando fatos pretos procurando o equilíbrio sobre a prancha. O desequilíbrio e a queda, não se nasce ensinado, é preciso recomeçar.

Já está!

Regresso de uma ida quase a banhos e sei assim de chofre que à decima jornada o Porto foi ganhar ao Gil Vicente e o Benfica foi empatar a terras do Prestes João. Do antecedente já sabia que no confronto com os seus adversários directos o Porto tinha feito aquilo que lhe competia: ganhou em casa ao Sporting e foi ganhar fora ao Benfica. Agora a questão parece arrumada, pode o FCP encomendar as faixas, mandar o Fernandez de férias, deixar alguns brasileiros ir curtir as praias do nordeste antes de terminar a época.

Com a abertura do mercado em Dezembro de nada valerá o senhor Veiga investir no reforço do plantel os milhões de dívidas que possui nem o ex-presidente do Alverca aumentar o tamanho da jante e a largura do pneu. Não vai conseguir com isso nem maior velocidade nem mais estabilidade. É apenas questão de aguardarmos.

12 de novembro de 2004

África nossa

África nossa
Quase abusivamente, aproveito esta conversa como se fosse um mote e corro atrás da tal África dela. Fica-me a um tempo um esquisito sabor tropical, doce e amargo, goiaba e maboque de Catete, terras de Icolo e Bengo. Embalo em recordações de tempos passados, os pequeninos bicos de lacre vergando a esguia robustez dos capinzais, a bola de trapo, duas pedras ao acaso limitando a largueza da baliza e a dimensão do golo. Me perdoe o muito diligente maschambeiro, aquela não é a África dela nem a África minha: é a África nossa, completa, de costa a costa, do Atlântico ao Índico, com um qualquer mapa cor de rosa em tempos colorido pelo meio, caminho da Índia, picante de pimenta, perfume de canela.

E naquele tempo, tão nova, apenas Alda estava morta na fatalidade do bloco operatório e logo às mãos de Orlando, seu marido de igreja e assinatura. Restaram de herança os poemas que o tempo lhe deixara escrever, com casuarinas debruando a beira-mar e com premonitório testamento. Há tanto tempo também já partido, ainda andavas tu, Ernesto, cronicando por terras do planalto, deixando a doer o perfume ácido das tuas picadas de marimbondo. Às vezes nos embarcávamos todos, directos para o Bailundo, com o Fernando acelerando naquele seu MGB-GT tão verde como folha de abacateiro. Entrávamos de assalto em casa do Sancho, mais venturoso pai de tanta filha bonita do que comerciante de sucesso comprando milho e vendendo vinho de barril, abrindo a casa, o coração e a carteira. Caprichando. Voltávamos pela noite, o pó levantado pela estrada de 80 quilómetros, nos portávamos como sendo miúdos sem juízo, tocando campainhas, batendo às portas, basando com o Fernando curvando de prego a fundo, os pneus a chiar, o polícia na esquina na desconfiança dele. O Miau - Edelfride o esquisito nome dele, nunca conheci outro, nem talvez devia haver - ainda que era o capitão vitalício do Portugal de Benguela, mulato de um metro e noventa, pata quarenta e seis, chuteira só por encomenda, metendo o pé, enchendo o peito, fazendo o árbitro de nome metro e meio lhe tratar de senhor Miau. Portugal de Benguela, nome de ironia, riso de sarcasmo, anos atrás dos outros que era por destino campeão provincial. Provincial que lhe chamavam, como se fosse do Minho, do Alentejo ou do Algarve. Esses nomes tão portuguesmente genuínos como Catumbela, como Quipeio, como Calomboloca.

Naquele tempo ainda todos conhecíamos como Cantinflas, aliás Rui Monteiro, aquele que acabou aliás se chamando de Manuel Rui, que também está no nome dele, enquanto foi misturando por Coimbra faculdade de direito e confusão. Sempre as calças de casimira cor de caqui, muito justas para cima, boca de sino para baixo, engomadas na perfeição, vinco de lavadeira velha e sabedora. Penduradas no fundo do cu, só osso, ele muito direito, comandando não sei quantos castelos da mocidade. Só o penteado destoava, aquele cabelo baixinho de carapinha, parece que toda a vida tinha carregado quinda de fuba em cima da cabeça. Lhe vi aqui, uns anos para trás, boina na cabeça escondendo a mesma carapinha de merda, falta de barba com quatro pelos simulando pêra de Ho-Chi-Min. Guardando na pasta o espírito revolucionário, os discursos do camarada Mao e o cheque dos direitos de autor. Na livraria Leitura, apresentando um rio seco de quinhentas páginas, o olhar sobranceiro de quem ganhou o prémio Nobel, vaidade na mesma sem nenhuma emenda. Sabes como é o mulato: não vale a pena, vaidade que nem me contes!

Quando escrevo isto, assim pratrasmente, me encho de uma saudade que me moi, me invade, me transborda. Dói e fere. Lambe a ferida e cura. Vou à procura de um LP que tenho guardado aí no baú, raridade de vinil antigo, ponho-lhe no gira-discos balouçando como barquinho de papel nas bacias de esmalte com água da nossa infância. Da Ópera do Malandro não sei quem é que vai cantando ai que saudade que eu tenho dos meus doze anos, ai que saudade ingrata. Mas gosto: sabe a África, sabe a espaço, sabe a horizonte até perder de vista, catuitis malucos voando por cima do capim seco. Camus é que tinha razão: a África é uma festa. Não sei mesmo é porque é preciso as pessoas morrerem com fome!

A vitória

Sei que foi o ano passado e tenho na ideia que foi em Maio. Em Maio já há papoilas e passarinhos a fazer o ninho? Então foi em Maio! Um fulano bem vestido mas mal encarado apareceu num campo de pasto verde em frente a um palácio pintado de branco. Para quem já lá foi, assim a modos da Casa de Serralves, mas de outra cor e mais para o pequenito. Tinham-lhe posto assim uma mesinha alta no meio da erva, com um microfone em cima, o fulano chegou lá, tirou um papel do bolso, apertou os botões do casaco, desdobrou o papel e leu o discurso: "the war is over". Os fotógrafos tiraram-lhe muitas fotografias, bateram-lhe muitas palmas, ele disse adeus às pessoas assim à maneira do Vítor Baía.

Perguntei à minha afilhada Júlia que é filha da minha prima Adelina, filha do meu tio António que está doente, irmão do meu falecido e santo pai. Deus o tenha no seu eterno descanso, Ave Maria cheia de graça, em nome de Deus, do Pai e do Filho, que estava sentada no sofá, à minha beira. O que é que ele disse? E começou ela com aquela do Sérgio Godinho que até parece que é surdo, o que é que ele disse, o que é que ele disse, por aí fora. Cala-te mulher! Não foi isso que eu te perguntei e até não gosto desse gajo que usa o cabelo comprido, gosto mais do Quim Barreiros com aquele bigode, credo que até o sinto a picar-me os beiços. O que é que ele disse, o gajo da televisão.

Ah! Disse que a guerra tinha acabado. Ela, a Júlia, sabe destas coisas, esteve de emigrante na Suiça, parece que num restaurante, fartou-se de aviar pizzas e de falar com italianos, sabe aquelas línguas estrangeiras. Fartou-se de ganhar dinheiro, trouxe um carro novo que mete no saco o do presidente da junta, até toca daqueles cedeses pequenos, aquela cantiga engraçada do nós pimba.

Esta manhã estava eu a tratar das minhas limpezas íntimas e pessoais, com a porta da casa de banho fechada, tinha acabado de me levantar, o rádio sempre na Renascença por causa do telefone e do prémio que se tiver sorte me pode sair a mim. E no noticiário disse que eles, os americanos, que são aqueles do gajo do campo de pasto, já controlavam não sei quê por cento da cidade não sei de quê lá nos Iraques. Então a guerra tem sido boa e o desenvolvimento ainda melhor. Pelos vistos desde que prenderam o Saddam para lhe fazerem a consoada o país tem crescido mais depressa do que eles o conquistam. Porque do Iraque do ano passado, com a guerra acabada, não deve haver mais nada para conquistar, não é?

11 de novembro de 2004

Já podem ir

Em Barcelos está tudo a postos e a Quinta pode mudar-se, com armas, bagagens e estufas para as margens do Cávado. A Câmara mandou fazer uma limpeza extra ao centro histórico, garantiu a recolha do lixo - que apelida de resíduos sólidos - durante o fim de semana, encomendou reforço policial ao ministro. A vereação foi intimada a manter-se alerta, disponível em casa, pronta para qualquer eventualidade e capaz de reunir-se em comissão de crise nos baixos do tribunal da comarca. Foi ainda aconselhada a Bagoeira a reforçar as suas existências de vinho verde tinto e de broa e a aumentar a quantidade de bacalhau de molho e a confecção de pudim do abade de Priscos.

Paralelamente foram os munícipes em geral e as senhoras em particular aconselhados a manter-se em casa, de cortinas fechadas e persianas descidas, tomando conta das crianças e evitando que estas saiam à rua, ainda que o tempo esteja de sol. Quem, por inadiável necessidade, tiver que deslocar-se à rua foi aconselhado a fazê-lo de forma discreta, envergando vestuário que não dê nas vistas, desaconselhando-se vivamente a colecção de Fátima Lopes. Tanto quanto possível foi aconselhado a que o façam embuçados, colados às paredes e de preferência sem dinheiro nos bolsos.

Foi vigorosamente reforçada a segurança às tumbas de Gil Vicente e de Rosa Ramalho, tendo sido recolhidos todos os objectos de culto bem como as jarras de flores que as ornamentam. A descendência de ambos até ao sexto grau foi vivamente desaconselhada a aceder a quaisquer convites que sejam feitos para os representarem e, a título preventivo e para evitar a especulação e o açambarcamento, o preço do galo de Barcelos foi aumentado em cinquenta por cento. A entrada na cidade está permanentemente guardada por policiais a cavalo, prevenindo a hipótese do senhor Machado de Assis, a convite do Dr Santana Lopes, se deslocar à cidade para a degustação de uma posta de bacalhau à Zé do Pipo.

Assim sendo, já podem ir. A cidade está preparada para receber a comitiva de celebridades que o Dr Santana Lopes tem a caminho, precedida pela comitiva dos carros publicitários, pelos jornalistas que não cedem a pressões do poder político, pelo único empresário que no país não precisa do Estado e pelos inevitáveis malabaristas, comedores de fogo, gigantones e zés pereiras. O congresso pode seguir.