29 de outubro de 2022

Brasil: uma tragédia

 

Embora desencantado, há muito, com o inferior nível da política nacional, dei-me hoje ao desperdício de ir ver o definitivo debate televisivo entre os dois candidatos à segunda volta para a presidência do Brasil.



O Brasil é um grande país, um meio continente, com mais de duzentos milhões de habitantes. A ele nos une qualquer coisa desde que, por engano, lá chegou Pedro Álvares Cabral. A que nos ligou ainda mais a residência da corte portuguesa no Rio de Janeiro e a tarefa do rei D. Pedro IV como imperador D. Pedro I. E depois, e por mim, pessoas como Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Jorge Amado, Elis Regina, Maria Bethânia, Maria Gadú, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil.

Mas o debate da noite passada não ultrapassou as fronteiras do passado e do insulto. Eu fui, eu fiz, você não foi, você não fez. Acusações recíprocas de mentiroso e de ladrão, sem uma referência aos problemas que reclamam solução ou às propostas que se trazem para o futuro. Mais do que uma desgraça, uma verdadeira tragédia. O Brasil pode não ter nem mais nem melhor, mas o Brasil precisa e merece muito mais e muito melhor.

Pelos números que nos chegam o Brasil tem mais do que vinte milhões de pobres, sobrevivendo não se sabe nem onde nem com que recursos, sem habitação, sem educação, sem cuidados de saúde, sem emprego, sem recursos mínimos. Nem eles, nem o futuro em geral mereceram cinco minutos do debate. Numa coisa os candidatos estiverem de acordo, embora sem intenção: uma vergonha absoluta sob todos os aspectos. O debate, acrescento eu, que estou de fora e racho lenha. Afinal a montanha não pariu nem um rato!

 

 

Mulheres de Atenas

 

Fica-nos um poema sem respiração

Transido de pudor e de silêncio

Com a deselegância ousada das mulheres de Atenas

E o avesso longilíneo da seda natural

Um poema que se disse para Picasso ouvir

Enquanto a mão lhe percorria as ruínas de Guernica

Lá bem do fundo de uma guerra inútil

Sem corpo que restasse para se estender

Sob o cheiro ainda quente da metralha

Os braços decepados

Sem dedos para os anéis e outros adereços

E um anjo inteiro e completo

Voando na sua nuvem branca

A resguardar-lhe a poesia e a memória

Um tal poema que nos fica hoje

E o outro também

O tal poema que queria

Excessivo mas perfeito



 

19 de outubro de 2022

Seres racionais ou nem por isso

 

Discordar, divergir, confrontar, afrontar. Discordar sim, porque somos semelhantes mas não somos iguais. Divergir, porque temos identidade e opinião próprias. Confrontar ideias e propostas, selecionar, escolher uma. Conjugar mais do que uma, sem necessidade da afronta, da violência do confronto, do uso absurdo da força. A obrigatoriedade do diálogo, a conciliação, o entendimento. Para fazermos jus à apregoada condição de seres racionais que se põem de acordo em benefício de todos. Sem se ferirem, sem se agredirem, sem se traírem.



Tão simples de entender. Tão absurdamente difícil de pensar. Nenhuma paz se constrói pela força das armas, entre estilhaços e cadáveres. As palavras não carecem de metralha.