30 de agosto de 2016

A Portugalândia é um minúsculo país

A Portugalândia é um minúsculo país do meu imaginário perverso, com uma porta aberta para o mar e algumas dezenas delas directamente para o céu, todas sem números de polícia e sem distribuição domiciliária de correio ou recolha de lixo, poeticamente denominado resíduos sólidos. É assim um género de soneto muito idêntico aos que se podem encontrar por aqui, com rima pobre e métrica muito mal medida, cercado de água por todos os lados, menos por um que, se se tratasse de uma península, era um istmo. De resto, as águas correm montes abaixo durante o inverno, enquanto o eucalipto e a acácia crescem. Para que no verão os incendiários e os fogos subam montes acima, a devorar tarecos e animais, sem caminhos que lá levem a água que falta nessa altura, para os extinguir.

Mas, mesmo minúsculo, este país imaginário transborda de vossas excelências e doutores, todos a fugir do que corre pelos montes abaixo durante o inverno e sobe por eles acima, quando o Vesúvio parece vir de férias e soltar as lavas e as cinzas que toldam o céu limpo e disfarçam na paisagem as portas para o céu. Há gente esquisita que chega de longe, no bojo de enormes pássaros metálicos brilhando ao sol, de cabelos loiros e olhos azuis, a chapinhar a brancura dos pés nas águas salgadas e a expor ao sol os seios descobertos e a pele macilenta. Tarefa difícil, todas as vossas excelências ocupam os tempos de verão a governar e a imitar os passageiros dos pássaros de alumínio, mergulhando os pés gretados nas águas chocas que sobraram.

Se não fosse isso, sem as vossas excelências que são membros do governo, e ministros, e secretários de estado e deputados da nação e presidentes de juntas de freguesia, nem suas excelências poderiam legitimamente enriquecer, roubando, nem haveria ordem, nem seriam devidamente protegidos contra os meliantes, os homens bons que têm armazéns de latas de atum em óleo de girassol, nem haveria aumentos do salário mínimo com que se vai subir ao cimo da torre Eiffel e passear nos barcos que navegam sob as pontes de Paris. Este país pode ser imaginário e perverso, mas é feliz e vive contente. O que lhe falta em dimensão e realidade, sobra-lhe em vossas excelências e em ladrões!



26 de agosto de 2016

Hoje queria escrever-te

Hoje queria escrever-te. Escrever-te uma carta nocturna que aproveitasse esta intimidade do luar, a diluir-se no escuro que acompanha a lua nova. Que transbordasse de ternura e que fosse só silêncio, atrás desta cortina de nuvens que esconde o cintilar de todas as estrelas. Escrita numa caligrafia perfeita, com a elegância do cursivo inglês, exibindo a firmeza da mão que a desenha e a certeza convicta de tudo o que tenho para dizer-te. Uma carta em que as palavras saltassem das margens, como se fossem as águas de um rio a ocupar todo o espaço em volta. E que, apesar disso, não deixassem uma mancha ou uma marca ligeira no branco imaculado do papel. Uma carta que não precisasse de leitura porque, de facto, ela não precisa nem de palavras, nem de sons, nem de voos de pássaros que a traduzam para um qualquer dos dias do ano. Precisa apenas de saber dos teus olhos tranquilos durante o sono, sonhando a esperança e esperando pelo sol doce da alvorada.

24 de agosto de 2016

A melancolia fresca de uma tarde de Agosto

A melancolia fresca de uma tarde de Agosto, a areia nua estendendo-se num deserto macio até onde vêm morrer as ondas estreitas de noroeste. Um nevoeiro tardio subindo pelo rochedo e acolhendo o voo ruidoso das gaivotas, vestindo de crepes a capela com uma cruz altiva erguendo-se-lhe acima da cabeça. Como se a noiva, quase solteirona triste, esperasse pelo beijo breve dos sobrinhos, o vestido comprido varrendo o chão e escondendo-lhe a estatura curta, um ramo de flores levado de braçado, a caminho do altar e do sacramento. Para acabar a ser feliz para sempre, como o oceano de um azul imenso e largo.


Para além do nevoeiro denso, a persistência salgada do mar, arredondando as arestas da pedra glaciar. E ainda o silêncio oculto de mulheres jovens, com saias acima do joelho, os seios erectos e maternais espreitando pelos decotes generosos das blusas de chita leve. Encostadas a velhos cascos de barcos abandonados na praia, com as quilhas perdidas durante a faina, nas vagas do mar alto. Já só servindo para a repouso de voos prolongados e para dar um eco cavado ao som bruto das tempestades que chegam de longe. Como se fossem viúvas prematuras de pescadores que lançassem as redes à procura de peixe e de pão.

22 de agosto de 2016

O poema não desce pelas encostas das nuvens

O poema não desce pelas encostas das nuvens, escorregando pelas cores do arco-íris, não é cristal fino de granizo em noite enluarada de agosto, não é visão de sereia em dia de mar sereno sem ventos de levante. Não é rima certa e musical, métrica exacta, quadratura do círculo, verso sobre verso, como tijolos de que se ergue uma parede, catorze versos contados pelos dedos, uma régua de cálculo que se mete de novo no bolso da camisa, “erros meus, má fortuna, amor ardente”(*), glória ou sofrimento, a vila de Constância e o abraço definitivo de dois rios a caminho do oceano. O poema, mais do que forma, calcário ou granito, pedra sobre pedra, é conteúdo, é substância, são todos os sentidos à flor da pele, todas as palavras de corpo inteiro e completo.

O poema é uma ideia breve, uma frase curta anotada à pressa numa folha de jornal, uma junção laboriosa de vocábulos, dois cadeados presos a uma das pontes sobre o Sena, testemunho do amor eterno das águas que, de mão dada, correm para o mar. O poema é o grito, a voz solta da garganta, a boca de coração aberto, a pele arrepiada, um calafrio polar descendo pela espinha, a engelhar um papel de circunstância que serve de memória. É sonho, é vida, flor abrindo como papoila na primavera, fruto amadurecido apanhado na época das colheitas, o pão quente para as noites longas do inverno, o calor da lareira atravessando-nos a alma até à chegada das manhãs frias, o movimento perpétuo, o “vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima”(**).

(*) – Luiz Vaz de Camões, Sonetos.
(**) – Fernando Pessoa, heterónimo Álvaro de Campos.

16 de agosto de 2016

O trigo vai crescer para cima

Em mil novecentos e cinquenta e sete, nas margens do antigo e famoso rio Tibre, os mais altos responsáveis de uma mão cheia de países, sentaram-se à mesma mesa, posta para o almoço com talheres de prata e copos de cristal. E decidiram solenemente, batendo com a mão convicta no peito descaído, como se estivessem na basílica de São Pedro, desmentir as teorias verdes e absurdas de Bertolt Brecht. Com a maior e celebrada das imaginações e na mais elegante e bela das caligrafias, chamaram ao farto repasto “Tratado de Roma”, instituíram comunidades, debruçaram-se longamente sobre a excelência do menu e decretaram, com as faces carregadas e o ar circunspecto e responsável que, doravante, em todas as searas o trigo cresceria para cima. Posto o que, decididos e ágeis, ensaiaram a pirueta, fizeram o pino e, de cabeça para baixo, assinaram os tratados.



O futuro foi de mulheres engravidando sob o olhar competente e virgem do clero e dos ministros, com uma só comunidade unindo-se à beira Tejo e expandindo-se para além das margens do Danúbio, ao som azul e rosa das valsas de Strauss. Cresceu para além de todos os dedos que enfeitam o grotesco corpo humano, sempre sujeita à mais do que igual e inteligente supervisão das ordens de Berlim. Novas verdades se escreveram nas paredes e outras certezas despontaram no horizonte, do mesmo lado de que nasce o sol. Inventando os mercados para descobrir o sucesso e aumentar os lucros da alta finança, saber que é preciso mais esforço para menor cansaço, menor salário para melhor vida, menos lugares para mais emprego e nenhum desesperado presente para toda a desesperada falta de esperança no futuro. E feita a cambalhota, assim vamos: quanto mais se escavam as covas para enterrar os mortos, mais os buracos crescem para cima e mais depressa se sobe para o paraíso.

14 de agosto de 2016

Chamar Cabo da Boa Esperança ao Cabo das Tormentas

Chamar Cabo da Boa Esperança ao Cabo das Tormentas, deixar zarpar frágeis caravelas ateando fogo aos promontórios, o Adamastor na ponta da língua afiada de Pessoa, uma jovem adolescente adormecida, coberta por um véu de tule branco, virada para a gateira da porta por onde às vezes entra a vadia liberdade dos felinos. O Índico ali logo ao dobrar da esquina, como um rebelde pingo de água que caísse da torneira e se fizesse onda que apenas fosse morrer às praias brancas de Madagáscar, deixando os destroços de todos os naufrágios à deriva nas correntes frias do mar alto. Águas transparentes como um aquário do tamanho do oceano, povoado de coloridos peixes tropicais, os recifes de coral elevando-se do fundo, como uma submersa cordilheira dos Himalaias.



A praia imensa de águas claras, correndo pela linha indefinida da maré, um lugar sem tempo e sem horário, o luar como se fosse sempre lua cheia, afagando as noites e as folhas das palmeiras onde descansa uma brisa a que apenas falta o voo dos pássaros. Uma miragem, como se um oásis lentamente nascesse no meio do deserto, logo abaixo do cruzeiro do sul e de todas as estrelas de que se borda o firmamento. Nós ali, imóveis e perfilados de medo, pensando que não houvesse verão e que o sol afinal não servisse para nada. Aguardando pela nossa vez, como se estivéssemos nas bichas dos centros de emprego e da distribuição de pão, como se o amor precisasse de alimento. As mãos dadas, os dedos escorridos, o amor caindo em gotas breves sobre o silêncio, e tudo tão natural como se fosse hoje.

10 de agosto de 2016

Subiu o sol pelo calendário

Subiu o sol pelo calendário, muito acima do equador, cumprindo a agenda de um ano bissexto, até esbarrar com o trópico de câncer, um paralelo geograficamente perdido nas páginas ardentes de um romance de Henry Miller. Marcou o solstício, despiu-se dos últimos agasalhos que lhe tolhiam os movimentos, pendurou o verão num cabide preso ao branco caiado de uma parede e deixou que as flores virassem frutos e amadurecessem. Sorriu aos oceanos, aquietou calemas, espalhou pela areia das praias um vento fraco e fresco, trouxe o abandonado verde das algas até à espuma onde morrem as ondas, à falta de forças para chegar mais longe e mais além, e partiu o horizonte ao meio como se fosse uma laranja acabada de colher.


Aqueceu, fez subir os índices nos termómetros que noutros tempos eram de mercúrio, rebentou o espaço limitado onde o aprisionavam, ardeu, espalhou-se até onde falta o horizonte que desce das nuvens, subiu sôfrego e faminto por todas as encostas, ocupou o cimo de montes e colinas, consumiu tudo quanto se lhe atravessou no caminho, fosse ou não resistência que se opusesse ao seu domínio. Reduziu a nada todas as vontades que apenas se unem nos momentos de tragédia, deixou crianças sem o peito farto das mães, cobriu com espirais de fumo denso e cheiro a desolação, tudo quanto nos cabia no olhar vasto. Impotentes e inúteis, homens sábios, importantes e circunspectos, sentaram-se à mesma mesa, discutindo o sexo dos anjos e aguardando pela ementa.

8 de agosto de 2016

Partir de madrugada

Partir de madrugada, quando ainda há madrugada no teu corpo e sonhos no fundo claro dos teus olhos cerrados. Partir silencioso, sem deixar rasto nem lágrimas, espalhando a saudade breve sob a luz mortiça dos candeeiros das esquinas, prestes a apagarem-se. Aproveitar as ruas ainda desertas, ter a certeza de estar só, saber que apenas poderei estender a mão à manhã que se anuncia e levá-la ao bolso das calças, para guardar coisa nenhuma. Baixar a cabeça para evitar as pedras do caminho e os acidentes do percurso, e saber que assim darei alguma protecção à esperança verde que carrego no cansaço magoado dos meus olhos.


Seguir pela beira do rio que corre sereno, trazendo consigo o sol que brota com as primeiras águas da nascente. Todos os barcos quietos, de luzes apagadas e sem pessoas no convés, presos às amarras que os prendem ao cais adormecido, aguardando pela azáfama irrequieta da jornada. Aguardar pelo meio da manhã e sentir que o sol me aquece os ombros e conforta o vazio largo que trago no estômago. Saber que por essa hora o sol já te atravessa as frinchas da janela e te beija o corpo que espreguiças, em decúbito dorsal, coberto de organdi azul. E que não deste nem vais dar pela minha ausência.

5 de agosto de 2016

Voltar devagarinho ao teu regaço

Aproveitar esta serena e tranquila manhã de sol e verão, para voltar devagarinho ao teu regaço. Aconchegar-me ao travesseiro confortável e morno dos teus seios, sentir nas narinas o perfume alegre e fresco que se te solta dos cabelos, sentir o veludo macio das tuas mãos acariciar-me a testa e alisar-me os caracóis rebeldes. Abrir lentamente os olhos, transbordando uma esperança verde que apenas se encontra nas copas das magnólias, enfeitadas de branco no início de agosto. Como grinaldas nas cabeças das noivas que ainda se alinham às portas das igrejas nas tardes de sábado, com saltos altos e trejeitos nervosos nas pontas dos dedos.

Procurar o perfil suave e redondo dos teus joelhos, sentir-te a pele macia tisnada pelo sal que traz a maresia, sacudir as partículas de areia que se te agarraram como parasitas da beira-mar e deixar este persistente vento norte seguir o seu caminho. Sucumbir ao cansaço que me deixou tão longa ausência de ti, escorregar sonolento pela cordilheira de ternura que mora no teu peito e acabar aninhado no teu colo, como se fosse a criança que sempre fui, os olhos cerrados sonhando infinitos, a tua mão protectora sobre a fragilidade do meu ombro e o repouso do meu sono.


3 de agosto de 2016

Manhã de agosto

Manhã de agosto, o sol correndo pelas ruas desertas, um breve lençol de alto-cúmulos a alguns seis ou sete mil pés, as escolas encerradas, o país na praia, molhando os pés, esturricando sobre a areia fina, sem nenhum sinal de brisa ou de vento que nos chegue de Espanha. No porto, o cais também deserto, nenhum bulício de chegada próxima, nem passageiros nem bagagens, poucos barcos silenciosos atracados sem sinais vitais, os motores calados, os pavilhões caídos à míngua de vento, uma paisagem sem nenhuma necessidade que se escreva a Ode Marítima. Álvaro de Campos, sem identificação e sem reconhecimento públicos, exposto para as filas de turistas apinhados no passeio fronteiro aos Jerónimos, sob o pseudónimo vulgar de Fernando Pessoa, sem que lhes interesse saber se falava inglês, quem terá sido o arquitecto do mosteiro ou tão pouco quem tenha sido o abastado dono da obra.


E o venturoso senhor D. Manuel ausente deste lado do rio, desinteressado do ponto mais alto da Torre de Belém, de onde, ainda longe, se divisam as caravelas carregadas de cravinho da Índia e de escravos do Senegal, as velas enfunadas, o vento de feição, a linha de chegada para lá da bruma onde a burocracia da alfândega espera pelo imposto. El rei erecto, postado no centro da vila de Alcochete, onde foi parido, transformado em bronze, virado para o rio, com Lisboa ao fundo, como que adivinhando o terramoto e o regicídio, com o Marquês e a ordem ainda por nascerem. Mesmo na vila ninguém sabe dele, ninguém o viu passar, não esteve no quartel dos bombeiros voluntários, de que certamente é sócio honorário, e não há nenhum palanque montado onde se possa ter recolhido, à espera das largadas de toiros que às vezes correm disparados pelas ruas do povoado.

1 de agosto de 2016

Há milhares de anos tudo era espaço

Há milhares de anos tudo era espaço ao meu redor, bandos de aves imponentes, de asa aberta, desenhavam algumas nuvens brancas em fundo azul e deixavam poemas de amor escritos no rasto geométrico do voo. Não havia cumulonimbus que brotassem do horizonte, como se fossem vulcões a ameaçar o verde virgem que enchia de florestas toda a paisagem que se estendia sobre os rios. Depois, uma sequência interminável de fenómenos foi limitando o espaço, reduzindo o tamanho das aves e construindo-lhe fronteiras, onde não pudessem ser mais do que prisioneiros sem culpa, vigiados de perto por uma nova espécie incapaz de voar pelos seus meios e de ver para além do outro lado da rua.


Hoje falta quase todo o espaço e sobram rotas sem asas para as voar e, à falta de forças, cresce a revolta que, à sombra dos ponteiros dos relógios parecia estar adormecida. Tudo é revolta, é cansaço que leva à berma do caminho e que aí nos paralisa, sentados, sem acção e sem sonhos que façam o céu azul, onde ainda se possam desenhar nuvens. A solidão que desce pelos olhos abaixo e os rios de sangue que ninguém vê e que encharcam o peito a que falta um apoio simples, um gesto de ternura, uma palavra calada que se não ouve, um voo. Mas que se sente tão profundamente, como se não houvesse nem mar para descobrir nem nenhuma distância para vencer e tudo, afinal, fosse mesmo aqui ao lado dos dias.