30 de maio de 2017

Escrevo liberdade

Esmero a caligrafia e escrevo liberdade
Com uma letra pequenina e muito regular,
Como se fosse um lago no meio da cidade
Ou um cheiro fresco a maresia, um sabor a mar.
Sinto-lhe o ritmo, escuto-lhe a melodia,
Apurado alimento que é para os sentidos
E soletro-a toda a noite, até ser dia
Como se fosse música a entrar pelos ouvidos.
Depois liberdade é uma palavra apenas
Com uma corda à volta do pescoço,
Minúsculo peão indefeso no centro das arenas
Vítima dos clamores que vejo e ouço.
Pronta para a execução sem julgamento,
Palavra solta a ser levada pelo vento.

27 de maio de 2017

No tempo em que celebravam o dia dos meus anos

No tempo em que celebravam o dia dos meus anos
Ainda eu não tinha nascido,
Ainda o novo testamento aguardava por ser escrito
E Jesus Cristo ia de sacola ao ombro
A caminho da escola
Porque já havia abecedário.
Não se sabe como nem quando
O sol surgiu no meio do nada para criar a noite
E o filho dela se fez luz e dia e descoberta.
Foram inventadas as montanhas
De cujos cumes brotaram as pedras soltas e as nascentes,
e os declives e os rios e as águas correntes.
Foi de certeza Van Gogh o primeiro homem,
Criado para descobrir as cores e as tintas e os pincéis,
Para pintar de azul todo o céu redondo
E todos os mares líquidos sem barcos,
Sem que houvesse maçãs ou paraíso,
Para que fosse tempo do degelo e pudesse surgir a Primavera
Carregada da vida vermelha e breve das papoilas.
Só depois Picasso terá pintado a Guernica
E inventado a pólvora
Para que o homem sentisse a força da tragédia
e a necessidade da guerra,
Ao mesmo tempo que as andorinhas construíam os ninhos nos beirais
E as cegonhas tratavam das crias no alto dos pinheiros.
Só mais tarde sobrou tempo para os deuses,
Quando o homem se julgou ser superior a todos eles
Passou a adorá-los e escreveu orações e ritos para os celebrar.
E se sentou à mesa do jantar
Pronto para repartir o mundo e desenhar países e fronteiras,
Inventou recursos,
Descobriu o fogo,
Fundiu o ferro para fazer colares para as mulheres
e metralha para os estilhaços.

E quis só para si todo o pão que estava sobre a mesa.

[Papoilas, de Van Gogh]

25 de maio de 2017

No dia de África

No dia 25 de Maio, que é o dia de África. África que tem todos os dias do ano. Porque África podia ser um bairro e não é. Podia ser um sítio, um lugar, uma aldeia. Só uma vila, só uma cidade. Podia ser um país, um continente, um satélite. Um mundo inteiro. Podia ser um sistema planetário, um universo. Até mais do que tudo isso, um faz de conta. E não é, porque África não cabe em nada disso. África é um primeiro nome, e um segundo, e uma sequência interminável deles. Um alinhavo sempre provisório que se não sabe onde começa ou quando acaba.

África é um nome de lugar, um vikanjo escondido para lá do carreiro, correndo a custo por sob as frondosas copas das árvores tropicais. É uma chuva de meia hora, que cai com a intensidade de uma paixão adolescente que se sonha. E que se vive, intensa, demolidora. Um extenso capinzal que nos encobre e que acolhe na sua solidária dimensão répteis e insectos. Com pequenos pássaros balouçando lhe nas pontas, ao ritmo de um vagaroso vento quente que chega do deserto.

África é nome de rio que corre para oriente ou para ocidente, toda a rosa-dos-ventos. Com o sol sempre a nascer por detrás da mesma mulemba. É nome de todas as Kalandulas em que se precipita ao longo do percurso. Nome de todas as curvas e contracurvas em que se espreguiça antes de morrer num estuário a saber a sal e a peixe prata, desde todas as alturas. Morro do Moco ou Kilimanjaro.  África é nome de peixe, doce como todas as lagoas do Panguila, bom como kakussos de todos os rios.


África é mukua, nome de fruta, nome de pássaro, katuiti, nome de bicho, palanca preta. Nome de pessoa, nome de terra. Xamissassa, a mística que mora no meu peito, a mulemba grande no meio do largo, os velhos com as pernas estendidas ao sol. Nome de pedra grande onde se pisa o milho, arrastando as pancadas ao som interminável da lenga-lenga, enquanto a farinha alva se fabrica para a comida de logo à noite. A panela no chão, todos sentados em volta, dois dedos da mão respeitando as hierarquias. Fuba boa essa, a que fez esse pirão. O carapau seco, assado no fogo, escaldando os dedos da outra mão.

África é o humanismo de Senghor nas matas do Senegal, negritude do século passado. Partilhado com o mundo, sem direitos de autor e sem propósito de lucro. África é Cabinda, com Simulambuco ou não. É Kwanza, N’dalatando, Kaxito, Kibala, Bailundo, Benguela, Huambo, Bié, Menongue, Ondgiva, Kunene. África é a extensa liberdade com que se escreve cada nome, sem regras e sem acordo ortográfico. Cada um deles, um frenético passo de dança, uma eminência de bassula, as costas no chão. Terra vermelha da Sambizanga, areia quente da Praia Morena. África é mais do que tudo isso. Kambariangue, kambarietu.  África é mãe,  Mãe África!

22 de maio de 2017

Ama a tua língua

Ama a tua língua. Aprende-lhe com rigor cada palavra, soletra-lhe com ternura cada sílaba. Saboreia-lhe a frescura de cada som, inebria-te com o aroma suave de cada sinal. Constrói cada frase como se fosse uma parede. Elegante, sólida, indestrutível. Distribui a pontuação como se fossem sementes deitadas à terra fértil. Rega a seara, monda as ervas daninhas. Lê-lhe o crescimento em cada hora que passa, protege-a das intempéries. Abre a terra seca à chegada vespertina da água corrente. Apaixona-te. Deixa que a língua te incendeie o coração, que seja a tua pátria. Um rio em cada página de um dicionário, uma sombra de Verão em cada ditongo. Lê e escreve muito. Sempre. Muito e sempre simples. Como se colhesses cerejas numa fresca manhã de Junho. E as saboreasses como se os cachos fossem irresistíveis flores maduras. Estende-lhe a mão como se fosse a tua namorada, senta-te com ela à beira mar, aspira a maresia, segue o voo das gaivotas. Ama-a como se fosse uma mulher, a mulher da tua vida. A tua mãe, a tua companheira, a tua amante. O teu amor definitivo!


17 de maio de 2017

Senta-te comigo à beira mar

Senta-te comigo à beira mar, onde vem morrer a última espuma da maré. Olhemos o sol que se estende sobre o horizonte, como a toalha que se põe na mesa, para o jantar. Dá-me a tua mão, com rosas amarelas desabrochando-te na ponta dos dedos. Enlacemos os dedos. Descubramos o sabor feliz que tem a maresia!


16 de maio de 2017

Morreu o padre Cachadinha

Esta fotografia foi tirada no Paço Episcopal de Viana do Castelo, em 4 de Novembro de 2014 onde, aos 86 anos, convalescia de uma recente intervenção cirúrgica. Mesmo debilitado, mantinha o inconformismo e a urgência. Tinha pressa de regressar a Angola e à “sua” Católica, onde os alunos o esperavam para se apresentarem a exames, devidamente preparados.



Hoje o jornal traz-me a notícia da sua morte, aos 88 anos. Faltam-me as palavras, sendo certo que a oportunidade também as dispensa. Fica a grata memória de um último encontro. E, muito mais do que isso, a de um longo percurso de largas dezenas de anos, desde os bancos do liceu. A vida levou-me mais um dos meus afectos!

13 de maio de 2017

Duas lágrimas sobre o orvalho da manhã

Duas lágrimas sobre o orvalho da manhã. O sol atravessando as copas perenes das azinheiras. Algumas nuvens brancas riscando a serra. E quase cem anos de permeio. E tu menina, feliz no teu vestidito novo e pobre de chita barata. Correndo pelo carreiro, quando te é curto o passo, para conseguires acompanhar a marcha de mulheres adultas a quem a tua mãe te confiou: não me percam a rapariga.

Duas imagens e a proximidade a que me ficas, na larga distância dos anos. Da Cova da Iria não resta quase nada, nem o nome. Desapareceu o charco na cova do terreno, as pedras que emolduravam a serra e, mesmo as azinheiras, vão escasseando na beira estreita dos caminhos. Pararam por desuso, ao abandono, os moinhos de vento da Fazarga e da Ortiga.


Hoje fizeram santos os pastorinhos que morreram crianças. Sabes, não é importante. Cada mulher é canonizada com cada filho que dá ao mundo. Aos anos que te tenho neste altar que trago na cabeça, minha Mãe. Apenas por isso te trago aqui!

10 de maio de 2017

São Leonardo

Chegar a São Leonardo
É como despertar para o sonho.
A paisagem austera sem a flor de um cardo,
Fragas pintadas do verde suspenso do medronho,

A capelinha como um farol lá no alto
Toda de branco, o cheiro fresco a cal,
A encosta descendo pelas rochas de granito ou de basalto
E o capitão ao leme como se fosse piloto de Cabral.

Que rio tão distante corre lá no fundo
No meio de montes e de vinhas,
Um horizonte que parece de outro mundo
Onde os penedos têm o tamanho de andorinhas.



7 de maio de 2017

Mãe!

Mãe. Apenas três letras do alfabeto. Uma curta palavra que não cabe nas vinte e quatro horas do primeiro domingo de maio. Viagem de circum-navegação completa, todos os sentidos despertos, todos os rumos utilizados, todas as fases da lua, todas as estações do ano, todos os continentes, todos os oceanos, todos os momentos. Especialmente todos os momentos. Instantes, relâmpagos, raios de sol, momentos curtos, momentos longos, momentos infinitos. Tantos anos a balbuciar-te o nome, sem conseguir pronunciá-lo, a voz a faltar-me, o nó enorme na garganta. Quanto mais tempo ausente, maior a presença, sempre constante, o sorriso humilde e permanente, o olhar macio, o mundo todo no teu regaço. Nenhuma mãe cabe em dia nenhum, nenhum tempo é para te esquecer ou para te recordar. Todos os dias são teus, e todos os meses, e todos os anos. E sempre, e hoje também!
[Em 26 de Novembro de 2005 tinhas 94 anos, completados no mês anterior. E estavas feliz, e eu também!]