26 de janeiro de 2013

Estado So-SS-ial


Liliana Melo, uma mãe a quem o sapiente e justo tribunal de Sintra decidiu retirar sete dos seus filhos, tem diversos factores contra si. Dos quais, desde logo, três são particularmente relevantes: Liliana é preta, é pobre e é fértil. Primeiro é negra e ser negro, mais do que ser de uma raça diferente é uma fatalidade e um estigma. O negro é assim como o amor na ponta da esferográfica de Miguel Esteves Cardoso: é fodido! Se em pleno Rossio, ao fim de um estafante dia de trabalho, houver um homicídio, é claro que foi um preto. Se a meio da noite qualquer desgraçado é descoberto esfaqueado numa valeta, seguramente foi um preto. Se qualquer loja, resistindo à crise e ao ministro das finanças, se mantiver ainda a funcionar e tiver sido assaltada, é mais do que certo que foi um preto. E se alguém tiver retirado das prateleiras do Pingo Doce uma lata de atum e um chocolate barato é mais do que provável que tenha sido um preto. Ou, muito remotamente, um romeno!


Depois Liliana é pobre ou, de forma hipocritamente correta, menos favorecida. Seguramente a caminho de ser ainda mais pobre ou, persistindo na hipocrisia, a caminho de ser ainda menos favorecida. O que  regra geral quer dizer que não possui nenhum mestrado ou doutoramento, não utiliza nenhum BMW topo de série, não tem idade para ser reformada e menos ainda direito a uma pensão idêntica à do presidente da coisa que, por favor, vive à borla em Belém e abre os jardins às criancinhas – menos favorecidas! – no dez de junho. Muito provavelmente está desempregada e não tem marido ou o tem desempregado e alcoólico, sem direito a subsídio ou a rendimento social não sei de quê. Se calhar também não é nenhuma beleza como as candidatas a misses que se sujeitam a plásticas frequentes, conforme as exigências da moda, aumentando as mamas hoje e reduzindo o cu amanhã.

Como se isso não bastasse a mulher, por heresia, ainda é fértil. E sendo o acto sexual uma coisa para fazer filhos, como dizia aquele antigo deputado do CDS - que tinha só um, coitado! – ela tem uma uma catrefa deles e aquilo parece ser cada tiro, cada melro. Circunstância que, certamente, o Dr. Júlio Machado Vaz estará na disposição de explicar numa base científica e o professor Marcelo disposto a comentar na TVI um domingo destes, desde que lhe paguem. Só por isso a Liliana deveria viver a expensas do estado e este ficar-lhe eternamente grato pelo seu contributo para o aumento da natalidade, para o aumento do número de eleitores -  se ainda sobrar país quando chegar a altura – e para o aumento da subvenção que os partidos políticos vão discretamente arrecadando à nossa custa para pagar o custo das eleições e depois suportar-lhes os resultados.

Mas o estado hoje nem se sabe o que é, até nem se sabe bem o  estado a que isto chegou. No meio de tudo o estado ajuda a mãe e os filhos, contribuiu para a sua alimentação, para a sua educação, para o seu futuro? Por intermédio daquele ministro que chegou a Belém, para tomar posse, de motorizada e de esferográfica Bic e saiu de BMW, devidamente recostado no banco de trás, precedido por um batalhão de batedores? Nada disso! O meritíssimo tribunal de Sintra determina que Liliana laqueie as trompas, o que ela recusa porque até nem sabe o que é isso. E se calhar a maioria dos juízes também não. Atribui-lhe um subsídio, custeia o estudo – gratuito, lembram-se? – dos filhos, garante-lhes alimentação digna, fornece-lhes livros para que se preparem para o futuro? NÃO!

Doutamente decide que os filhos sejam retirados à mãe e dados para adoção. Literalmente, roubam-lhos!

24 de janeiro de 2013

O ministro Gaspar foi ao mercado


O ministro Gaspar levantou-se ontem muito cedo, era ainda noite. Tomou banho, perfumou-se com lavanda da empresa Ach. Brito – para proteger a indústria nacional e equilibrar a balança comercial -, mudou de cuecas e envergou o seu fatinho domingueiro. Ao pescoço pôs uma gravata de seda pura, em segunda mão, cortesia de um pobre franciscano que tem uma pensão miserável de alguns 150.000 euros – será que dão para as despesas dele senhor Silva? – e que, sendo engenheiro por uma universidade séria, se viu na necessidade de ser banqueiro para não emigrar. Mesmo que o pudesse fazer a bordo do avião que mantem às suas ordens, com algum conforto e algum recato que lhe acautelasse a reputação e o regabofe a que se habituou.

Já com a alvorada a querer despontar a oriente e as luzes das ruas ainda acesas, Gaspar foi à missa, com meia dúzia de batedores a abrir-lhe caminho por entre a chuva persistente que caía e duas dúzias de seguranças a vigiarem os perigosos e ameaçadores notívagos caídos no espaço vazio dos portais, entre a falta de abrigo, a necessidade de uma refeição quente e as calorias de um pacote de litro de uma zurrapa qualquer, comprado nas lojas do Minipreço, para desequilíbrio da balança comercial e agravamento do défice.

Assistiu à missa, usou o terço que a madrinha lhe levou de Fátima, rezou a salvé rainha, bateu repetidamente com a mão no peito, ajoelhou-se – sim, ajoelhou-se! – e comungou como se fizesse a primeira comunhão. Ajoelhou-se, ele que só se ajoelha perante a poderosa Sra Merkel, omnipresente e omnisciente, e perante Deus nosso senhor que lá tenha em descanso o governo anterior e o persistente defunto de Santa Comba.

Já à luz do dia, encolheu-se no banco de trás do BMW para não o verem e julgarem que afinal também ele contribuía para o desequilíbrio da balança comercial e não se fazia deslocar numa qualquer motorizada fabricada algures na zona de Águeda, embora evitando o percurso que passasse em frente da casa de família do Sr Manuel Alegre, por acaso ausente para a conspiração e para a caça aos gambuzinos.


E foi ao mercado, coisa de que gostou muito, ele e a patroa! Onde todas as coisas estavam, por acaso, pela hora da morte. Ainda por cima com as batatas vindas da Galiza, as cebolas das Astúrias e os tomates das quintas do Astérix. E ele, ministro e devoto da Sra Merkel, a pregar os benefícios de consumir o que é nacional – como Santo António a pregar aos peixinhos – e a salientar a qualidade das cenouras de Riomaior e da louça das Caldas.

Teve de contentar-se a comprar pouca coisa, como qualquer sensata dona de casa, com o marido empregado a título precário – o privilegiado! – e a ganhar acima das possibilidades do país e do Dr Ricardo Salgado a fortuna de 485 euros mensais estabelecida por decreto a que, patrioticamente, descontam a contribuição para a segurança social e o custo da austeridade de que, por limite de idade, o Sr Américo Amorim esta isento.

Mesmo assim teve sorte o ministro Gaspar porque no fim o Sr Camilo Lourenço lhe levou as compras a casa. A troco de uma moeda de um euro e de uma gravata já enxovalhada com nódoas de sopa da pedra e de molho bechamel. Num intervalo das suas telenovelas televisivas!

22 de janeiro de 2013

Kunhangama


No fim da picada, depois das casas de tijolos, dos kimbos todos misturados no meio delas e só mesmo dos kimbos sozinhos, está o rio no lugar dele. Nome dele Ribeira da Granja, nome de branco, os mais velhos diziam mesmo era kunhangama, se esta minha cabeça em cima do meu pescoço ainda não deu para não deslembrar. Tem pedras no meio, pouca água, não precisa nem molhar os pés mas se quer aproveita e pode lavar os pés e a chipala. Alguns até que aproveitam e lavam a camisa, tem sol e vento, pendura num caniço, fica seco com depressa. Só precisa mesmo ter um bocado de sabão, lava melhor.

A última casa era essa onde morava o senhor Jaime mecânico, tudo junto com a senhora dele, a menina e o menino Joca, a senhora sempre a lhe chamar para voltar em casa quando começava de ficar escuro e ele sem responder nada, uma pressão de ar de matar catuitis e bicos de lacre sempre em cima das costas, até que não conseguia de acertar nada, não tinha pontaria, desconseguia sempre. O senhor Jaime ficou doente, nem sékulo que já era, foi no puto, não voltou mais, falaram que tinha morrido, os kimbandas de lá desconseguiram o conserto. Ninguém que lhe fez o óbito, bom branco que ele era com tanto amigo que tinha, coitado. Ninguém para chorar, nada para beber, tudo a dormir como se amanhã ele voltasse na oficina dele, um óbito como deve ser, nem um garrafão de vinho.


Logo a seguir o rio fica escondido com os bagres no meio dos caniços, as pessoas nem dá para ver onde tem água e onde tem capim. Nas tardes de domingo que ficavam de descanso, com falta das pratas para um meio litro de cachipembe, que chega ao coração e sobe na cabeça, muito que fiquei sentado ali mesmo, no meio do caniço, quieto, muito calado, um caniço na mão, com um fio, uma rolha de bóia, um anzol e uma minhoca. Tudo dentro de água à  espera da fome do bagre querer comer a minhoca, a mexer toda na ponta do anzol.

Naquela tristeza de não ter nada para matar a minha fome de beber, com os bagres na vida deles, eu calado como era para não acordar o patrão, cada vez adiantava dormir também sentado em cima do capim, as casas e o trabalho tudo na minha trás. Mas um dia pesquei um grande, assim deste tamanho, nem sei como consegui de lhe tirar para fora da água, no meio dos caniços, o corpo dele sempre a lutar comigo para voltar lá na casa dele. Mas desconseguiu. Fui em casa, à noite bati o funge com o luiko, a senhora me ensinou como fazer com o bagre, comi-lhe assado em cima do fogo, melhor que peixe seco! Pena que não tinha nem meio litro de vinho para lhe beber com ele!

20 de janeiro de 2013

Domingo


Domingo. Quando o dia clareou era um mar de náufragos que amanhecia nos teus olhos. Braços erguidos, verdes, azuis, vagas de sete metros, as barras encerradas à navegação, todos os navios fundeados ao largo, o convés deserto de todos os marinheiros. Só mar para cá dos navios, a imaginação líquida para lá do horizonte e da esperança da fome ser só passado, já sem vítimas, sem memória e sem coordenadas.

Tu de braço dado com a persistência da chuva, os cabelos sem cor escorrendo-te pelos ombros, espalhando rios de sol e de futuro, só verde e calma, nos leitos e nas margens. Nem pescadores à linha especados à sombra esquecida da espera, inofensivas minhocas como isco, enforcadas nas pontas assassinas dos anzóis. Tudo como se Deus existisse e fosse daqui. Como se os rios não transbordassem e o mar, e a terra, e o céu fosse toda a harmonia de que nos contam os livros. E o azul fosse só um, sem tonalidades nem diferenças, azul tão claramente azul, sem azul nenhum, nem cor, nem preconceitos em que nos afogam o sonho e o destino.


Só nós e  este bando infinito de gaivotas, ameaçando o silêncio e o temporal que se precipita das estrelas, cassiopeia, ursa maior, cruzeiro do sul, para que lado fica o oriente? O mesmo oriente que Pessoa descobriu, entre a Ode Marítima e um copo de vinho numa taberna do Chiado. Só nós, duas mãos e um destino, os dedos entrelaçados na rigidez deste frio do inverno. Plenos de tudo e de esperança. A chuva persistente, o dia magoado, o sol que mora a oriente. O domingo também acaba!

8 de janeiro de 2013

Todas as palavras, poucas palavras


Nunca se dizem todas as palavras, é impossível dizer todas as palavras. Não por causa de leis, normas, regulamentos, decoro ou bons costumes. Não por causa do vernáculo, das mães de família rigorosamente educadas em colégios de freiras, com batas de xadrez azul e meias grossas de algodão a tapar-lhes os joelhos para a ida à eucaristia. Não por causa do atentado ao pudor e com medo da polícia, Miragaia sempre foi superior a tudo isso. E a Viela do Anjo sempre foi a sala de chuto que se sabe, entre moedas recolhidas durante o dia, porras e palavrões descendo pela berma da rua até à beira rio.

As palavras todas não cabem em nenhum dicionário, nunca se soltam de nenhuma boca. São torrentes de lava do vulcão dos Capelinhos, sereno durante décadas, pronto a riscar do mapa toda a ilha do Faial, submergindo o verde dos caminhos e o azul fresco das hortênsias. Galgando todas as barragens que se construíram no leito dos rios, obstruindo canais, danificando turbinas e deixando às escuras todos os sítios onde podem ser ditas sem luz que as aprisione. E quando se julgam esgotadas ei las que brotam do teu colo, que espreitam provocantes do meio dos teus seios, tão só sexualidade e som.


Não há palavras suficientes para evitar nenhuma guerra, impedir genocídios, chegar a tempo de suster o tiro e evitar o massacre e a ditadura. Cada homicida trás uma cabeça cheia de intenções e um bolso a transbordar de palavras ocas de paz e fraternidade entre os homens de boa vontade, prontas a despejar nas manhãs de domingo sobre os fieis que se acumulam na praça de São Pedro ou que oram à hora certa com o olhar procurando Meca no horizonte desconfortável de uma rosa dos ventos ou nas contas dispersas de um terço.

Palavras vulgares fazem de simples curiosos, ávidos de sucesso e pródigos em erros de ortografia, candidatos a poetas celebrados, romancistas que nunca serão lidos, potenciais vencedores do Nobel da literatura e companheiros de Neruda num banco frente ao oceano, procurando-lhe a alma para além do rasto que deixam no ar os aviões que levam a miséria de continente em continente, acima de trinta mil pés, num sítio onde ele nunca esteve.

Não acabam e não são bastantes todas as palavras e por isso se inventam novas a cada estalar dos polegares. Nos gabinetes dos ministros e nas salas solenes dos parlamentos onde se enfadam políticos, acompanhando as cotações da bolsa e assinando leis que facilitem as despedimentos e promovam o emprego, enquanto lhes cresce o saldo das contas bancárias e uma multidão faminta se aglomera aos portões das suas casas de férias. Novas palavras que não cabem nas gavetas nem se incluem nos dicionários, mas que jorram de bocas alarves e patriotas, sem autorização de gramáticas ou de acordos ortográficos.

Nunca se dizem todas as palavras e nunca são suficientes para dizer coisa nenhuma todas as que habitam as páginas dos jornais, que bailam ao sabor das ondas hertzianas e que saltam dos écrans dos televisores, invadindo as salas vazias dos cafés e as romarias de verão. A dizer nos de tragédias e a contar-nos de projetos e prosperidades virtuais que nenhuma realidade vai conhecer. Tudo palavras a mais, mesmo quando não chegam para o nada que dizem!

Depois dos Reis...


Anteontem, domingo, dia 6 de janeiro, foi dia de Reis. Terminou, final e oficialmente, a chamada quadra natalícia. Felizmente e por um ano fica suspenso o pesadelo que, regular e periodicamente, sou obrigado a carregar como uma cruz ao calvário. Algumas poucas pessoas saberão porque o digo. E outras, também poucas, saberão que esse peso poderia ser ainda maior, porque há mágoas que não cabem na balança e que nenhuma báscula é capaz de suportar.

Não acredito no pai natal nem nunca acreditei. Nem sei se o Menino Jesus existiu ou não, que cor tinha, que religião professava, se frequentou a catequese e fez, como eu fiz, a primeira comunhão na igreja do Bairro de São João, tendo o meu querido padre Abel como pároco. Nem se havia reis magos, apeados ou montados em camelos, de raça branca, amarela, negra ou vermelha. Transportando incenso, mirra, mel, ouro e certamente bolicaos que se vendem no Minipreço ou no Pingo Doce. Aqui para serem pagos a dinheiro porque a administração não está na disposição de sustentar os chulos da finança como o governo vem fazendo com os bancos na bancarrota.


Sei apenas que os reis magos hoje são uma alavanca para o consumismo sem regras e sem limite, um fator de multiplicação para a fome e a pobreza, um instrumento para o engodo e para a desgraça. Enquanto cada vez mais as crianças vão para a escola sem pequeno almoço, a ilustre Isabel Jonet faz a apologia da caridade, o primeiro-ministro nos trata como um ditador sem a estatura do Dr. Salazar e, para si e para o seu gabinete, vislumbra a luz de um BMW topo de gama ao fundo do tunel. Enquanto, solidário, o Dr. Pulido Valente aplaude ou critica com entusiasmo, e de acordo com as conveniências do seu catavento, a uma mesa do Gambrinus com uma garrafa de wisky de 20 anos à frente.

De resto aproveite-se a quadra ou o que, em saldos, resta dela para dizer que não me revejo nem no Facebook nem neste país onde, com mãe incógnita, Eça de Queirós foi parido na Póvoa de Varzim, filho de um juiz que teria nas mãos o destino de Camilo e Ana Plácido, preventivamente encarcerados na Cadeia da Relação e absolvidos à esquina da Rua da Picaria. De nada valeria isso, o país iria parir outras sumidades como Vale e Azevedo, Dias Loureiro ou Duarte Lima. Todos bons chefes de família, patriotas, compadres de gente importante, adeptos de futebol, reclusos em andares de luxo ou em celas sem casa da banho privativa e habilitados a conduzir automóveis de alta cilindrada a velocidades que o código da estrada não permite. E Camilo acabaria em São Miguel de Ceide, sentado à escrivaninha, cego, ao som de um tiro que não falhou e a que, no quintal, a acácia do Jorge não deu a mínima importância.

Com reduzida presença nos últimos tempos, quero deixar expresso que esta página do Facebook ficará abandonada na valeta, à beira de um caminho por onde quase não passa gente e onde nada de novo acontece. Como no país! Pode ser que esporadicamente aqui venha, sempre que me ocorrer qualquer ideia que possa revestir algum interesse...