29 de março de 2023

As glórias da Marinha

A marinha, o almirantado e o NRP Mondego têm, nos últimos dias, andado nas bocas do mundo. E nunca se anda nas bocas do mundo por uma boa razão, há sempre uma história.

Já em Julho de 1871 o senhor Eça de Queirós, um português ilustre acidentalmente nascido na Póvoa de Varzim, e de quem os jovens estudantes são obrigados a lembrar-se uma vez por ano, à conta de uma livralhada que deixou escrita e que nada tem a ver com as telenovelas da noite, proclamava com ar sério: “Mas, meus senhores, antes de tudo, nós não temos marinha! Singular coisa! Nós só temos marinha pelo motivo de termos colónias – e justamente as nossas colónias não prosperam porque não temos marinha. Todavia a nossa marinha, ausente dos mares, sulca profundamente o orçamento”.

Bem, nós perdemos as colónias vai para cinquenta anos e cada uma delas é hoje um jovem país, dizendo mal do progenitor e visitando-lhe as tabernas para lhe provar o vinho. Mas, apesar disso, mantivemos a marinha para as conservarmos na lembrança e as visitarmos com a elevada intenção de estreitarmos relações. E foi assim que renovamos a frota, que reciclamos os equipamentos e que formamos novas gerações de marinheiros. Fixando objectivos como estes devem ser, realistas e realizáveis.

Começamos pelas viagens curtas, não nos aventurámos logo a plantar padrões nas costas de África, a dobrar o Cabo Bojador, a aportar à ilha de Moçambique. Optámos, e bem, por não ir além do que foi o senhor Gonçalves Zarco e atracar na baía do Funchal. Desembarcar a tripulação para desentorpecer as pernas, visitar o mercado dos lavradores, comprar um cacho de bananas, apresentar cumprimentos ao governo regional, garantir à região a grande solidariedade nacional e prometer-lhe descontos nas viagens ao continente.

Correu tudo muito bem. Os marinheiros recuperaram do enjoo da viagem, os vendedores do mercado aumentaram as vendas, o governo sentiu-se honrado com a visita em traje de gala e fez a charanga tocar o hino nacional. Foi lindo, a brisa agitou a bandeira nacional nos mastros, os comandos pronunciaram discursos inflamados, as senhoras limparam as lágrimas furtivas, o senhor Luiz Vaz de Camões acomodou-se na sua eterna honra de ser português. O parlamento sentiu-se uma instituição patriótica e os senhores deputados julgaram-se orgulhosamente úteis e mal remunerados. Até o inevitável professor de Boliqueime entendeu remeter-se ao silêncio e guardar para os bisnetos o avisado conselho sobre o rumo para a felicidade e a fórmula infalível para os ganhos na bolsa de valores.

Com o entusiasmo entendeu-se por bem exercitar a tripulação, dar traquejo à embarcação, assegurar a soberania nacional sobre as Selvagens e a numerosa colónia de cagarras ali residente. Preparou-se a viagem, reabasteceu-se o navio, consultou-se a tabelas das marés e zarpou-se pela preia-mar. com céu limpo, mar chão, sem vento, nenhum nevoeiro. Os marujos respiraram de orgulho patriótico, as máquinas roncaram de esforço, a populaça acumulou-se no cais agitando bandeirinhas. A alegria estridente do silvo dos apitos da embarcação chegou a Porto Santo.

Foi tudo, todavia, navegação de poucas milhas. O navio cansou-se, transpirou, deitou fumo pelos olhos, imobilizou-se no alto mar. Amuado e sem palavras, recusou-se a prosseguir. Os oficiais coraram de vergonha, os marujos contiveram o enjoo, o senhor almirante foi a bordo fazer uma preleção, invocar a honra nacional, o glorioso Vasco da Gama, as especiarias da Índia. Tudo debalde!

Foi preciso mandar ir um rebocador, amarrar cabos à proa do Mondego, rebocar este de volta ao remanso da baía do Funchal. Confortá-lo, prometer-lhe mais bananas, voltar ao mercado dos lavradores, reanimar a economia agrícola da ilha. Nas Selvagens o bando das cagarras desmobilizou, cagou literalmente no cais lavado para as cerimónias, ficou-se com as memórias de uma importante visita anterior que lhes afagou as penas e o orgulho de pássaros.

Já agora, porque não se vendem as Selvagens? Ou se lhes não dá a independência?

 

 

 

8 de março de 2023

Dia internacional da Mulher

 

Espera, refreemos o passo depois de tanto o termos estugado para aqui chegar. Sentemo-nos, demo-nos as mãos, olhemos o mar azul à nossa frente e todo o caminho de rosas que nos leva até ele.

Hoje é apenas um dia de memórias para que não esqueçamos o passado e para que sintamos nas mãos o perfume da perfeição e da justiça. Porque elas se alimentam muito mais de concórdia e de entendimento do que de batalhas e de vitórias.



Somos tão iguais que prescindimos do género e da sua igualdade. Basta-nos o sexo, Homem e Mulher como a insondável mãe natureza determinou que fossemos. Iguais em tudo, até na suprema diferença do teu amplo regaço e na promessa do teu seio túmido.

Conseguimos! Foi para isso que estugámos o passo, é por isso que agora o refreamos. É por isso que temos o mar pela frente, todo coberto de um céu tão azul, sem rasgões de brumas ou de nuvens. Pessoas tão únicas, pessoas tão iguais nas diferenças com que aqui chegámos, sem supremacias, sem domínios e sem fronteiras. Sem limites.

Não estaremos cá, mas é assim que será um dia. Há de ser assim que os nossos descendentes se lembrarão de nós e se rirão de termos sido tão primitivamente primitivos. Continuemos, estuguemos o passo, façamos caminho. Parabéns pelo dia de hoje, parabéns por todos os dias, Mulheres maiúsculas da minha vida. Mulheres maiúsculas de todas as vidas!

 

 

3 de março de 2023

Trinta anos

Poderá chamar-se-lhe uma grande vitória? Ou simplesmente uma vitória? Creio que nada disso, por simples questão de modéstia e de básico pudor.

Uma grande vitória seria ter conseguido levar alguma sensatez ao espírito da espécie humana. Acabar com a guerra, assegurar um pão e um livro para cada criança, levar à prática a declaração universal dos direitos humanos, ainda e apenas uma utópica manifestação de intenções.

Uma vitória seria ter descoberto o caminho marítimo para a Índia, ter pintado os tectos da capela sistina, enunciar o princípio de Arquimedes, ter escrito o evangelho segundo São Mateus, ser comentador político nos telejornais de domingo à noite.

Afinal só estão em causa trinta anos, uma parcela ínfima na história da humanidade, nada mais do que cerca de sessenta cigarros por dia e os dedos das mãos encardidos de nicotina. Coisa pouca, efeméride pessoal, 2 de Março de 1993.

É uma pequena vitória, à minha medida.