30 de novembro de 2016

No escuro da noite escrevo vida

No escuro da noite escrevo vida. E escrevo morte. E nenhuma se vê. É como se te desse a mão numa sala de cinema, enquanto passa o filme. E a rapariga da fita, que não tira os olhos de nós, não consegue ver-nos. O escuro abre-nos a noite, traz-nos a ternura de mansinho, sem que ninguém veja. Não há sol nem pássaros nos meandros da noite. Fica todo o tempo para o amor e para a alvorada. E para a chuva que cai dos beirais. E para a neve que se acumula no alto das serras. Somos mais cúmplices no calor do abraço nocturno, é mais intenso o aroma que os nossos corpos libertam sob o aconchego dos lençóis que vêm da noite. Nunca os teus seios me parecem uma sedução ou um convite. São apenas uma parte de nós e nós somos apenas um. Sem bocados e sem múltiplos. Não precisamos dizer-nos nada, o silêncio do escuro é todas as vozes e todas as árvores perdendo as folhas e os frutos. As mãos cheias de tudo. Com poemas desprendendo-se-nos dos dedos. E as palavras caindo a um canto do nosso escuro absoluto. Irreversível e inteiro, sem necessidade nenhuma. Partilhando certezas pelo infinito. Despovoado de estrelas e de luzes, sem mares nem oceanos. Todos os peixes pintados de silêncio e de segredos íntimos.


25 de novembro de 2016

Ao por do sol as gaivotas voam para norte

Ao por do sol as gaivotas erguem-se num voo alto e quase solitário, rumam para norte e atravessam o horizonte a caminho do refúgio. É a hora mágica a que as chamas do incêndio explodem no crepúsculo fresco dos teus lábios. Quando a noite vai caindo devagar, por entre as cores douradas do outono e me traz o sonho azul por que espero na brevidade do teu colo. Para acolher todas as estrelas que enchem o firmamento e aí cintilam ao ritmo a que me bate o coração, protegendo-me o sono e a chegada da manhã seguinte. Se eu soubesse, escrevia o teu nome no segredo tranquilo dos teus olhos. E enchia todas as paredes da semana com a pele macia do teu rosto, como se fossem pinturas urbanas penduradas nos alçados dos arranha-céus. Mas, apesar disso, faltam-me a habilidade e as cores para desenhar um coração pequenino no mais secreto cantinho dos teus seios. Onde eu possa morar contigo!


22 de novembro de 2016

Poema debutante

para uns a poesia é métrica
e cada verso com dez sílabas
já que a extensão do alexandrino
não é brincadeira pra menina ou pro menino.
a rima
sempre a preceito
a de baixo com a de cima
e depois é como der mais jeito.

o verso livre já não obriga a essas regras loucas
trinta palavras e ainda são tão poucas
ou só uma já é de mais
degrau a degrau
    lá
       se
           cais
três suspiros e quatro ais.

depois é preciso um editor
que se encarregue do projecto
menos poeta e mais doutor,
capaz de avaliar com rigor
os custos contabilísticos do afecto.
uma sala da escola,
da junta ou da paróquia,
mais um coelho na cartola
uma tarde ou uma noite de sábado
e cem cadeiras,
com tampo, costas e pernas,
todas inteiras
para sentar a assistência.
porque sem cadeiras não há amigo
que vá assistir só pelo copo de vinho fino
como se fosse um sem-abrigo
a enganar na porca rima a desdita do destino.

à hora certa a abarrotar, a sala à cunha
poemas declamados
poemas ditos
poemas soletrados.
nas cordas tensas da viola
o indicador já quase deixa a unha
a voz feita em bocados.
a bicha para a compra da obra-prima

a dedicatória e o autógrafo do autor
de todo grátis, ainda por cima
aqui, nesta página, se faz favor.
com um beijo e um abraço,
se não se estender,
ainda tem e sobra espaço
num largo canto do papel.

pois, e a seguir?
vamos esperar,
e ver o que estará para vir.
mas, como é que se chama aquele gajo
que este ano ganhou o prémio Nobel?
só sei que era do Mindelo ou do Soajo!
quanto ao nome, traiu-me a memória infiel…


18 de novembro de 2016

Primeiro Angola foi-me terra

Primeiro Angola foi-me terra, foi-me chão, foi-me escola. Depois foi-me capinzal, sombra de mulemba, voo de pássaro, água de rio. Foi-me ideia de pensar, sonho, esperança, picada de marimbondo, casuarina na fímbria do mar. Praia Morena, Tundavala! Foi-me caminho, livro estudado, poema escrito na água da chuva correndo na valeta, muito sangue fervendo nas veias. Até ser fogo devorando as anharas, guerra nos carreiros da savana, revolta e fé. Sim, Angola foi-me fé, muita fé. Depois foi-me desencanto, desgosto, descrença, lágrimas de revolta caindo-me pela face. Foi-me sal ardendo nos olhos, queimando na boca, cristalizando na areia da praia. Foi-me país, de Cabinda ao Cunene, floresta do Maiombe, com bandeira, hino, armas ligeiras, órgãos de Estaline, terras de Icolo e Bengo, lagoas do Panguila, cacussos grelhados para o almoço. Até deixar de ser!



Agora Angola não me é mais. Nem terra, nem chão, nem escola. Nem me é revolta nem lágrima. É-me apenas grito, é-me apenas dor. Uma dor grande como imbondeiro dominando a planície das terras do fim do mundo. Uma dor permanente, sempre a crescer, que me sufoca, que me mata. Que me afoga, em miséria, em fome, em morte de crianças e de gente que não tem culpa. Angola é-me vergonha, uma vergonha maior do que eu, uma vergonha maior do que ela. Uma vergonha malcriada, obscena, “sundiameno”. Com sabor mórbido a petróleo e a champanhe francês. Angola é-me escuridão. Ainda bem que te foste antes de tudo isso, Alda. Ainda bem que partiste a tempo, meu amigo Ernesto. Ainda bem que te morreste primeiro, sem a fome te sobrar, meu irmão Zé Sapalo!


[Depois de uma reportagem televisiva transmitida pela SIC, enquadrada no Jornal da noite de 17.11.2016].

17 de novembro de 2016

Não poderei ver-te

Não poderei ver-te se não amanhecer no silêncio dos teus lábios. Se for sempre madrugada enquanto não chegar a lua nova. Se não segurar as tuas mãos no espaço verde dos meus braços. Preciso de sentir sob as rugas da manhã o rubor sereno dos teus olhos. Olhar pela janela e ver, à luz trémula dos candeeiros, a roupa que a vizinha da frente deixou pendurada na varanda. É urgente fazer-te as perguntas que já conheces. Só para ouvir bater-te o coração e sentir a brisa morna que respiras. E ainda como me respondes. Enquanto te espreguiças e a alegria do teu sorriso desce as escadas até ao cimento do passeio. É importante não perder o comboio que para à tua porta, onde há um pequeno apeadeiro. Levando o futuro que já foi ontem e um arco-íris de esperança que nos cobre os dias, até à última estação. É vital sabermo-nos como nos sabemos!




13 de novembro de 2016

Faço-me à estrada, virado a norte

Faço-me à estrada, virado a norte. De onde sopra este vento persistente, varrendo as praias, grávido de cinzento carregado e de inverno próximo. Nas margens do sábado as árvores fogem à desfilada para sul, como se isso lhes prolongasse a vida e atrasasse a perda do cabelo. Na memória apenas viaja comigo a beleza breve de uma magnólia branca, ainda com todo o verão à volta, o sol alto brilhando-lhe nas folhas.



Sigo à beira mar, ignorando os bandos de gaivotas encostados a um canto da maré. Há-de haver um rio que traga água doce para a sede dos marinheiros. Que se entregue à longa dimensão do mar numa curva do caminho, porque todos os rios se furtam ao abraço do oceano com o atalho de uma curva no caminho. Uma curva com um rochedo ao meio, onde possam pousar os corvos marinhos, atentos ao percurso dos cardumes e à cor negra da fome que lhes enfraquece a energia do voo e o brilho das penas. Mais do que isso, há-de haver uma silhueta a desenhar-se no meio da neblina, atrás da qual se escondem os barcos atracados ao cais. Uma figura esguia de mulher, trazendo o sol na brancura dos dentes e um cesto de promessas na luz castanha do olhar macio e doce. Ao princípio de uma tarde única e curta de Novembro.

10 de novembro de 2016

Os caracóis dos teus cabelos

O vento agita os caracóis dos teus cabelos, leva-te à boca a essência doce dos segredos com que te vestes. Um olhar vermelho, submerso no cimento azul dos passeios, passo a passo. O tempo a arrefecer pelo sol abaixo, as camélias em botão, prontas a explodir, quando o frio da neve encher o teu regaço. Mais tarde vou ler-te um poema que te cerre as pálpebras e te dê aos lábios a cor suave de todos os beijos que me recusas. Estou tão longe do mar que tenho medo de perder-te assim, sozinho, no meio dos rochedos, enquanto viajas para as planícies desertas e secas da Andaluzia.



Cada verso há-de trazer-te ao rosto o sorriso íntimo das tertúlias, pão e vinho sobre as mesas longas, os bancos corridos. Um rio de um verde obsceno, nascendo do enorme quadro pendurado na parede ao fundo da sala, como se fosse uma montanha. Uma luz nocturna soltando-se da acústica pobre de uma guitarra, um solo sem público e sem aplausos, só flores amarelas pela primavera. O enxame inteiro e atarefado, recolhendo o pólen para o mel que trazes na ponta da língua, como o gume afiado de uma faca.

2 de novembro de 2016

Pergunto-te

Pergunto-te, sendo a criança pequena que a vida me impôs que eu ficasse: gostas de mim? E chega-me a resposta, quase silêncio, com a tua voz macia de seda natural e o perfume acolhedor dos braços abertos, separados pela distância a que fica a respiração entre dois corpos. Os pés descalços sobre um chão que voa e que nos revela os segredos com que os poetas tecem os poemas de amor, bordados ponto a ponto. Como se cada um fosse apenas o calcário esculpido de dois túmulos na nave do mosteiro. E Pedro e Inês repousassem, olhando-se de frente, a igreja vazia de gente para a missa de domingo.



Não sobrasse existência nem memória de nenhum palácio ou de nenhuma quinta, nem de caminhos que lá levassem. Apenas um regato correndo à sombra, sobre pedras soltas, num qualquer ponto remoto da geografia física das palavras, onde se reflecte o firmamento. Sem tempo nem relógios, todas as horas expostas ao sol, com os troncos exóticos dos bambus rompendo por entre as copas centenárias dos pinheiros. O mar ainda distante, esperando por caravelas e viagens, para as descobertas. O leme pronto nos cabelos soltos da bela Inês. Gostas de mim?