25 de abril – 38 anos depois
Foi o nome do acidente geográfico que inspirou o nome do blogue. Para, com a sensatez que a ironia permitir ou com a ironia que a sensatez aconselhar, ir dedicando a este raso país alguma rasa prosa. O país não é tomado a sério. A prosa também não ambiciona sê-lo.
Cravos vermelhos
O meu pai chegou hoje a casa, vindo do café, com o jornal debaixo do braço, pronto para almoçar e disse “o ministro da saúde é parvo”. Chocou-me, não porque estivesse bêbado, porque o não aparentava e porque não costuma beber de manhã, pelo menos aos domingos. Não porque chegasse meio esfomeado, isso já é habitual, a minha mãe apressa-se na cozinha, mal deixa ferver a couve galega do caldo verde, despeja duas conchas na tijela, corre a pôr-lha à frente. Como sempre, meteu uma colher à boca, queimou-se, disse porra. Da cozinha, em surdina, a minha mãe disse baixinho, não fosse o diabo tecê-las, não corra, vá devagar. Chocou-me sim pela falta de criatividade, como hoje se diz, porque não sei como se dizia antigamente, que ainda cá não estava e a maternidade Alfredo da Costa funcionava regularmente, respeitando domingos, feriados e turnos.
Chocou-me apenas e só pela vulgaridade como qualificou vossa excelência, um homem polivalente como exigem as sociedades modernas, globalizadas, transbordando de desempregados e de salvadores da pátria, sentados a um canto do Gambrinus com o Sr. Pulido Valente e de banqueiros falidos auferindo milhões e morando na quinta da marinha ou da força aérea, como os Srs. Ricardo Salgado e não sei quê Rendeiro. Porque vossa excelência sabe de bancos, e por isso foi ajudante daquele opus dei do BCP, sabe de finanças e de impostos e por isso fez da direção dos impostos uma empresa lucrativa e do Sr. Medina Carreira um rasteiro comentador de corridas de burros, sabe de saúde e por isso nos dá injeções no cu e de forma sensata e ousada acaba de proibir que se fume no interior de automóveis em que viagem crianças. E por mim já o vejo a pôr também a educação a gastar menos, com toda a gente a licenciar-se cedo, mesmo que seja aos fins de semana. Sem escolas degradadas e sem essa classe indigente e inútil de professores que custam um balúrdio para descerem a avenida carregando dísticos contra o governo patriótico e gritando palavras de ordem contra o Sr. Cavaco por comer bolo rei, fora de época festiva e de boca aberta como se permite à sua condição de rural do interior algarvio.
Mas acho que vossa excelência não foi tão longe quanto devia, certamente por insuficiência dos pareceres dos assessores que lhe dão apoio e que emitem os seus doutos pareceres. Permito-me sugerir-lhe, antes de mais, que selecione mais uma dúzia deles, mande mudar a todos os automóveis de que se servem e rever os limites dos cartões de crédito que utilizam nas áreas de serviço das auto estradas e nos clubes noturnos onde as noites são animadas por brasileiras, ucranianas ou mesmo russas. Que as romenas só dão para o gamanço e para pedir esmola seja onde for. Mas, mais do que isso, acho que vossa excelência deveria ter considerado os direitos e a opinião das crianças que, como eu, viajam sempre no banco de trás, sentado na cadeirinha regulamentar que o meu pai, coitado – salvo seja! – ainda anda a pagar às prestações ao continente. Não o do Sr. Alberto João mas o do Sr Belmiro de Azevedo que, com o sem circuncisão, são ambos judeus.
É que assim fico na dúvida, eu que fumo desde os cinco anos, e uma vez por outra lá vai um charro para a pedrada, se posso ou não fumar livremente dentro do automóvel do meu pai, esteja ele parado ou em andamento, com o meu pai sentado ao volante ou no lugar do morto, a mandar vir com a minha mãe que conduz mal e confunde muitas vezes o travão com a embraiagem. E o meu pai? Pode fumar se me pedir autorização?
As televisões ditas independentes, aquelas que servem para nos impingir detergentes, champôs para a caspa e deputados, são incansáveis no esforço de nos informar e de aumentar o valor da publicidade faturada. Sempre isentas, observando sempre práticas transparentes e procedimentos de ética inatacável. Hoje, por exemplo, o que preocupa o país e o desune é um desafio de pontapé na bola a que se persiste em chamar desporto. Comparando-o com o chinquilho, o berlinde e o pião.
O que se segue é um hipotético acompanhamento, em direto, a cargo de repórteres licenciados ao domingo, com mestrado feito e remunerados com o salário mínimo nacional, a recibos verdes, passe a tendência clubistíca. Qualquer semelhança com a ficção dos Capitães da Areia não é pura coincidência. Como cenário temos uma qualquer academia em Alcochete e um qualquer hotel na freguesia do inocente Isaltino de Morais. Destaquemos o repórter Toino A1 para a academia e Toino A2 para o hotel.
Estúdio: O nosso repórter Toino A1, diretamente da academia de Alcochete. Então Toino quais são as últimas novidades da equipa do Sporting?
Toino A1. Obrigado estúdio. Estamos aqui ao portão e não podemos entrar porque o mesmo continua fechado. Ao fundo vê-se o mesmo edifício de que falamos na última intervenção e entretanto entraram três e saíram quatro pessoas que não conseguimos identificar. O autocarro que há de levar a equipa, rigorosamente às 18 e 45, continua parado à sombra de um chaparro e, por razões de segurança, o seu itinerário é apenas conhecido da equipa de 48 batedores da brigada de trânsito que abrirá caminho à ilustre comitiva. Mas sabe-se entretanto que o trânsito será cortado no percurso até ao estádio de Alvalade. A convocatória de Ricardo Sá Pinto foi entretanto divulgada e o treinador do Sporting convocou todo o plantel, mesmo os cochos e estropiados que, em caso de necessidade, farão uso de canadianas.
Recordamos que na conferência de impressa desta manhã Sá Pinto anunciou que a sua intenção é a de ganhar o jogo,embora possa perdê-lo ou empatá-lo, não admitindo qualquer outro cenário. Não quis revelar o onze inicial mas assegurou que o mesmo será construído a partir do lote de convocados e que, se for possível, dará ordem de entrada a mais alguns que estejam no banco, desde que o quarto árbitro não dê conta. Acha ainda que o encontro não é decisivo para nenhuma das equipas porque o adversário direto do Sporting é o Marítimo do Funchal e não o vizinho da segunda circular que tem por hábito enjaular os adeptos adversários como se faz aos macacos do jardim zoológico.
Estúdio: Obrigado Toino A1. Passamos ao hotel de Oeiras onde está concentrada a equipa do Benfica. Repórter Toino A2? Então que há de novo em relação à tua última intervenção?
Toino A2: Obrigado estúdio. O hotel continua na mesma rua e com o mesmo número de polícia na porta principal. Não se tem visto nenhum dos elementos da equipa mas o jogo promete ser aliciante e de resultado imprevisível. Isto porque o treinador Jorge Jesus manifesta as mesmas intenções do treinador do Sporting: ganhar o jogo. E assegura também que não faz parte dos seus cenários mais do que empatá-lo ou perdê-lo. Não indicou o onze inicial mas informou que não serão treze. O presidente da junta veio pessoalmente ao hotel para saber se os ilustres hóspedes estavam a ser bem tratados e se não faltava detergente para as mãos e papel higiénico perfumado junto das sanitas. De resto ninguém se prontificou a prestar declarações, salvo um canalizador e um funcionário das finanças que assim tiveram o seu momento de glória e passaram ao estatuto de famosos.
Estúdio: Obrigado Toino A2. Este evento desportivo mobilizará uns milhares de polícias que nunca se encontram nas ruas a não ser pontualmente para passar multas e correr com os sem abrigo que ocupam os portais das lojas. Todos equipados à maneira, com armadura à Afonso Henriques e botas de cano alto à Cinha Jardim. Os adeptos do Benfica terão direito a local próprio dentro do estádio, se tiverem comprado bilhete de entrada, sem serem enjaulados mas depois de serem minuciosamente revistados e verificada a marca das roupas interiores usadas e os explosivos escondidos nas cuecas. Sempre devidamente enquadrados e vigiados pela troika e pelo fmi.
Zé, tu foste embora como se mais uma vez tu fugisses, sem avisar nada, sem falar, sem dizer onde eu ia conseguir te encontrar. Por isso, até agora, desconsegui, mas acho que um dia a gente vai estar no mesmo sítio, falando da catuitis, de bagres, de cachipembe, de bicicleta Hopper, do bairro da Bomba. Quando perguntei na senhora e ela me falou, fiquei pior do que tu com piela de cachipembe, parecia aquele catruiti que tu mataste no ar, com a fisga a gente tinha adiantado fazer com pau tirado no mato e borracha de cambradar que não prestava mais. Só que catuiti é passarinho, o bico pequeno, o azul claro nas penas do peito, o cantar de todos juntos como enxame de abelhas. Passarinho não chora e os meus olhos foram ficando tristes, sem riso na boca, olhando a panela ao canto, onde batias o pirão com o luíco comprado no Canhé. A pensar que não precisava mais fuba nem peixe seco para assar em cima das brasas. Ninguém mais era capaz de fazer aquele pirão, assar carapau que parecia mesmo como a corvina.
Ainda ouço o camião Volvo roncando pelo fim da tarde, descendo a picada aguentando tanto saco de milho carregado em cima dele, tu empoleirado, olhando todos os lados, a cabeça virando com depressa, os olhos muito abertos para ver todo esse mundo novo e lhe conhecer. A carapinha suja, os cabelo com falta de lhes lavar, descalço, meio calonjanda das pernas, um calção velho amarrado na cintura, uma camisa de manga curta, meio velha e ainda mais suja, assim, por fora do calção. Vinhas do vicanjo, nunca mesmo que consegui aprender o nome do teu quimbo, o meu coração ficou com o nome de Chamissassa, a mulembeira grande no meio das cubatas, os seculos sentados nas portas, as pernas para fora. Ao lado do camião os miúdos todos correndo, querendo subir, apanhar boleia, gozar com o burro que chegava do vicanjo.
Aí, só de olhar, adiantamos ficar amigos para toda a vida, até que a tua acabou, afogada no vinho e na piela de cachipembe. Desceste do camião, assim com medo de cair, mais ainda de ver tudo novo em todos os lados à tua volta. A senhora adiantou desenrascar umas roupas minhas, te deu um bocado de sabão azul, mandou-te para tomares banho como devia ser. Voltaste como se já fosses um calcinhas da cidade, pronto para ser meu irmão, assustado de te falar contigo, com receio de estar mandando-te fazer nem sei o quê e não perceberes, o medo da porrada. Adiantei contigo o meu pouco umbundo de merda, mais bem eu ia começar de aprender contigo, a senhora olhando de lado sem perceber essa nossa conversa, a gente se rindo. Correndo pelos terrenos arrumados da chitaca, pelo meio do capim grande carregando os bicos de lacre, até mesmo ao rio que o nome dele me esqueceu, os brancos adiantavam de lhe chamar de ribeira não sei de quê.
Agora a senhora me diz que me morreste. E adianta tirar o choro dos olhos com o avental daquele pano pintado que tu sabes qual era. A mim o choro fica dentro da minha cabeça e a tristeza também. E ambos me fazem doer a vida para sempre, como a tua falta. Hoje lembrei-me. Sozinho, o choro chegou-me nos olhos. E penso que isso de seres meu amigo, de comermos o pirão da mesma panela e repartirmos o mesmo carapau seco aquecido nas brasas, não acaba nunca. Nem com a morte que te levou a enterrar num caixote simpes e barato, quando o milho tinha nascido e já estava assim, desse tamanho!
Democracia é um substantivo. Que segundo o dicionário Porto Editora de 2010 significa: “1. sistema político em que a autoridade emana do conjunto dos cidadãos, baseando-se nos princípios de igualdade e liberdade; 2. nação democrata”. Palavra que Salazar escrevia com SS e que a minha querida Dra. Dorinda me não ensinou por ter sido suprimida do programa oficial. Vocábulo que na patriótica Assembleia da República tem 230 significados diferentes, de acordo com os interesses e as conveniências de cada um dos senhores deputados, tal como as ajudas de custo que recebem e as sessões a que faltam.
É uma palavra que o ministro Rapazote escrevia com as patas dos cavalos da GNR no dorso dos insurretos e que o ministro Macedo escreve com o uso desembaínhado de bastões e cassetetes nas costas dos manifestantes. Democracia, segundo o dicionário da Porto Editora, não significa rigorosamente nada. Sistemas políticos há muitos: o do CDS, o do PSD, o do PS, o do PCP e por aí fora, até ao do Dr. Manuel Monteiro que deve ser actualmente administrador de uma qualquer sociedade administrativa desportiva com sede no interior algarvio. Depois temos os sistemas políticos dos nossos vizinhos galegos, dos espanhóis, dos catalães, dos bascos. E o conceito vai variando, mesmo além Pirinéus, onde às vezes os próprios bascos se acolhem à sombra protetora do amplexo do casal Carla e Sarkozy.
Quando a autoridade emana do conjunto dos cidadãos creio que há qualquer gralha por aqui: emana ou é mana? Do conjunto dos cidadãos? De qual? Do que dá porrada ou do que leva? Ou ainda do que assiste, borrando-se de medo dos varandins engalanados do Palácio de Belém? Com o Aníbal a assistir e a actualizar o défice e a Maria a dirigir da fanfarra dos bombeiros de Carcavelos, com o devido respeito.
Baseando-se nos princípios de igualdade e liberdade? Qual base? Da maquilhagem da Claudia Schiffer ou da Ângela Merkel? Não dá, os transmontanos não compreendem os folhetos de instruções e mesmo em Coimbra só o Doutor (haja respeito!) Vital Moreira os deve entender, depois de meia dúzia de idas à biblioteca Sanjoanina, com a cabra silenciada para permitir a concentração dos neurónios e o fortalecimento dos perónios. Princípios? Os meus, ignorante e ileterato? Ou os dos patriotas Oliveira e Costa que criou um banco e Passos Coelho que o vendeu, tendo de pagar milhões a quem o comprou?
Igualdade? Mas que igualdade? Sendo todos ricos, em casa do senhor (haja respeito!) Américo Amorim quem tem pirilau é ele. E quando a flacidez é excessiva manda à farmácia, encomenda comprimidos azuis (questão de clubite!) e puxa dos galões (galões, escrevi bem!). As filhas, presume-se, têm uma “pombinha” cada uma e pensa-se que não são compinchas do senhor Castelo Branco nos serões culturais que este promove. Em pelota, para mais rápida assimilação.
Liberdade? Desculpem, “... da-se”. Para terem ensino gratuito e pagarem propinas? Fazerem exames ao domingo quando os sinos das igrejas chamam para a missa? Beneficiarem de um sistema de saúde gratuito e pagarem taxas moderadoras? Poderem esperar pela morte sentados num dos bancos do largo, enquanto aguardam pela cirurgia da circuncisão? E deixarem por herança o custo das tábuas de pinho do caixão e os serviços apressados do cangalheiro?
O dia um de abril vem sendo, desde há muito, celebrado como o dia das mentiras. A tradição deve vir de muito longe e hoje deixou de fazer o mínimo sentido. Aparentemente seria um dia em que se poderia mentir livremente, sem vergonha e sem recriminação, pública ou privada. Mentir no dia um de abril era politicamente correto, socialmente recomendável, religiosamente perdoado. Nem Eça, que eu tenha conhecimento, alguma vez gastou aparo e tinta com o assunto. O cozido à portuguesa, no barracão de José Estevão, era definitivamente mais importante e mais patriótico.
Hoje, um de abril é sempre que um político quiser. Seja ele presidente, primeiro ministro, ministro ou ajudante, presidente de câmara, Fátima Felgueiras ou Isaltino Morais, governante das ilhas ou Alberto João. É confrangedor ouvir Passos Coelho, com o ar solene de um palhaço de circo, anunciar a liberalização dos despedimentos a pretexto de criar emprego. Na linha filosófica alinhavada por Manuel Carrilho e José Lello, de quanto mais porrada me deres mais eu gosto da tua filha. O país não é nem impostor nem hipócrita, é apenas um pedaço de terra, abandonado ao pousio e entregue à tutela de amanuenses com o diploma do 2º. Grau.
Qualquer falhado sacristão de Miranda do Douro chega às cadeiras de São Bento, enriquece sem causa e viaja para o Brasil para tomar um café np Rio de Janeiro. Com maior facilidade do que ir ao cinema a Bragança viaja para o oriente no dia seguinte, apenas porque alguém lhe disse que Pessoa – o do flagrante de litro! – dedicara ao assunto alguns quatro versos e sete pensamentos. Mais longo e difícil é o caminho para a penitenciária de Lisboa onde o erário público o alimenta e lhe paga as faxinas. Mais facilmente viajou o inocente Vale e Azevedo do estádio da Luz para Londres onde se debate com os problemas de condução pela esquerda, ele que é dextro. Para além de vigarista, uma ocupação acima de qualquer suspeita e de qualquer lei.
Não sendo proíbido, há até quem tenha nascido a um de Abril, como se alguém pudesse levar isso a sério. Quem nasce num dia destes já vem com o curso tirado. Licenciatura em engenharia civil e mestrado em filosofia, pelos cafés de Montmartre. Que o diga alguém que hoje, algures, faz 53 anos e, no único assomo de consciência que teve até hoje disse tudo de si em duas palavras: “não presto”. E é que não prestas mesmo. Para nada. Como a banca, os seguros, as gasolineiras e os governos. Entre outros! Como o país, que de certeza faz também anos a um de abril.