24 de setembro de 2022

O peso das palavras

 

1. Alimento

Eu não tenho à mão nenhum exemplar da Aparição, de Vergílio Ferreira, para poder confirmá-lo e dar rigor à referência. De forma que tenho de me socorrer da memória, falível, sempre curta e cada vez mais volátil e incerta. Creio todavia que no fim de um dos capítulos, não sei a que propósito e sobre o sentido das palavras, ele se serve do vocábulo alimento.

Dizemos alimento e sabemos de forma substantiva o que dizemos. Não nos fica nenhuma ambiguidade, não nos restam quaisquer dúvidas, não precisamos de esclarecimentos complementares. Mas experimentem dizer repetidamente alimento. Alimento, alimento, alimento. E reparem como a palavra perde sentido e significado. Vai deixando progressivamente de querer dizer seja o que for. Após algumas repetições alimento já não quer dizer nada, já não tem significado.

2. Chéquia

Dita assim, isolada, a palavra não tem sentido e parece não querer dizer coisa nenhuma, ao contrário de república checa a que o tempo e o uso nos habituaram. É mesmo pior do que dizer países baixos, a que vamos tentando habituar-nos, ficando no fim sem saber o que chamar aos seus nacionais. Não faz sentido chamar-lhes holandeses e é obtuso dizê-los país-baixenses, ou baixeses, ou baixios, como quiserem.

Mas dizem-nos que é um país. Que todavia não associamos a nenhuma idade da história nem tão pouco a nenhum continente. Qual é a capital que tem, como se chamam os seus cidadãos? Chéquios? Cheques? Com provisão, sem provisão? Nunca nos passou pela cabeça ir lá e não sabemos se lá chegam os aviões, os comboios ou os autocarros de turismo. Têm uma língua própria, um alfabeto, sabem ler e escrever? Andam vestidos? Têm praias, palmeiras, água de coco? Por favor, ninguém quer ir a um país com um nome destes.


3. Resiliente

É palavra utilizada em todas as circunstâncias, em qualquer lugar, por qualquer pessoa, debilitado contribuinte ou imune deputado indicando à pátria, do alto da tribuna e da infalibilidade, o caminho da salvação e o sítio ideal para o aeroporto de Lisboa. No dicionário Editora de 2010, com que vivo em comunhão de mesa e habitação, mesmo sem a santa bênção do senhor abade, resiliente é o que possui resiliência, relativo a elasticidade, elástico, flexível.

Para mim, pronto, concedo, é no mínimo uma embirração, uma palavra abominável, mais do que o lendário homem das neves, que se usa sem se saber sequer o que se quer dizer ou mesmo por não se querer dizer nada. Ou alguém acha que é resiliente por ter energia potencial acumulada quando é deformado elasticamente, se for elástico? Não creio que haja alguém tão complexo e tão completo e que não seja capaz de escrever português.

23 de setembro de 2022

OUTONO

 

Equinócio, o dia inteiro e simétrico

Tão igual por dentro como por fora

Todo o dia agora

Toda a noite antes

Às duas horas e quatro minutos

Momentos de repouso bastantes

Com os olhos serenos e enxutos.



19 de setembro de 2022

Rainha Elizabeth II

 

O Reino Unido – e um pouco o mundo todo – levou hoje à sua última morada a Rainha Elizabeth II, dez dias depois da sua morte.


É impossível não lhe deixar duas palavras e é muito difícil escolhê-las. Por força das circunstâncias, assumiu o cargo muito jovem, sendo rainha sem ter nascido para isso. Mas entregou-se ao cumprimento das suas obrigações pondo-as antes da sua vida, da sua família e dos seus interesses pessoais. Fez por defender e preservar o regime e suplantou-se. Foi uma pessoa credível, em que se pôde confiar, que granjeou o respeito e a admiração do seu povo, da sua larga comunidade, do seu império perdido e do mundo quase todo.

Marcou três gerações e hoje teve a acompanhá-la os seus filhos, os seus netos e os seus bisnetos. E um largo conjunto dos responsáveis pelo mundo em que vivemos, sem olhar a regimes, a credos ou a preferências. Além do seu povo, com um bonito dia de sol enchendo o céu de Londres.

Deixa um rasto, lega-nos um exemplo. Acho que todos perdemos um pouco com a sua partida. Acho que todos podemos aproveitar um pouco do seu exemplo.

 

9 de setembro de 2022

Minha Mãe:

 

Passados quinze anos eu não sei como dizer-te todo o vazio que os enche. Todos os caminhos fechados, todos os momentos intermináveis, todos os sentimentos parados no tempo.

Com um dia de sol e a branca pureza de algumas nuvens, fui à Festa Grande para contar-te. E nada tenho para dizer-te. Com a tua falta nada fica igual, nada resta para contar, nada faz sentido, nada tem significado.

Tudo mudou, as pessoas foram partindo, não houve ninguém que eu reconhecesse. A festa acaba por ser feita de memórias. Da tua, sempre. E das que foram ficando dos outros. É outra a música que a filarmónica toca, outros os prémios sorteados na quermesse, até outro o sabor da canela e do limão que enriquecem os bolos dos andores.


E mesmo a rutilante beleza do altar-mor da velha igreja continua a perder fulgor. Resistindo a ser só e mais uma memória.

6 de setembro de 2022

Variações intemporais sobre o conde e a festa grande

 

Estava o senhor conde D. Afonso posto em sossego, na sua larga e bem talhada cama em pedra de Ançã, quando o sol já subia pelo céu azul debruado por nuvens brancas. Fresca corria a água na fonte, entre arcos de ogiva perfeita, enchendo os tanques onde os animais vinham dessedentar-se para o tiro e para o trabalho. Silenciosa e vazia estava a colegiada àquela hora em que o sacristão revia os paramentos e actualizava o cochilo. Deserta ainda a taberna no adro, onde o taberneiro repousava a testa sobre o tampo das mesas e sonhava com a venda da ginjinha e o tinido das moedas na gaveta.

O toque das ferraduras na calçada, atravessando as portas da vila, veio interromper a melodia da água fresca e o sono breve do sacristão. Garboso, vestindo Prada, montando a sua elegante égua russa, estava o sempre fiel e dedicado Martim Anes Bucifal, em traje de cerimónia e calçando luzidias botas altas de montar. Com um gesto breve e único do freio fez estancar a montada e pediu para ser anunciado ao senhor conde, mesmo que isso lhe prejudicasse os afazeres e a meditação, porque era solene a sua visita e o seu intento.


Não tardou o senhor conde em receber o seu dedicado amigo, vindo do fértil vale do Olival, onde pontificava um laborioso povo dedicado ao trabalho e temente a Deus Nosso Senhor. Foi caloroso o abraço que trocaram e muito próximas as palavras com que se saudaram. E o senhor conde convidou a que se sentassem, pedindo ao ordenança, vestido como se fosse um guarda suíço, que lhes trouxesse água fresca e uma ginjinha, além do tira-gosto para a jornada. Solícito o ordenança abalou a cumprir ordens e, de mesmo, abriu de par em par as janelas ogivais que davam para o castelo e para o vale onde pelos campos ia crescendo o milho, viçoso e de espiga prometedora.

E da sua missão disse Martim Anes Bucifal que ali estava em representação do Olival e de toda a sua leal e fiel população para humildemente solicitar ao mui nobre conde de Ourém que se fizesse presente na próxima Festa Grande, cujos preparativos prosseguiam com afinco, na esperança de ver satisfeita a sua pretensão. Estavam adiantados a decoração do adro, o palanque para a filarmónica, os andores para a procissão e a barraca para a quermesse, recheada de úteis e variados prémios vindos da república popular da China. Os bolinhos seriam os tradicionais para carregar fogaças e andores e a gastronomia incluiria a sopa de verde e o carneiro guisado com batatas.

O traje? Naturalmente de passeio, que a festa é popular, sem necessidade de marcas ou de costureiros de Paris. E, mais ou menos, é que já assim foi no domingo passado. Salvo seja!

 

1 de setembro de 2022

A mosca

Ontem à tarde, aproveitando a janela aberta e uma falha na segurança electrónica, uma mosca invadiu o apartamento onde vivo sozinho. Não se fez anunciar e não se dignou pedir licença ou saudar quem por cá estava que, naturalmente, era eu e os meus botões. Pelo contrário, desfez-se a esvoaçar pelas divisões da casa, descobrindo mundo, procurando filões de ouro, talvez preparando uma qualquer expedição colonizadora, como se tivesse memória do século XVI e acabasse de descobrir o Brasil. Não sou de melindres e não me senti ofendido, mas vi violada a minha privacidade e levantado o véu espesso da minha vida íntima. Não gostei.



Acabou por acoitar-se ao espaço mais sombrio da casa, aproveitando-se da semiobscuridade e da frescura dos restos de água nas bordas do lavatório, como se se estirasse na praia, atrigueirando a tromba e refrescando o corpo. Incomensurável descaramento do insecto, rasteiro e reles díptero braquícero, sem linhagem real ou de nobreza. Simplesmente abusivo, sem mais delongas nem adjectivos, como a escrita escorreita e hábil do saudoso senhor José Cardoso Pires.

Não foi preciso que eu falasse para que se apercebesse do meu desagrado e voasse em silêncio para as bordas do bidé, julgando-se despercebida, como se o fizesse a trinta mil pés de altitude, entre o aeroporto de Heathrow e Varadero. Procurei uma pequena toalha, como quem empunha um bombardeiro que ruma aos céus de Hiroshima, com a iminente morte a bordo. Atenta, escapuliu-se para as longas margens da banheira, mudando de residência a cada instante, como personalidade política amada pelo sistema e temente a Deus e ao abraço da multidão.

Apanhei-a de um golpe, num desses curtos voos, como se a toalha fosse um dos mais imprevisíveis e camuflados aviões de caça. Tombou, como se tivesse sido engolida pelo cogumelo atómico, aos trambolhões, ferida de morte pela explosão radioactiva da toalha. E acabou a despenhar-se no chão frio da tijoleira, de corpo inteiro, perfeitamente identificável pela família que a reclame para um funeral digno e religioso, se for o caso, e se as moscas domésticas tiverem um ser superior em que acreditem. Lá jaz imóvel, de borco, em decúbito dorsal, como se fizesse parte de um poema de Manoel Bandeira. A vassoura lhe seja breve e rápida. Por mim, tenho a privacidade restaurada.