26 de maio de 2016

O homem que não sabia caminhos

O homem que não sabia caminhos, chegou às encruzilhadas da vida e aí se perdeu, virado para nenhum lado. Sem pontos cardeais e sem pássaros que lhe saíssem do olhar, não foi capaz de descobrir de onde vinham as andorinhas e que destino davam ao seu voo sem destino. Há sempre um certo nevoeiro que se acumula nos leitos dos rios e que embacia os vidros das janelas e as necessidades de futuro. Depois, há sempre um momento em que um qualquer terramoto chega das profundezas da terra, estilhaça todos os vidros e leva para ontem todos os dias que eram amanhãs, quando os barcos se prendiam às mãos robustas dos remadores e nos cais o tempo de espera envelhecia sobre o musgo.


Sem bolsos nas calças, enchem-se de frio as palmas das mãos e de chuva forte o vento leste que desce pelas chaminés, libertando o escuro da fuligem. Quando se não conhece nenhum caminho, não há nem rota nem maré que levem ao cabo da boa esperança, além do qual se encontrem a bonança, a rosa-dos-ventos e os reis magos seguindo a luz da estrela polar. É preciso que haja uma razão para que o sol nasça sempre a oriente, para que daí sopre o vermelho e branco com que se pinta a vida que resta para lá da cortina que encobre todo o cinzento dos passos em volta. Sem horas e sem calendários, sem anos e sem meses, com todos os janeiros riscados do inverno.

22 de maio de 2016

Contigo poderia ter aprendido

Contigo poderia ter aprendido a reconhecer, sob a ternura tranquila dos lençóis, as manhãs de domingo e as nuvens brancas enfeitando o sol dos dias de primavera. Poderia ter aprendido os muitos e longos mistérios do silêncio, à cadência ritmada da respiração exacta soltando-se-me dos lábios. A roupa pendurada no estendal da varanda, a libertar aquele cheiro fresco a infância que trazem nos olhos fundos as crianças de áfrica. Poderia dizer mulemba e isso ser pássaro e ninho e vida, sentir na mão a forma esférica e dura do maboque e na boca o sabor agridoce que lhe serpenteia pelos ramos, um bando de flamingos passeando a cor das penas pelas águas rasas da enseada.

Contigo poderia ter aprendido como o olhar se prende à distância e à esperança que desenha a curva do horizonte, sentar-me num banco público virado a ocidente e esperar que o sol explodisse ao fim da tarde, longe de barcos e de árvores. Por a insegurança da minha mão direita sobre a certeza nua dos teus joelhos, uma sede de verão a que não resta nenhum sinal de brisa, um gin tónico no copo, sabendo a frio e a limão. E dizer amor como se não houvesse nem noite nem inverno, o por do sol se espalhasse pela praia e se reflectisse no espelho plano que é o brilho permanente dos teus olhos, as estrelas como pontos encantados adivinhando-se no firmamento.



19 de maio de 2016

Meia dúzia de degraus

Meia dúzia de degraus, uma porta que se fecha sobre si própria e quatro paredes ao longo das quais escorre um silêncio viscoso e triste. Nenhum movimento, as persianas descidas, a penumbra que, apesar de tudo, vence a resistência do cheiro à humidade e ao bafio. Nenhuma presença, nenhum afecto, nenhum gesto atrás do qual se possa arrumar a solidão de resmas de jornais que ninguém leu e que a rua acolherá como resíduos. Livros novos, intactos, empilhados pelos cantos, expectantes e virgens, um marcador reverente e dócil a espreitar por sob a capa, aguardando por um primeiro leitor que o tire do enfado inútil.


Uma porta que se fecha sobre si própria e meia dúzia de degraus que se estendem para a rua. E a rua exposta à luz e às previsões do tempo, dias de chuva e dias de sol, a água precipitando-se para as valetas, perdendo-se nos bueiros, encharcando o empedrado. Prédios e gente numa azáfama quieta de ruído e de passos, subindo escadas, encostando-se aos portais, esperando nas paragens dos autocarros, acenando aos vizinhos. E, no entanto, nenhuma presença, nenhum afecto, nenhuma brisa sob os passos com que se pisam as horas dos relógios no cinzento dos passeios. A verdade simples e linear, entre parêntesis, “se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz.”. Pois, talvez… talvez fosse!

16 de maio de 2016

Uma chuva de primavera

Uma chuva de primavera, fresca e verde, ocupando os dias e afagando os plátanos da praça, de copa ainda mal composta, como véus de noiva atrás dos quais se encobre um sorriso feliz e breve. O voo atarefado das cegonhas, carregando os gravetos para o acabamento grosseiro e rústico dos ninhos, onde os ovos serão crias que um dia destes amanhecerão voando, como senhoras absolutas, sob o azul de um céu sem nuvens. Uma multidão transbordando do recinto, acenando lenços brancos, como se eu ali estivesse sozinho e só, uma rosa vermelha presa aos lábios, saudando a tua chegada coberta por um manto alegre de papoilas e de ervas. E tu me fosses todas as papoilas e toda a vida que me faltam.



Uma toalha branca sobre a mesa, posta para o jantar, um livro aberto ao acaso, todos os poemas de amor espreitando-te pelo decote estreito da blusa, como uma promessa de uma viagem ao futuro. Um futuro alegre e longo e sempre cheio de papoilas e de ti, sem nenhum tempo que lhe sobrasse, as estrelas escorrendo-te pelos cabelos soltos, esvoaçando ao vento. E o livro sobre o prato, como uma iguaria que se serve em folhas soltas, sem condimentos nem ervas aromáticas, mas que se saboreia em pequenos fragmentos que nos entram pelos olhos e nos chegam ao coração. Uma voz rouca, entorpecida pelos sentidos com que levo um beijo simples à tez suave do teu rosto, uma luz difusa pousando-te no ombro.

12 de maio de 2016

Regressar à nascente

Regressar à nascente, como um rio cansado com o mar e com as pontes. Desistir de barcos e de vagas, barrigas grávidas de morte e de petróleo, gumes afiados de pedras e destroços. Subir afluentes, escalar penhascos, abandonar-me de todo à paisagem e ao voo atento e alto das aves de rapina, soberania única sobre o desfiladeiro que encosta o azul do céu aos ventos agrestes que o açoitam. Desenhar-lhe de volta as curvas apertadas do percurso, acariciar-lhe as arestas vivas e ameaçadoras do granito, como se fossem seios erectos brilhando ao sol, esculpidos nos cumes das montanhas.


Deixar o meu cansaço vertido em todos os anos perfumados do teu corpo, o aroma divino da flor de tília, oásis mágico no meio da imensidão das areias que preenchem a inclemência do deserto. Nem rochedos, nem pirâmides perturbando a monotonia quieta de milénios, o Nilo estendendo-se de polo a polo, como se não houvesse sol e o tempo fosse sempre de lua cheia. As noites serenas de setembro, as vindimas feitas, o mosto repousando no bojo das pipas, a cor dourada do outono dando contornos aos socalcos e à madrugada. E tu por perto, apenas um véu de tule dando forma ao silêncio das estrelas.

1 de maio de 2016

Dia da Mãe

Mãe. Apenas três letras do alfabeto. Uma curta palavra que não cabe nas vinte e quatro horas do primeiro domingo de maio. Viagem de circum-navegação completa, todos os sentidos despertos, todos os rumos utilizados, todas as fases da lua, todas as estações do ano, todos os continentes, todos os oceanos, todos os momentos. Especialmente todos os momentos. Instantes, relâmpagos, raios de sol, momentos curtos, momentos longos, momentos infinitos. Tantos anos a balbuciar-te o nome, sem conseguir pronunciá-lo, a voz a faltar-me, o nó enorme na garganta. Quanto mais tempo ausente, maior a presença, sempre constante, o sorriso humilde e permanente, o olhar macio, o mundo todo no teu regaço. Nenhuma mãe cabe em dia nenhum, nenhum tempo é para te esquecer ou para te recordar. Todos os dias são teus, e todos os meses, e todos os anos. E sempre, e hoje também!