16 de fevereiro de 2007

A CP

Antigamente a CP era a dona de tudo. Das locomotivas, das carruagens, dos carris, das travessas, das linhas e dos revisores. Arrastando-se, com copos de aguardente nos apeadeiros para aquecer do frio do inverno, os comboios chegavam até Duas Igrejas. Na escola as crianças cantavam as estações e apeadeiros um a um, ao compasso de uma marcha dos santos populares e, para felicidade dos pais e dos padrinhos, completavam com distinção o exame do segundo grau. Não havia iliteracia mas tão somente analfabetismo. Hoje há ambas as coisas, com a particularidade exuberante de muitos analfabetos serem licenciados e frequentarem cursos de pós graduação.

Acima da CP só havia o estado, aquele que escrevem com maiúsculas, omnipotente, omnipresente, omnisciente. O estado era nessa época mais Deus do que o senhor Cardeal Patriarca e o senhor Bispo do Porto juntos. E, mesmo assim, só ia à missa nas cerimónias oficiais. As coisas mudaram, porque as coisas são como os políticos: só não mudariam se fossem burras. E as coisas, como se sabe, nem são burras, nem sequer louras. Depois a CP cindiu-se, fraccionou-se, partiu-se aos bocados, transformou-se num inquantificável universo de coisas a que chamam empresas. O ministro da tutela, - designação que deveria ser abandonada por deixar um pouco a ideia de que tutela atrasados mentais! - viu aumentadas as suas responsabilidades patrióticas ao ter de nomear mais administradores, mais assessores, mais afilhados. Sem o estímulo de um ordenado decente,mas apenas com a perspectiva de um lugar a um esconso canto da história e de uma tabuleta toponímica à esquina de uma viela de uma freguesia do Portugal profundo.

Antigamente a CP admitiu, por concurso, um jovem engenheiro, acabado de licenciar em engenharia mecânica, sabedor de toda a mecânica dos fluidos, penteado com risca ao lado e melena a cair-lhe para os olhos, de cor azul marinho em dias de Verão, claros, inocentes, promissores. Aos trinta anos de serviço a CP em frangalhos e o engenheiro, talvez em Sangalhos, decidiram pôr termo ao contrato que os unia. Sem necessidade de nenhuma conservatória, sem litígio e por mútuo acordo, divorciaram-se. O engenheiro levou os seus pertences pessoais, incluindo a régua de cálculo, e um dos fragmentos empresariais da CP que eu e o ocasional leitor suportamos financeiramente, atribuiu-lhe uma pequena indemnização, de pouco mais de 40.000 contos, equivalente ao salário mínimo de não sei quantos operadores de caixa do Continente. Quantia necessária mas insuficiente para viver descansadamente num alpendre na costa e ir à caça das perdizes na coutada mais próxima.

Teve de fazer-se à vida o engenheiro e procurar novo emprego, ao fim de tantos anos. Por sorte sua deixara amigos fieis pela vida, desinteressadamente conseguidos na maioria dos casos à custa de um simples voto para as autárquicas. E um outro fragmento empresarial da CP, que eu e o ocasional leitor suportamos financeiramente, deu-lhe emprego a troco de pouco mais de mil contos mensais. O equivalente a não sei quantos rendimentos mínimos que desgraçam o estado e o ministro das finanças. Por causa de uma merda destas caiu ontem o carmo e a trindade, como se isso fosse novidade, como se isso fosse importante, como se isso pudesse implicar responsabilidades ou cadeia. A oposição gritou que não tinha sido ela e exigiu que o governo dissesse se sabia da questão. O governo, na sua função, salientou não estar no seu programa ocupar-se com questões de merda. E remeteu-se ao silêncio. Num dos fragmentos da CP, o homem que assinou o despacho da indemnização exigiu um inquérito rigoroso, rápido e independente. E, para começar pela independência, nomeou toda a comissão de inquérito, fixando-lhe o valor das senhas de presença e das ajudas de custo.

O problema ainda persiste hoje, mas pouco, e amanhã estará esquecido. E o essencial é saber-se se o governo sabia, se o governo não sabia ou mesmo se o governo sabia que não sabia. Enquanto isso a CP espera pelo relatório da comissão e pelo sermão dominical do professor Marcelo. Que são quem, no país, mais e melhor sabe pronunciar-se sobre a merda. Sem sequer a cheirarem e, muito prudentemente, sem ousarem tocar-lhe!