30 de novembro de 2015

O sol entrando de braçado

O sol entrando de braçado pelas frestas estreitas que se abrem entre as estrelas, a milhares de anos-luz, e esta sede sem limite de abraçar o fogo que desce das montanhas, envolto em tecidos de linho fresco, varrendo as flores dos castanheiros que seriam vendidas à dúzia, às esquinas do medo que povoa as ruas desertas das cidades submersas, onde não há nem rebanhos nem pastores, os prados verdejantes sem préstimo para nada, domínio público para o desbarato.


Já ninguém tem dúvidas, ninguém se engana, ninguém se pergunta por que razão hão-de as castanhas ser assadas às esquinas e vendidas a alguns euros a dúzia, ainda quentes, por mais frio que seja o inverno que sobe as escadas. Porque hão-de as ameaças de paz vir sempre a explodir fortunas nos canos das espingardas e no objectivo milimétrico dos mísseis de longo alcance, arrasando camélias antes que lhes desabrochem os botões e uma gota de água cristalina fique suspensa na nervura de uma folha, entre dois raios de sol?

17 de novembro de 2015

Do horizonte se fez noite

Com o por do sol do horizonte se fez noite escura, com a lua a caminho do quarto crescente. E a ilha isolada, cercada do mar revolto que perdeu o azul da tarde, sem nenhuma ponte que faça dela península, um istmo geográfico que possa levar-nos ao outro lado do mundo, primeiro degrau da escada para as nuvens altas acima das quais apenas sobrevivem pássaros de ferro, reluzindo ao sol quando o tempo se vira a oriente.

Com a noite até o verde explosivo das hortênsias virou distância, ladeando as veredas sem destino em que se transformaram os caminhos, apesar da luz difusa dos candeeiros de iluminação pública que deixam adivinhar a lava irada dos vulcões para lá do nevoeiro em que se perdeu a tua silhueta esbelta e o castanho tranquilo dos teus olhos se fez estrelinha, um ponto luminoso cintilando ao lado da estrela polar.


Um dia destes há-de ser tempo de lua cheia, um luar brilhante e próximo enchendo-me todo o espaço aberto da janela, a preia-mar trazendo consigo um mar sereno, espelho perfeito a reflectir todo o segredo dos teus passos, os cabelos soltos, um vestido breve esvoaçando ao ritmo a que respiras, a luz tranquila dos teus olhos confundindo-se com o candeeiro que varre todo o cais de embarque. Os barcos balouçando à cadência a que te bate o coração.

16 de novembro de 2015

Sobre professores universitários, o teorema de Pitágoras e a descoberta do caminho marítimo para a Índia


O título é tão longo que o conteúdo do arrazoado que iria seguir-se, para bem da pátria e do eterno repouso, em paz, do senhor Eça de Queirós, se me varreu por completo. Mas para informação isenta e especializada, fica o aviso: João Carlos Espada, professor universitário, IEP-UCP, escreve à segunda-feira, cartas do Atlântico “sobre alegados “tabus” – anticomunistas e antifascistas”. Mesmo que, segundo o próprio, já tudo tenha sido dito sobre a situação política e, acrescente-se, o professor Cavaco possa ter regressado da sua visita de estado às selvagens e da sua consulta ao bruxo não sei quê jardim, sobre maiorias parlamentares e governos de gestão. Ámen!

14 de novembro de 2015

Morro-me devagarinho

Morro-me devagarinho. A imagem da renúncia a cada manhã, escorregando pelo espelho embaciado abaixo. Sempre os mesmos passos, inseguros e frágeis, percorrendo os mesmos trajectos irregulares do cimento mal afagado dos passeios, a cabeça caída, o olhar fincado na ponta dos sapatos, cambados e velhos. E tristes.


Assim me vou aquietando, e encolhendo, a um canto da vida. Com os dias silenciosos e lentos, como se fossem anos, sempre de inverno. O sol carregando a mesma humidade da chuva e o mesmo brilho ausente dos nevoeiros densos e persistentes. Sem nenhum Dom Sebastião que se espere, a derrota de Alcácer Quibir até onde morre o horizonte, o mar pelo meio, cortina para o desconhecido.

6 de novembro de 2015

As mulheres

As mulheres! De lenço na cabeça, avental à cintura e tamancos nos pés, a face trigueira à custa do estio. Debruçadas nos lavadouros públicos, esfregando ceroulas encardidas, coradas ao sol fugidio de novembro. Um sorriso acanhado no fundo melancólico do olhar, ensinando línguas nas salas de aula das escolas públicas, a foice na mão direita segando as searas de trigo maduro, catarinas eufémias de um país por inventar, vermelho de sonhos e de um fustigante vento norte, sem pão para as crianças estendidas à porta.

As mulheres! De cabeça descoberta, sentadas nos salões dos cabeleireiros, os cabelos de molho na espuma dos champôs vindos de Paris, saias acima do joelho, frequentando universidades e fazendo ditados, perseguindo a independência económica e o abono de família para os filhos. Aprendendo a conduzir automóveis e a fazer manobras de marcha atrás, subindo ladeiras íngremes e descendo rampas sem fim que desembocam nas margens abruptas dos rios, onde se debruça a preguiça dos pescadores desportivos.


As mulheres! Envergando bandeiras desfraldadas nas tardes frescas de outono, com palavras de ordem clamando por dignidade, os cabelos soltos caindo para poente, a levar maior beleza ao por do sol e ao voo estridente das gaivotas, planando sobre um mar chão espreguiçando-se na areia fina e seca do dia tranquilo. Sapatos de salto espreitando pelos tornozelos, sentando-se à volta da mesa dos restaurantes, um peixe escalado na travessa, o verde da alface a cair-lhe das bordas, algumas garrafas de vinho branco tinindo de sede nos copos de vidro, a algazarra do riso a encher a rosa-dos-ventos. Um grão na asa!

4 de novembro de 2015

A quarta-feira a descer pela escadaria

A quarta-feira a descer pela escadaria, para o adro da igreja, como se fosse domingo e a missa tivesse acabado, com o abraço fraterno para o vizinho do lado e a hostilidade do punhal escondida na manga para todos os outros em volta. As cenas bíblicas nos painéis de azulejos dispersos pelas paredes a que chega a luz filtrada e colorida dos vitrais, um Cristo sempre pregado ao cimo de uma cruz, esperando pelo arrependimento e pela ressurreição.


O céu coberto de guarda-chuvas abertos sob uma chuva pontual e certa, a caminho do inverno, sem doutrinas no horizonte, o dia sem protecção, com o sol escorrendo pelas calçadas que ainda restam pelas ruas da cidade, a noite a nascer a ocidente onde morrem todas as ideias e se enterram todas as esperanças. Um tempo óptimo para me aconchegar ao borralho, a assar castanhas na cinza que vai sobrando na lareira, enquanto me sinto tão rural como Fernando Pessoa na Brasileira do Chiado e me visto de Álvaro de Campos para ler, sem enganos e sem interrupções, uma completa Ode Triunfal dos dias claros que regressam pela primavera.