27 de agosto de 2013

O Olival

O Olival era, em tempos passados, apenas um povoado muito antigo, escorrido no fundo do vale, lado a lado com a ribeira que o acompanha, na base das ribanceiras que o cercam e que múltiplos lugarejos persistem em escalar, à procura de sol e de sustento, pinhais acima. Actualmente o Olival é antigo e velho, promovido a vila, as ruas abandonadas ao sol inclemente do estio, os campos desertos, nem vivalma, só as estradas estreitas que descem pelas encostas, o tojo por todo o lado, o coro estridente das cigarras, e uma outra que o atravessa e que leva à cidade próxima, uma só camioneta diária, a ida ao princípio da manhã, o regresso ao fim da tarde, antigamente era só nos dias de feira. Agora nem a feira vale a pena, mesmo duas vezes por semana, tudo visto e caro, marcas contrafeitas expostas à apreensão e à fogueira.


A aldeia é desordenada e dispersa, sem grandes sombras a que os velhos que restam possam acolher-se, conversar desgraças e passados, entreter o tempo no jogo das cartas e do chinquilho,  esperar pelas trindades e pelas migas que lhes confortem o estômago e tranquilizem a noite. Recolhem-se ao silêncio das casas, onde até as moscas vão dormitando pousadas nas paredes brancas de cal, resmungam monólogos que nem eles entendem, não percebem como possa haver pão e vinho, com os terrenos de pousio e as vinhas também velhas e pequenas, sem poda e sem sulfato, encavalitadas por aí acima, par a par com algumas oliveiras que ninguém trata e cuja azeitona ninguém apanha, nem os panos se estendem, nem as varas se usam.

Antigamente o Olival era o mundo  de toda aquela gente que percorria a pé todos os caminhos esburacados, a poeira de verão, feita nuvem por um vento desabrido, a lama de inverno, os carros de bois atolados, a parelha sem força para vencer o lodaçal e a ladeira. Ali se nascia, sabe Deus onde e como, se crescia, se ia à escola quando a necessidade não reclamava desde logo os braços infantis para o trabalho no campo, se ia à missa, à catequese, à comunhão. Muitas vezes se vivia e morria  sem nunca ter ido a Lisboa e sem nunca ter visto o mar. Eram coisas abstratas para que não havia descrição, uma terra sem fronteiras nem limites, só gente e casas, água a perder de vista, atirando-se às rochas da praia, só visto, não havia palavras para contar. Dizia quem tinha visto.

Não havia nem polícia nem guarda, a autoridade eram o senhor prior, tão infalível como o papa, o senhor professor e o senhor chefe dos correios. A todos se tirava o chapéu e se fazia a vénia, se pedia conselho e se contavam as dificuldades da vida e a fome tísica dos filhos. Depois havia os senhores das quintas, os proprietários, muitos alqueires de milho e de feijão, tantas arcas cheias, muitos almudes de vinho, as adegas cheias de pipas, algum trabalho de sol a sol, contratado no adro da igreja, ao domingo, depois da missa, onde também se ia para receber a jorna da semana e espreitar uns momentos de descanso. Hoje a escola e os correios fecharam, não sobraram nem o professor nem o chefe, a casa do padre está ao abandono, as ervas a subir-lhe pelas escadas, há um que vem de fora, para dar a missa de domingo e recolher o magro pecúlio das esmolas. Fora isso só vem para um funeral ou outro, cada vez menos, já quase não há gente para morrer!


13 de agosto de 2013

Notícias frescas da crise

Fresquinhas, divulgadas hoje. A primeira! Os lucros das seguradoras triplicaram no primeiro semestre do ano, apesar do recuo verificado no ramo automóvel. O crescimento, segundo informam, está diretamente relacionado com os seguros feitos para substituição das pensões de reforma que têm sido fortemente atingidas pela troika e pelo governo que tem às suas ordens. Portanto, as seguradoras não se podem queixar da crise. Pelo contrário...


A segunda! Os bancos, a taxas de juro especulativas, estão a emprestar dinheiro para pagamento de arrendamentos. O que significa, linearmente, que estão a emprestar dinheiro que sabem não lhes poder ser pago. Esta situação foi o fulcro da chamada crise, com a banca a emprestar dinheiro a pessoas que sabia que não poderiam pagar-lhe. Andamos nós a pagar isso tudo, e mais. Agora a banca, com o nosso dinheiro, quer vencer a crise utilizando os mesmos meios que a criaram. Só Freud poderá explicá-lo, nem Cavaco lá chega...

O Estado! Bastam estes dois pontos para evidenciar a inexistência do Estado como entidade destinada a gerir os negócios públicos no interesse de todos os cidadãos. E os cidadãos são o senhor Ricardo Salgado, mais a sua cadeira no Banco Espírito Santo, mais a sua mansão na Boca do Inferno, mais as brincadeiras aos pobrezinhos na Comporta e o Jaquim Bexigas, um sem abrigo que se embrulha no relento da noite e se agasalha num portal esconso do Teatro Nacional de São João.


10 de agosto de 2013

Representantes do povo a banhos

A democracia representativa é, já e só por si, uma romaria pegada entre representantes e representados. Solenemente os representantes ignoram e odeiam os representados e estes desprezam os representantes com a maior carga de bílis que a vesícula consiga segregar e a mais extensa ladainha de impropérios que o vocabulário lhes permita. Tirando isso, a confraternização entre ambos é diária e total: cruzam-se às esquinas, aguardam nas mesmas paragens de autocarro, descem as mesmas escadas rolantes, tomam a bica ou o cimbalino com o ventre, dilatado ou contraído, encostado aos mesmos balcões. Ao fim do dia sentam-se nas mesmas esplanadas, debicando caracóis e emborcando imperiais, enquanto o sol se esconde e a noite desce suavemente, como os cadáveres descem à cova. Com a alma encomendada ao diabo, à má sorte e à maioria parlamentar.


Os representantes nunca fazem nada para si e muito menos em seu proveito, salvaguardando o legítimo direito a um salário digno que eles próprios definem, o emprego de familiares e amigos porque é preciso sobreviver em tempos de crise e a proteção de correlegionários e simpatizantes, alistados na mesma quadrilha de assaltantes e malfeitores, com direito a sede com porta para a rua e subvenção estatal que, como representantes, eles têm a pesada responsabilidade de estabelecer. Trabalham arduamente durante todo o ano, viajam para todos os cantos do mundo, encontram-se com os representados nos recônditos mais improváveis, privam as mulheres da assistência necessária – e muitas, inteligentemente, mandam-nos pastar para outra pradaria – e os filhos da ajuda necessária nos trabalhos escolares e na aprendizagem das orações do catecismo.

Com tão atarefada e intensa atividade é natural que se esgotem, problema que a sua superior sapiência sabe não afetar os representados, que nem sabem o que é o “stress” e se dizem, quando muito e só por vezes, apenas cansados. E que, nessas circunstâncias, aproveitem agosto para a ida a banhos e para as sardinhadas com os representados, a cavaqueira – cuja base etimológica, refira-se, não vem de cavaco nenhum – e o bailarico com a concertina e o corridinho à cabeça. É bonita de ver esta osmose simples e profunda entre os habitantes precários da aldeia da Coelha ou da praia da Manta Rota e os desempregados da serra do Caldeirão, que não precisam de emprego, de reforma, de subsídios, que fazem filhos e que  são felizes sem saberem o que têm e, de forma ingrata, a quem tanto o devem.

Ainda ontem, a noite passada, na Coelha, o senhor Silva, em nome dos portugueses, teve um contingente policial ao seu serviço que alguns curiosos tiveram dificuldades em quantificar. Para o proteger? A ele e à Maria? Nada disso, nem pensar! Apenas para garantir que a rua se mantinha livre e os portões da sua casota abertos de par em par, para que todos os representados pudessem chegar até ele, trocar duas palavras de amigo, agarrar no pedaço de broa, por-lhe em cima a sardinha a pingar gordura e empinar o copo de tinto do vizinho Alentejo.

Quem foi que disse que nem se podia passar à porta? De certeza alguém que tinha pedido um Porto Ferreira!...


9 de agosto de 2013

Morreu Urbano Tavares Rodrigues

A notícia vergastou-me antes de almoço, enquanto saboreava um café e folheava um jornal que, ele próprio, questionava a intenção altruísta do ministro Casto, ou Castro, ou Crato ou seja o que for, de subsidiar o ensino básico privado, no sentido de criar mais desemprego e possibilitar aos pobres a livre escolha da escola onde querem os filhos. Já que na Comporta os ricos brincam aos pobrezinhos, andando descalços, não comendo a horas certas e indo à praia sem segurança, fico na expetativa. Não tarda de certeza que poderei escolher livremente o automóvel em que hei de ir a Fátima, como fazem os ricos, utilizando uma bomba topo de gama como eles e o senhor Dias Loureiro usam. Devidamente financiado pelo orçamento do estado, pela ministra das finanças e pelos lucros exorbitantes dos suopes.


Tive com Urbano Tavares Rodrigues um batismo tardio, quando era um leitor inocente e compulsivo. Não me motivavam os contos e novelas e os relatos de viagens. Achava que lhes faltava a dimensão e a profundidade sociais que apenas obras de maior amplitude conseguem garantir. Até que, por acasos do destino, comprei e li Os Bastardos do Sol e, depois, Uma Pedrada no Charco. Depois, à medida das possibilidades do meu bolso e do crédito que um amigo me concedia numa livraria, corri a comprar tudo o que encontrei dele. E converti-me definitivamente, e com maior convicção à medida que ia deixando a inocência pelo caminho e pelos anos.


Urbano, com quase noventa anos, partiu hoje, mas não nos abandona. Deixa-nos uma obra intensa e variada, uma consciência incontornável, um espírito jovem e um sonho de futuro. Bem haja Urbano, por tudo. Aplaudo-te, de pé!

7 de agosto de 2013

O país sem tesouro

Pela calada da noite o governo fora a retirar da sua enxerga e do seu descanso um guarda aposentado, tido por perito a descobrir coisas por encomenda e pronto a ser espoliado de parte da sua pensão, a bem da troika, da banca e do futuro das más contas públicas.

Pela madrugada, algures e sem manta que o cobrisse, o primeiro amanuense interrompe o sonho de ali babá e os quatrocentos ladrões, pergunta pelos resultados da investigação do perito. O vigilante de serviço, mascarado de vice, informa-o que a coisa era como se pretendia, tudo invenções da oposição, da esquerda radical e do cardeal  patriarca, ámen.

Pelo alvorecer um estafeta é mandado a casa do insuspeito e aplaudido secretário de estado Pais Jorge, utilizando uma viatura de alta cilindrada e mais alto custo, como manda a austeridade, a confirmar-lhe a notícia e o emprego por que tão denodadamente se batera, contra ministros, bancos e suopes.

Pela manhã o secretário de estado acorda tal como viera ao mundo, nuzinho de todo, o patriotismo pelas ruas da amargura, uma irrevogável crise de amnésia. Não se lembra de nada, não sabe que cargo ocupa, esqueceu o nome do motorista, nunca foi a nenhum banco, ninguém alguma vez ou em algum lugar lhe falou ou lhe disse o que eram suopes. O que ele gosta mesmo é de sardinhas assadas com pimentos e de entreter-se a contar os tostões que lhe enchem a arca antiga, herdada dos avós.

Demite-se, sem saber o que é isso. O país está sem fortuna e sem tesouro, infestado de ladrões e de melgas. O primeiro amanuense exclama porra, mata alguns mosquitos que lhe sugam o sangue das pernas, retoma o sono e os sonhos. Amanhã é outro dia, de sol e mar, de trabalhar para o bronze, de gamar mais um bocado aos reformados. A bem da equidade!


3 de agosto de 2013

Os prejuízos da banca

Durante a semana que termina foram divulgados os resultados da banca, relativos ao primeiro semestre do ano. Excluindo o BPI e o Santander, que somaram lucros totalizando 90 milhões de euros, a Caixa, o Millennium, o Espírito Santo e o Banif (um novo e ampliado BPN em perspetiva), totalizaram prejuízos no valor de mais de mil e cem milhões de euros. O facto, só por si, suscita algumas interrogações e um aviso severo aos contribuintes, que os vão suportar.


Pode a banca registar prejuízos, quando é certo ser ela, como parte mais poderosa, a definir as condições em que empresta e a quem empresta dinheiro? Linearmente, não! Tradicionalmente a banca seria mais do que um antro de agiotas sem princípios e sem escrúpulos. O seu objetivo, louvável e correto, seria captar poupanças, remunerá-las – porque não há almoços grátis -, emprestá-las e cobrar por isso. A ideia perdeu-se nos últimos anos, o estado divorciou-se das suas funções naturais de regulador e o país perdeu parte da sua soberania para a ditadura burocrática de Bruxelas. Passou a valer tudo, a pretexto de haver estado a mais, o que não passa de um embuste simplista.

Mesmo sem acesso e consulta às contas da banca, importa então perguntar como foram construídos tão volumosos prejuízos. Decorreram da sua atividade operacional normal? Obviamente que não, e a edição de hoje de um conhecido jornal escreve expressamente, em subtítulo: “Contas semestrais da banca reflectem situações distintas e revelam que o sector ainda tem pela frente um longo processo de ajustamento”. E que processo é esse? Argumentarão os banqueiros, no conforto isolado das suas mansões fortificadas da Boca do Inferno, que tudo é resultado da crise. A crise tem as costas largas e, na ambiguidade com que se lhe referem, a sua paternidade pertence largamente à banca e à sua ganância especulativa. Tecnicamente os prejuízos crescem à medida da necessidade e da criação de provisões para cobertura daquilo que designam por crédito mal parado ou, mais simplesmente, do crédito cuja cobrança é inviável.

Mas considere-se que a gestão cautelosa seja do que for, banca obviamente incluída, impõe que se avalie previamente o que se empresta e a quem se empresta, de forma a garantir a subsequente cobrança. E onde e em que se investe, de forma a não estar a investir em frações de três assoalhadas em Plutão que, desgraçadamente, já nem estatuto de planeta tem. A inobservância desse senso comum não é sequer negligência, é crime, na intenção descarada de apresentar lucros fictícios que encham os bolsos dos vizinhos do Guincho. Para que depois o estado lhes evite a falência pura e simples, porque não tem as mãos limpas, e imponha aos contribuintes o pagamento da ganância alheia e dos seus devaneios.