18 de fevereiro de 2014

Escrevo-te silêncio

Escrevo-te silêncio. A inquietude de uma folha vazia de ideias estende-se-me pela frente, só vazio, o céu solto de gaivotas, os ninhos das cegonhas nus no alto de antigas chaminés e no cimo das torres das igrejas. Nem restolho, nem pássaros, nem trindades. Nenhum violino que chore, nenhum saxofone que  arraste o som pelas pedras da calçada.

Uma inquietação, compulsiva e viva, um tumulto de saudades, dois rios caudalosos que nascem no fundo garço dos meus olhos. Um olhar sereno, uma angústia calma, a lentidão com que percorro cada pequeno detalhe do teu corpo, a esperança a soltar-se-te dos cabelos desalinhados ao sabor do vento norte, frio e persistente. A praia vazia de banhistas, a areia fina arrastada pelo mar alterado, espuma suja, casas inundadas, destroços navegando pelas ruas, tão longo é o inverno, véspera de primavera.

Dois dedos leves a afagar-te a fronte, desenhando-te carícias na face macia, pousando-te suavemente sobre o sorriso cúmplice e a humidade natural dos teus lábios finos. Os beijos que me encaminhas para a alma, com sabor a chocolate, estrada aberta, nem curvas nem portagens, o coração apenas apeadeiro. O calor morno do teu ombro chegando-me às narinas, a volúpia da fragrância fresca que se liberta do teu corpo que desvendo, viagem completa, caminho das especiarias, dois braços à volta da tua cintura fina.



A rota desenhada a traço fino no teu dorso, ponto a ponto, um dedo indicador definindo o rumo, como bússola apontando ao paraíso, cada beijo suave um passo mais para o destino, os braços trémulos num abraço forte apertando-te ao meu peito. Trópico de Câncer, as mãos imóveis sobre o encanto dos teus ombros, geografias, cruzeiro do sul. rosa dos ventos, astronomia, constelação de uma só estrela, estrela maior, primeira grandeza, sistema solar, centro do universo. 

7 de fevereiro de 2014

Pulhice humana

O país e a pulhice indígena têm para com o senhor José Vilhena uma histórica dívida de gratidão. Além de todos os direitos de autor que lhe devem ser pagos pela sua história universal da pulhice humana. Foi ele a pôr Portugal no mapa da pulhice e a conferir estatuto ao pelintra pulha nacional que não passava da vulgaridade rasteira.


O pulha nacional tem hoje visibilidade pública, desempenha cargos políticos, administra fortunas, tem filiação partidária, foi à escola, tem habilitações literárias. É licenciado, mestre ou doutor, é comentador de televisão, tem colunas de opinião nos jornais neoliberais, é entrevistado nas rádios regionais onde também cantam o senhor Quim Barreiros e a dona Mónica Sintra. É médico, mesmo especialista, mesmo cirurgião, colecionador de arte, apreciador de Miró, advogado estagiário, juiz, dirigente desportivo, futebolista, comendador, jogador de golfe e apostador no casino. Ouviu falar dos Lusíadas, já alguém lhe falou de Pessoa, desconhece por inteiro quem seja o engenheiro Álvaro de Campos, admira Lili Caneças, reclama a ida de Eusébio para o Panteão.

Genuinamente o pulha tem estatuto mas não tem nem consciência nem remorsos. É fisicamente uma coisa amorfa, que não cristaliza para ser diamante, e de química indefinida e mal cheirosa como as celuloses. O mal é o seu propósito, a vingança o sortilégio de que se alimenta, mesmo quando se põe na primeira fila, em bicos de pés, estendendo a sua carta de curso e a ponta afiada do bisturi, pronta para o corte do que lhe der mais jeito ao mau génio. De resto tem a coragem de quem age pela calada, a coberto da noite, colado às paredes pouco iluminadas e é inimputável. Não tem a culpa de nada mas tem a certeza absoluta de tudo!


O pulha atrapalha tudo, tem a massa encefálica concentrada no dedo grande do pé direito, a cabeça é vácuo. Não pratica desporto, não faz exercício, não joga às cartas nos jardins públicos. Pratica golfe, um jogo a que chama desporto, muito em voga nas ruínas do casal ventoso com equipamentos comprados em libras esterlinas, no Harrods da capital inglesa. Um jogo em que se chama “holes” aos buracos e “greens” aos relvados de capim rasteiro. Como ele!

6 de fevereiro de 2014

A novela dos Mirós

Eu nunca vi um porco a andar de bicicleta e ainda me poderia admirar. Graças a Deus, e ao Boavista, que o senhor João Loureiro já viu e eu não tenho razões para duvidar do seu olho de lince e de outros conhecidos atributos seus. Como a hereditariedade e o jeito para a música como vocalista de um grupo que andou por aí a fazer chinfrim e que tinha um nome mas que não era Madredeus. O que eu vi foi só o seu progenitor a andar de fritadeira, atrás de uns sacos de batatas, algures na zona de Maquela do Zombo e, desde aí, que lhe admiro a habilidade para o triplo salto mortal invertido sob comando de um apito dourado.

Não fosse isso e eu nunca acreditaria que Coelho fosse nome de gente, Portas apelido de vice qualquer coisa e, atentem, não sei quê Xavier secretário de estado da cultura. Cultura assim, em sentido lato, sem ser do milho ou do feijão que, por sermos ricos, importamos de Espanha que é pobre e só produz laranjas e desempregados. Mesmo com óculos o tal de Xavier continua míope e não enxerga coisa nenhuma, embora fale muito e diga pouca coisa. Mas, pelos tempos que correm, passou inesperadamente a estrelar a novela dos quadros pintados pelo catalão Miró que já quase destrona o êxito cultural da casa dos segredos e da respeitável dona Teresa aos gritos Guilherme.


O principal figurão da novela é um tal do extinto reino dos algarves que confessa ser grande admirador de Miró desde os tempos em que, pelos canaviais, ambos corriam de fisga à caça dos pardais. Admira-lhe a arte na construção das fisgas mas escusa-se a pronunciar-se sobre a respectiva pontaria, até porque a caça ao pardal é proibida por portaria camarária e pelo mais profundo espírito da constituição, Da que está em vigor ou da do professor beirão, para ele tanto faz, desde que haja bolo-rei para o lanche.

Outro figurão, dispensado do “casting” por falta de aptidões, proclama, desde a gaiola de São Bento, que a defesa do país e o futuro dos portugueses depende da venda dos Mirós e, ameaçador e estúpido, ameaça ir buscar alguns milhões à saúde e ao ensino, onde já quase só sobram casas mortuárias, escolas fechadas e professores no desemprego. Por mim até suspeito que se os quadros puderem ser vendidos a tempo ainda haverá bilhetes grátis para o Benfica-Sporting do próximo domingo e a equipa de arbitragem terá uma semana de férias numa estância das Caraíbas.


A estrela, salvo seja. O tal não sei quê ar ridículo Xavier para quem, eruditamente, a cultura é apenas batata, importada das Astúrias, em sacos de cinquenta quilos. E que pensa que a cultura é mesmo batata frita, comprada nos supermercados, para matar a fome aos meninos que fazem surf, aprendem golfe e incham de obesos, enquanto reprovam a português e a matemática, para emigrarem e fazerem diminuir as taxas de desemprego. Como acha, com inteligência, que a culpa do imbróglio dos Mirós é do Afonso Henriques que nunca devia ter descido de Guimarães, de quem o problema foi herdado, e que não consta que soubesse ler ou escrever. Como ele não sabe, coitado!