27 de fevereiro de 2024

O reencontro

A praça, com o formato de um vasto quadrado, ocupava o espaço de mais de quatro quarteirões. O lado mais nobre era delimitado pela avenida larga que levava para fora da cidade e por onde circulava um trânsito intenso e frenético. E para ela confluíam ruas e avenidas novas, de traçado linear e geométrico, ladeadas de árvores que, pelo Verão, semeariam uma sombra protectora sobre os passeios para os peões e para as esplanadas. Era Novembro. A tarde seca, indo a meio, espalhava um frio vespertino que começava a anunciar o Inverno próximo e que já bem se sentia sob as roupas ainda ligeiras que se vestiam. Àquela hora o espaço parecia deserto e os bancos em volta estavam quase todos vazios. O Outono já despira de folhas todas as árvores que erguiam para as nuvens os ramos nus numa espécie de súplica calada. Um cinzento claro, sem ameaças de chuva, nublava o céu parado.

Chegar ali custara mais de trezentos quilómetros e alguma meia dúzia de horas, com uma ansiedade persistente revolvendo-me por dentro, enervando-me com a lentidão a que se moviam os ponteiros do relógio. Parece que nunca mais se chegava ao destino e que nenhum tempo passava. Depois a vastidão do espaço e a monotonia da tarde tolhiam-me os sentidos, incapaz de saber de onde vinham ou para onde iam todas aquelas ruas. Nada como andar em volta, de mãos nos bolsos para enganar o frio e a inquietação, a passo lento, perscrutando a cada momento todas as pequenas distâncias, na esperança de ver surgir algures, em qualquer uma delas, uma silhueta que me fosse familiar e que viesse tranquilizar-me o espírito e restituir-me a confiança. Que fosse capaz de me devolver o brilho ao esverdeado dos olhos e o sorriso ao desencanto do rosto.

Foi à contraluz do poente, com contornos vagos e indefinidos, que a imagem se foi tornando mais nítida a cada passo seguro e tranquilo que dava na minha direcção. Com isso a praça readquiria vida e animava-se, ao mesmo tempo que parecia tornar-se mais suave o frio da tarde e mais distante a ameaça da noite. Não sei como, mas mantivemo-nos no mesmo passo, contendo as emoções, quando a distância que nos separava finalmente permitiu que nos reconhecêssemos. Paramos frente a frente, olhos nos olhos, perdidos de gestos e de palavras, como se de silêncio se tecesse o nosso deslumbramento. Devo ter-te apertado as mãos entre os meus dedos trémulos. Estavas calma e nelas batia, seguro e certo, um coração confiante. Tão calados ficamos que dizíamos tudo. O abraço e todas as palavras foram apenas um complemento de que nem precisávamos, tudo o resto já nos bastava. E não sei quanto tempo depois o reencontro era, finalmente, o dia seguinte.

24 de fevereiro de 2024

A partida

Àquela hora o dia aproximava-se do fim e para lá dos prédios à beira mar o sol ia descendo sobre as águas quietas da baía. As folhas das palmeiras mal buliam à força de uma brisa suave e o tempo seguia o seu curso, indiferente à inquietação que agitava a vida e a cidade. Todas as horas eram de pressa e tudo urgia. Tranquilamente, por reflexo, os raios de um sol amarelo, de fim de tarde, inundavam a frontaria do edifício virado a Sul, onde todas as varandas se apresentavam desertas de gente. Não se via vivalma, como se ninguém tivesse ainda regressado a casa depois do trabalho.

Foi ao crepúsculo, quando já quase se acendiam os candeeiros de iluminação pública que, de longe, a silhueta se desenhou na penumbra, chegando-se ao peitoril virado para o largo onde se arrastava um trânsito caótico. A distância e a pouca luz que sobrava do dia que ia morrendo não permitiam, àquela distância, reconhecer ninguém. Apenas adivinhá-lo pelos contornos do perfil e pela mão acenando ligeiramente para a rua, como se o fizesse indefinidamente para nada e para ninguém. Mas o gesto era, todavia, uma despedida breve na tarde quente e húmida, era um curto adeus que parava o tempo e interrompia a marcha do calendário. Ficando linearmente por saber quando e onde seria o dia seguinte, se o houvesse.

Porque o dia seguinte seria sempre um dia vazio, deixando apenas uma curta memória e um pálido rasto de luz a perder-se num intranquilo e pesado céu cinzento. Não houvera tempo para nada, nem para conversas nem para se darem as mãos, muito menos ainda para se conhecerem. O futuro era, mais do que nunca, uma incógnita por revelar, resguardado pela cortina que era a incerteza do dia-a-dia. Era como o próprio presente, inseguro, fluido e deslizante, como se não houvesse gravidade que pudesse manter o equilíbrio de nada. A um cantinho do coração ficava, todavia, o registo de uma morada e de um contacto. Sem dúvida que seriam necessários, não se sabia quando, embora não se soubesse, de momento, se viriam a ser bastantes para alguma coisa. Mas seriam!

21 de fevereiro de 2024

Trinta mil pés

Hoje, já com uma manhã de Fevereiro transbordando de sol, a imensa tranquilidade do rio à tua espera, com o regaço farto do amarelo recente das mimosas, enquanto a brisa se aquieta para proteger a dispersão do pólen e a árdua tarefa dos insectos polinizadores. De regresso vens planando por cima de um tecto alto de cirrus esfarrapados, suspensos a mais de trinta mil pés, quase pendurados no sol, exibindo os braços abertos e um sorriso largo. O dia sereno, com o Inverno alto, trazendo os primeiros rebentos aos ramos nus das cerejeiras onde se abrem as primeiras flores brancas anunciando a Primavera próxima. E lá em baixo o mar grande, azul e esférico, sem marés e sem calemas, espreitando o infinito para além das nuvens, acima dos trinta mil pés e da velocidade de não sei quantos nós. Um horizonte sem prazo abrindo-se à chegada.



16 de fevereiro de 2024

Subir ao Pico do Arieiro

Saber as coordenadas, subir ao Pico do Arieiro, ver-me no cume do mundo, a 1818 metros de altitude, nem mais, nem menos. Sentir o rosto vergastado pelo vento rijo, engelhar-se-me a pele nos braços descobertos, encolher-me como se isso me protegesse do frio. Que longa visão, que magnífica paisagem toda povoada de montanhas e de silêncio. Ouvir-te esse olhar fresco, tórrido de ternura, pairando acima das nuvens, total brancura de cúmulos dispersos pelo céu abaixo, sem perigo de chuva. Acima só o sol e o mar à volta, largo como tudo, tão expressivo como todas as palavras que não preciso de dizer-te.

Só uma música, tão de todos que é apenas nossa, é tão eloquente como o pico e as nuvens abaixo. Chorando um lamento em cada corda de uma guitarra portuguesa, nas pontas de uns dedos que ainda não ganharam comparação. Só os Verdes Anos podem acompanhar a confiança da minha mão estendida para o sol, encurtando distâncias, abrindo caminhos pelo fresco das levadas. Façamo-los, com a água límpida correndo com a mesma melodia, seguindo ao mesmo ritmo a que me bate o coração apressado. Só Carlos Paredes, fazendo hoje 99 anos, perturba esta magnífica visão e lhe acrescenta este sentido sublime, pairando acima do pico e das montanhas.

14 de fevereiro de 2024

Largar de novo

Tão longo foi o caminho que me trouxe até aqui que já nem sei bem quanto foi enviesado nem que obstáculos teve que vencer. Para mais sabendo-me, como sei, parco daquela persistência que nos leva a dar a volta ao mundo e a descobrir novas praias. Agora, com a tua imagem rente aos meus olhos e a melodia das tuas palavras a marcar o ritmo dos meus passos, tudo é um milagre, uma festa num salão onde se dança uma valsa vienense. Quanto tempo passado, quantos desenganos, quanta esperança deixada cair com as folhas do calendário. Quantos anos bissextos!

Sabe-se sempre como se vai começar, nunca se sabe como acabam e onde nos vão levar as diligências encetadas. À partida o horizonte é sempre de esperança que muitas vezes se perde no caminho, cede ao cansaço, alimenta o desânimo, exige outro recomeço. A desistência é muitas vezes uma sedução a que é preciso resistir. Se tanto te procuro, se tão grande é o desejo de sucesso, maior ainda tem que ser a vontade para encontrar-te, não sei em que recanto de um país desconhecido. Aguardar pelos resultados, perder a calma, desesperar. Persistir.

Depois a alegria contida, entender que, de facto, tudo vale a pena se a alma não é pequena, como se comigo morassem a inspiração e a grandeza do poeta que nos legou o poema e a mensagem. Sentir-me rejuvenescer, voltar a ser a criança de sempre, reviver o passado, recomeçar a vida no momento onde ela se perdeu. Sentir pender-me da face, de novo, o olhar esverdeado da esperança que fora deixando pelo caminho. Voltar a acreditar, procurar vento de feição, enfunar as velas. Zarpar, largar de novo. Já era tempo!

9 de fevereiro de 2024

Regresso aos castelos

Regresso aos castelos sempre que posso e cada retorno é uma nova descoberta. Entro, como sempre, pela porta de Santarém para, antes de iniciar a subida de acesso, poder deter-me lá em baixo, junto à capela, sob a azinheira, admirando a imponência das torres de vigia do paço dos condes, erguendo-se do penhasco. Depois, encolhendo-me, venço a porta e viro à direita, para ir dar ao parque fronteiro ao castelo e ao paço. Hoje, que o dia está de chuva, é ali que te encontro e que te estendo a mão para que me preenchas este vazio e me acompanhes na visita. No terreiro é a estátua do terceiro conde de Ourém, o Condestável, que domina a paisagem. Minha mãe nomeava todas as aldeias espalhadas em volta, sabia-lhes o nome, percorrera-as todas quando, a pé, se faziam todos os caminhos. Devasso cada canto, atento a cada pormenor, dou a volta a cada torre, miro a cidade exposta lá em baixo, no fundo do vale. Aventuro-me pela encosta íngreme, fincando os pés, agarrando-me aos medronheiros, enquadrando a fotografia.

Desço à colegiada, admiro a bela austeridade da frontaria da igreja, percorro-lhe com recato o interior sempre ornamentado com flores novas. Visito o túmulo do conde, o quarto, D. Afonso, o mais notável de todos, o que edificou o paço, o que fez do monte o centro de um mundo que era o seu. Pela viela vou ao pequeno jardim que se debruça sobre a planície, procuro a beleza exuberante dos brincos de princesa florindo junto ao muro, olho com nostalgia a pequena fonte de que não sei a idade. Embevecido ergo os olhos até à minha janela, a que me fascina, a única aberta para o largo, sobranceira, no branco imaculado da cal da parede. Tão perfeita que parece ter sido D. Manuel a mandá-la abrir para poder estender o olhar pelas redondezas. Pela mão levo-te à taberna que fica a uma das esquinas do pequeno largo. Não é medieval a ginginha fresca que ali nos servem na casca de uma meia laranja. Apenas o são a fonte, com um arco de ogiva perfeita, sempre a jorrar água e a estreita porta da vila por onde saímos. Debruçada sobre o vale onde a cidade se espraia à espreita do tempo de sol. É sempre como um regresso a casa.


6 de fevereiro de 2024

Talvez fosse Setembro

Talvez fosse Setembro quando, depois do cacimbo, os dias começam a aquecer. Ia a meio a tarde tranquila e eu, do primeiro andar, podia ver o trânsito fluindo à volta do largo. Não sei se a visita foi ou não anunciada, de tão surpreendente que seria para sempre. Fosse-o ou não, isso seria irrelevante naquele momento e em todos os outros pelos anos fora. Quando entraste não sei o que aconteceu, mas ali perdi a memória de tudo sem que, com isso, adquirisse consciência de nada. Nada me privou da voz, não senti que o sangue se me tivesse acelerado nas veias, não creio que o calor do dia tivesse subido de repente. Mas invadiu-me uma calma que me era estranha, um fascínio tranquilo que me trazia um mundo novo que eu nunca antes descobrira ou imaginara. A nossa vida, de todo, mudava ali, para um longo percurso sem destino e sem tempo definido.

Penso que não houve palavras, nem eu fui capaz de dizê-las nem tu tão pouco tiveste tempo para escutá-las. Calados, ambos descobríamos, de repente, que os sentimentos mais espontâneos não precisam de palavras, não exigem esclarecimentos, não carecem de justificações. Nem sequer precisam de tempo. Por encanto, nunca antes nos víramos e concluíamos que sempre nos conhecêramos, que sempre estivéramos juntos em toda a parte. Silenciosa, nem sequer te mexeste quando me levantei e fui lentamente ao teu encontro. Mantiveste firme a tua figura jovem e franzina, de sorriso ligeiro, como se o mundo tivesse parado para que nos olhássemos nos olhos. Olhamo-nos, e ficaste à espera do abraço e do beijo terno que depositei sobre os teus lábios finos e juvenis. Foste estendendo a mão pequena para que eu a encontrasse e para que a pudesse estreitar contra o meu peito. Foi um beijo definitivo, para sempre, por mais distantes que, a partir dali, fossem os nossos caminhos e os nossos destinos. Num dia futuro, decerto, teria de haver uma nova tarde e um novo Setembro, algures, fosse quando fosse, fosse onde fosse. Aquele encontro fora único e eterno. E o que é eterno é para sempre!

1 de fevereiro de 2024

Fevereiro

O dia tranquilo, banhado de um sol sereno, ergueu-se hoje dos meus braços, logo depois da madrugada. Entre a preguiça e o bocejo da manhã, as folhas verdes vestiram os ramos dos sabugueiros nos quintais atrás da casa. Nenhuma brisa, todas as folhas quietas. Nem o bico amarelo do melro solitário, irrequieto, saltitando de ramo em ramo, à procura de alimento, como se já pudesse haver frutos maduros quando ainda, temporãs, as magnólias começam a sua floração breve pelas ruas a que mais tarde darão alguma sombra contra a canícula.

De ti apenas e sempre a lembrança obsessiva sob a frescura dos lençóis, o perfume suave do teu corpo, a rebeldia matinal dos teus cabelos em desalinho parados na paisagem. Que longas distâncias temos percorrido e que longos caminhos temos ainda por percorrer, enquanto nos damos as mãos e o olhar. Dá-nos confiança o brilho confiante deste dia claro, inspira-nos, pousa-te no rosto aquele sorriso gaiato que se estende pelos anos e pela manhã fresca que te ilumina a face helénica. Vamos por diante, a vida é tudo o que ainda está por vir. Andemos, que Fevereiro aí está, iniciando o seu caminho. O ano é bissexto!