8 de novembro de 2007

O Orçamento

Antigamente, no tempo em que os animais falavam, o orçamento era um recado rabiscado em meia folha de um vulgar caderno escolar, num cursivo miúdo, cerrado e impenetrável, que o Dr Salazar mandava um estafeta levar à Assembleia Nacional, com passagem pelas arcadas do Terreiro do Paço, apenas porque esse era o caminho mais curto. De resto o Dr Salazar, licenciado em direito por Coimbra, doutorado pela Santa Madre Igreja e especialista em finanças domésticas pela Junta do Vimieiro, era parco de palavras, a que sobrepunha a eficácia dos gestos e das atitudes. O país seguia pachorrento à sombra de uma Constituição que o jurava uno e indivisível do Minho a Timor, manifestava-se a favor do chefe sempre que este ordenava e ia transformando o analfalbetismo e a miséria em barras de ouro que acumulavam pó e desgraças nos cofres do Banco de Portugal. O futebol, o fado e as sardinhas de conserva levavam depois a grandeza do condado até aos algarves e às distantes terras de Marrocos.

Depois, com a revolução industrial, a que segundo o licenciado Sócrates ainda assistiremos este século, e até talvez mesmo neste seu primeiro desconchavado mandato, as coisas evoluíram. O Orçamento passou a ser alguma meia dúzia de resmas de papel de primeiras vias, diligentemente dactilografadas durante noites sem sono e sem descanso, acompanhadas de centenas de mapas com números cuja exactidão era garantida pelas mais rigorosas réguas de cálculo da Papelaria Fernandes, passe a propapanda e o reconhecimento que o país, ingrato, lhe deve ainda hoje. Tudo arrumado num sem número de pastas de arquivo, tristes e sombrias nas suas lombadas negras, previdentemente amarradas com resistente fio de nylon e esforçadamente carregadas até à porta da Assembleia da República onde o respectivo presidente aguardava a comitiva, os acordes da fanfarra da Guarda e o desfile garboso dos bombeiros voluntários de uma corporação de província.

Mais recentemente o senhor ministro das finanças, acompanhando por uma comitiva de secretários de estado, chefes de gabinete, assessores, secretárias e auxiliares, passou a incumbir-se da tarefa ele próprio, para exemplo do país, do mundo e dos países de língua oficial portuguesa. Conhecida a debilidade física e sistemática dos ministros das finanças, o Orçamento passou a ser armazenado numa infindável sequência de zeros e uns, que os cientistas acordaram designar por sistema binário, e guardado numa peça minúscula, sem formato normalizado, a que os técnicos chamam gongoricamente "pendisk" e que nem o Sr Cardeal Patriarca saberia exactamente dizer o que é. Mas que as câmaras de televisão a procuravam mais do que ao pródigo colo da Dra Fátima Felgueiras, disso não ficam dúvidas.

Agora, segundo os jornais ditos de referência, o Orçamento reduziu-se ao duelo medieval de aves de capoeira cujo sangue, se derramado, não dá mais do que uma deslavada cabidela, se as normas da sacrossanta União Europeia assim o permitirem. De um lado um arrogante garnizé da cova das beiras, correndo atrás de todas as galinhas da capoeira, como se as fosse galar uma a uma e se de cada ovo pudesse esperar-se um pinto calçudo e um parágrafo do Tratado de Lisboa. Do outro um frango careca, a que vai faltando a plumagem e a explosividade da juventude, mais parecendo uma galinha poedeira que o aviário atirou inexoravelmente para a reforma por ter passado de prazo de validade e já não ser rentável a dúzia de ovos postos. E que, subindo à tribuna e não sendo maometano, se não vira para Meca, mas se vira todo para a Câmara de Gaia!