28 de novembro de 2012

Um sítio não é um país


Se este sítio fosse um país não tinha o génio de Eça na literatura nem a pobreza envergonhada de Cavaco em Belém, sem conseguir pagar as despesas domésticas e julgando-se presidente da república. Ser um sítio, apesar de tudo, tem vantagens: o quotidiano é de todo previsível, não há factos relevantes, tudo é rotineiro, a normalidade está instituída em relação a tudo e a todos. Claro que desvantagens também tem: só verdadeiros agiotas emprestam dinheiro a miseráveis tesos cobrando, naturalmente, as taxas de juro que lhes vem à cabeça.


Ser país implica outras responsabilidades e confere também, naturalmente, alguns direitos. Num país seria surrealista que o titular de um orgão de soberania viesse a público fazer um discurso de mais de quatro minutos para dizer que estava calado. O que desde logo evidencia uma de duas coisas: ou dizer que se está calado é realmente muito difícil ou então quem está calado tem realmente problemas bicudos de comunicação e não sabe como dizer que está calado. Embora eu confesse que isto me confunde, porque gosto especialmente do discurso do homem quando se mantém calado. E, mais do que isso, até acabo por compreender tudo o que não diz, mesmo que nem sempre esteja de acordo.

Num país seria um escândalo ter um Dr. Borges como primeiro-ministro substituto, com o cargo oficial de consultor, pago pelo coitado do Zé Povinho a preço de ouro e tê-lo também como assalariado da maior mercearia do país para aconselhar sobre as conveniências da osmose entre as mercearias e as casas de saúde. Ou entre as secções de frescos e os centros de hemodiálise. Que são coisas tão parecidas entre si como o toucinho é idêntico à velocidade.

Num país um Valentim Loureiro, mesmo com um aristocrata “de” no meio, nunca poderia  ser militar de carreira ou autarca modelo, tendo por especialização a batata e o respetivo preço, sem saber nada de armas automáticas, de submarinos ou da guerra de 1914-1918 do ilustre, e saudoso, Raúl Solnado. E de há muito que um qualquer tribunal teria feito cumprir uma sentença ainda pendente e que determina a perda do respetivo mandato. Com ele a assegurar que a sentença já não vale porque o juiz se aposentou.

Num país um ministro como Miguel Relvas nunca seria nem Dr nem ministro por equivalência, tendo passado por uma escola superior para uma festa de receção ao caloiro e para aliviar a bexiga, que há coisas superiores à vontade de um homem. Num sítio, como se sabe, o homem sabe de tudo e nós de nada. Nós entramos na peça pobres e ele sairá milionário. E ainda virá à boca de cena para os encores...

Num país não teríamos um Dr Duarte Lima em prisão domiciliária com pulseira eletrónica, numa habitação de luxo com deslumbrantes vistas sobre o Tejo, ouvindo música clássica e exercitando as suas habilidades ao piano. Sem, todavia, ter de chegar ao exagero de lhe reservar o tratamento dado ao extraditado patriota Dr Vale e Azevedo, que não teve sequer uma sanita em condições onde pudesse sentar o ilustríssimo rabo, habituado a outras mordomias por terras de sua majestade, à custa do nosso dinheiro.

27 de novembro de 2012

No meu país


O meu país não tem nome mas é doce e fica à beira mar. Um mar sereno e chão, sem ondas e sem marés, que se espalha por areias de veludo. Onde árvores de folha fina se espreguiçam por entre o nevoeiro tranquilo e morno que arrasta consigo o sol das manhãs. O meu país não tem geografias, fica algures entre o polo norte e o polo sul, a que as convenções não atribuiram sentido, nem distância, nem meridianos. Não se usam nem réguas, nem transferidores nem outros instrumentos que sirvam para determinar os rios que falta transpor para chegar ao fim.

O meu país não tem princípio nem fim, não começa nem acaba. Não há animais ferozes nem mecenas que financiam a morte com livros inúteis e obras de arte feitas em cartpintarias e penduradas em paredes lisas, rigorosamente verticais como a queda de meteoritos do infinito. Infinito é mesmo infinito, sem símbolos matemáticos que o representem e sem olhares longos que o encurtem para cá dele próprio. Não há triângulos, nem teoremas de Pitágoras, nem geometrias variáveis. Nem fusos horários, nem sol da meia noite, nem civilizações incas, nem viagens de circun-navegação.


O meu país não tem símbolos nem alfabetos com que se escreva amor. Nem ferramentas com que ele se grave no granito dos promontórios. Todos os navios largaram  da amarração dos portos e se perderam para lá do horizonte, sem lemes e sem bússolas. E os portos são miragens por inventar, que espalham a espuma do mar pelas praias, sem cruzeiros e sem rotas. Onde os peixes chegam à deriva das correntes, a comer à mão de quem há-de alimentar pássaros sem nome, em praças sem limites e sem tabuletas penduradas nas esquinas.

No meu país não se sabe o que é a fome, que tanto mata como enfarta. No meu país o amor está escrito no olhar brilhante das crianças, sem necessidade de lhes ensinar o nome e o significado. E a fome está para além de todos os destinos, à sombra da noite que o sol varreu da astronomia. A esperança está para cá de todas as portas que se removeram, sem urgência nem cor. Mas pode ver-se na pele lustrosa das crianças que trazem o amor faiscando no olhar

23 de novembro de 2012

Quem tem cu tem medo


Já não me recordava da data e foi o jornal Público a recordar-ma. Mas memorizei subconscientemente as imagens que os noticiários televisivos me ofereceram no passado dia 14, com equipas de reportagem a acompanhar o acontecimento em direto. A princípio, de um lado, um conjunto de manifestantes, aparentemente rotos, maltrapilhos e inofensivos, mas valentes, desalinhados, desarmados, descontentes, desconfiados, desempregados e desprotegidos da vida e do estado social. Berrando impropérios, cuspindo para o chão, fumando tabaco barato e olhando em frente, como um grupo de amigos de uma tertúlia, aguardando a largada de touros nas ruas de Vila Franca de Xira durante as festas do Colete Encarnado, preparando-se para as pegas, as correrias, as poses para a assistência e as fugas descontroladas à procura da proteção providencial das tranqueiras.

Do outro lado as bestas, de olhar metálico e feroz, nervosas, os cascos ressoando na pedra do terreno que ocupam, mortas por ação e sangue. Sem o enquadramento de campinos garbosos, montando cavalos enfeitados para a festa, nem chocas de cornos longos e retorcidos, mas com cães ao lado, latindo, aos pulos, impacientes no treino recebido e no desejo de agarrar a vítima pelos fundilhos e ferrar-lhe os caninos nas nádegas indefesas e carnudas. Espumam, ameaçam arrancar, desistem, olham em volta como se tudo fosse lezíria, atemorizam, dão uma passada atrás.


No hemiciclo, para lá da proteção confortável das tranqueiras, está toda a pouca gente importante que comanda a festa e o país. Foram vendidos à populaça que se empoleira nas escadas e se debruça das varandas com a mesma técnica de embuste com que se vendem os detergentes para a roupa. Todos tiram as nódoas mais difíceis, lavam mais branco e cheiram intensamente a lixívia. E acotovelam-se transidos de medo, tremendo de cagaço, receando que a maralha descontrolada possa transpor as proteções, enxuvalhar fatos e provocar hematomas.

Quem tem cu tem medo e o medo não é grande conselheiro. E pode prejudicar a determinação patriótica com que a pouca gente importante se entrega ao saque, ao estado social, ao querido leader e nos hipoteca à troika.. De forma que as medidas preventivas não se fizeram esperar e no dia imediato estavam a ser instaladas câmaras de filmar por cima de cada acesso aos paineis de proteção. Para identificar a maralha? Não! Apenas para a contar “em caso de catástrofe ou outra necessidade urgente”. Porque a pouca gente importante, vendida como detergente, não sabe que o sonho comanda a vida. Como não sabe que para contar manifestantes basta contar-lhes as pernas e dividir por dois. A menos que haja quadrúpedes infiltrados, o que complica o sonho e dificulta os cálculos!

22 de novembro de 2012

Promiscuidades


Sou pessoalmente avesso a todo o tipo de promiscuidades que, como se sabe, são a imagem de marca do país. Na política começa na Presidência da República, continua no governo, segue no parlamento, estende-se à mais recôndita junta de freguesia entre o nordeste transmontado e o sudoeste algarvio. E ao processo devem associar-se, com honrosas exceções que nem importa mencionar, institutos públicos, fundações, entidades reguladoras, empresas municipais e por aí fora.

Uma das promiscuidades mais relevantes será a da política com o futebol. O presidente do Benfica, um entendido em matérias de gestão e enriquecimento, por exemplo, enaltece a importância económica daquilo a que chama a “indústria” do futebol. Sabendo-se que a atividade não produz bens essenciais, sempre foi desenvolvida por instituições, vulgo clubes, mais do que tecnicamente falidos e tão carregados de calotes como o país. Apesar disso nada lhes acontece e político que se preze dá tudo e mais oito tostões para ser visto no camarote da presidência dos estádios.


No seguimento disto um deputado, desinteressadamente ao serviço do país, perdendo dinheiro e excedendo-se nas peixeiradas para conseguir lugar elegível nas listas, frequentemente licenciado em direito, por equivalência ou em dia feriado, falta às sessões do parlamento para defender um qualquer arguido no processo do Apito Dourado, se ainda os houver. Porque, como assegura a Dra. Cândida Almeida, em Portugal não há nem corruptos nem corrupção. Apenas ameaças!

Assim sendo não compreendo, nem aceito, que um deputado da província, beneficiando de ajudas de custo miseráveis, chegue apressadamente a São Bento na segunda feira à tarde, participe em programas desportivos para linchar os árbitros à terça, trate de negociatas à quarta, escreva para um jornal à quinta e tenha de partir apressadamente para o fim de semana na sexta feira depois do almoço. E nos dias que ainda sobram possa, de forma patriótica, devotar-se ao interesse público, ao desenvolvimento do país e ao enriquecimento, mesmo ilícito, porque prudentemente sucessivas maiorias têm impedido que o mesmo  seja criminalmente penalizado. Não vá o diabo tecê-las: o que não seria de alguns detidos no domicílio, com pulseira eletrónica e garantidamente inocentes e de mãos limpas, depois da prescrição de todos os crimes de que são vilmente suspeitos...

12 de novembro de 2012

Bem ida Heil Merkel


Mal vinda a esta antiga república das bananas, anexada por V. Exa. sem o esforço que Hitler teve de realizar em 1939 para fazer o mesmo à Polónia. Ele teve de o fazer pela calada da noite, de surpresa, sob um céu sem estrelas. A senhora não teve que fazer mais do que emprestar algum do dinheiro ganho nas transações connosco, submetendo-nos às regras que achou convenientes e fixando as taxas de juro calculadas pelos judeus que escaparam ao exterminio do III Reich.

A senhora não gosta de Portugal e há mais gente que não. E um senhor chamado Eça de Queirós ainda gostou menos do que todos juntos, e teve a lucidez de o dizer abertamente e de um modo tão real e tão irónico que se mantém atual e continua a fazer rir todo o mundo, incluindo os seus restos mortais. Excluindo aquela coisa do regicídio de 1908, em que dois energúmenos logo linchados no local, assaninaram o rei e o princípe herdeiro somos, apesar de tudo e excluindo o régulo da Madeira, um povo de brandos costumes, sempre prontos para os copos.


E tanto assim é que não há memória de ações violentas nem represália fosse do que fosse, nem no futebol. O árbitro escamoteia descaradamente uma penalidade e a gente leva as mãos à cabeça, invoca Nossa Senhora de Fátima e quando muito insulta os ascendentes e a mulher do homem do apito. Depois ocupa a semana com especialistas e peritos a discutir o assunto e o sexo dos anjos nas televisões, até que chegue o jogo seguinte e a cena se possa repetir. E se, comprovadamente, o presidente de alguma corporação desvia para proveito próprio alguns míseros milhões de euros, o país demora dez anos a condená-lo, permite-lhe disfarçadamente a fuga para o estrangeiro e depois ocupa-se com a instrução, inútil e interminável, de um processo de extradição.

Não tem V. Exa. que temer, pode fazer a pé e sem segurança todos os poucos percursos que a agenda da visita inclui. O povo é sereno e cumulativamente parvo. Se lhes cuspir numa face eles, como Cristo, porão a jeito a outra e agitarão bandeirinhas dos nossos dois países, fornecidas gratuitamente por uma câmara de comércio conjunta. E acharão que os submarinos são caros mas que ficam bem em frente ao cais das colunas, mesmo que tenham agonios à saída da barra, a caminho das Berlengas.

O espaço aéreo estará fechado, não fosse acidentalmente cair na altura da chegada ou da partida de V. Exa. algum meteorito ou porcaria parecida. E as gaivotas foram proibidas de voar a baixa altitude e para cá de Alcochete, havendo o permanente restolho de voluntários a enxotá-las para o Samoco. A chegada está prevista para o meio dia? As ruas estarão fechadas ao trânsito e à circulação de pessoas e outros animais a partir das sete. A partida de regresso a Berlim está agendada para as dezassete? Não se preocupe, continuará tudo fechado e os infratores terão sido encarcerados em celas de alta segurança, depois de se lhes ter acalmado a excitação à força do cacetete. Os submarinos que ainda havemos de pagar a V. Exa., com juros e com língua de palmo, patrulharão o rio Tejo e ostentarão as bandeiras dos dois países, com o ministro da defesa perfilado na ponte de comando. A navegação foi proíbida, os cacilheiros terão de utilizar a ponte 25 de Abril e as taínhas e outros peixes terão de manter-se a montante da ponte Vasco da Gama, exceto os que forem necessários para a confeção do almoço de V. Exa.

Sabemos que V. Exa. se encontrará com o presidente da república, que familiarmente tratamos por senhor silva. Não se preocupe, nunca estarão a sós porque o senhor não tem a desdita de falar alemão e a senhora não percebe algarvio de Boliqueime, um dialeto regional utilizado para pedir fiado e para cantar o tia Anica de Loulé. Além disso todos os aposentos foram convenientemente revistados e o homem absolutamente desarmado, até o corta-unhas se lhe tirou do bolso do casado e se lhe escondeu a lima de unhas que tinha no copo das esferográficas.

Terá ainda um encontro com o nosso plumitivo primeiro-ministro, que V. Exa. já conhece e que sabe inofensivo para com quem tem algum dinheiro para emprestar, seja a que preço for. Há uma semana que ele faz perguntas ao seu ministro adjunto e que se urina nas calças com receio de que algo possa desagradar a V. Exa. De resto está pronto para tudo, desde reduzir salários, eliminar benefícios sociais, fazer crescer a taxa de desemprego e aumentar os impostos. Ou implementar outras medidas que V. Exa. entenda que possam contribuir para a redução do nosso défice orçamental e para a sua felicidade pessoal.

Não verá pessoas mas elas estarão a aclamá-la entusiasticamente do outro lado do rio, sob o olhar vigilante e democrático da polícia de choque. Dois polícias por cada manifestante de idade superior a 50 anos, três se a idade do dito for inferior. No caminho que V. Exa. percorrerá haverá estabelecimentos encerrados por decisão própria e por razões de segurança das pessoas que os frequentam. Embora tivessemos informado essa gentinha que V. Exa. vinha por bem, a sua quadrilha não faria assaltos e tinha concordado em entrar desarmada na cidade, deixando as armas penduradas assim que pusesse pé em terra.

4 de novembro de 2012

Valentim Loureiro explicado às criancinhas


O impagável comediante Valentim Loureiro voltou a ter esta semana os orgãos da comunicação social à sua disposição, sempre dispostos a recordarem ao país o génio do plumitivo major, comerciante, industrial, dirigente desportivo, autarca, empreendedor, patriota e outras. Condenado há uns anos, no âmbito do processo Apito Dourado, em que era arguido como dirigente exemplar da bola indígena, à perda do seu mandato de autarca, viu agora a sentença confirmada por um tribunal superior.

Não é preciso recordar nem ao país, nem ao concelho de Gondomar, onde fotografias do major, em traje de gala, decoram as salas de aula das escolas e os galinheiros dos eleitores, que o processo foi desde sempre uma maliciosa invenção do ministério público. No país e arredores, incluindo a troika, todo o mundo sabe que o futebol nacional é um exemplo de transparência, de honestidade e de boa gestão. E que o plumitivo major batatas não tem nada que se lhe aponte mas que, apesar disso, sempre foi vítima da inveja pela sua inteligência, pela sua conduta e pelo seu sucesso.


Tinha apenas vinte anos e frequentava a escola do exército. Prestável, assinou em vez de um colega, por acaso sem conhecimento deste, de forma a poder receber-lhe o ordenado e poupar-lhe trabalho. Sabem o que aconteceu? Inacreditável, mas foi acusado de falsificação e expulso da escola. Mais do que injustiça tratou-se de ingratidão.

Mais tarde, em Angola e em 1965, como oficial de administração militar, adjudica o fornecimento de batatas a um comerciante, ao preço de 4 escudos o quilo quando o valor real era de 3 escudos e meio. A diferença de 50 centavos era distribuída pelo infatigável major e por um outro oficial para promover a economia regional e aumentar o volume de vendas do comerciante. Arrecadou com isso cerca de 260 contos, a valores da época. Foi louvado ou promovido? Inacreditável, mas foi expulso do exército pelo governo fascista e corrupto que conduzia os destinos da megalomania nacional.

Pelo caminho, como patriota, é implicado no MDLP como financiador do movimento. É condenado em Pombal por insultos a um elemento da GNR. Envolve-se em incidentes com guardas da antiga sexta divisão do Porto, chegando a ser detido e expulso. Lesa o BCP depositando um cheque volumoso, sem provisão, e sendo ilibado por ter sido enganado por um banco da Costa Rica, o coitado. É acusado por um polícia, num jogo do Boavista, por lhe ter chamado analfabeto em virtude de o não conhecer quando até o presidente da república o convidava para o chá das cinco. Insulta vários agentes da autoridade numa rua da Foz dizendo-lhes:  "Vocês são uma merda. A Polícia precisa de um comandante que vos ponha na ordem. Ainda bem que vai haver polícia camarária.". Poucos anos depois insulta um polícia que procedia à identificação da sua mulher por esta ter estacionado o carro em cima do passeio e no enfiamento de uma passadeira (sendo mulher, e ainda por cima esposa do major, que melhor sítio para estacionar?). Valentim recusa depois identificar-se, alegando que o polícia o conhecia muito bem.

Tudo desinteressadamente, tudo por amor à pátria, à sua subsistência, ao bem estar da família e ao futuro dos descendentes. E vem agora a decisão de um tribunal confirmar-lhe a perda do mandato como autarca. Nem morto! Mais fácil é que o tribunal seja extinto e os juizes encerrados no forte de Peniche.

2 de novembro de 2012

Um pouco mais a sério


Não será grande adivinhação presumir que o homem foi, desde sempre, o maior inimigo de si próprio. A ambição e a ganância justificaram, desde sempre, a escravização do próprio semelhante. O poder político sempre foi exercido ou esteve submetido ao poder económico. Alguma coisa mudou em determinado momento, ou pareceu mudar. Pareceu e poderia ter sido um princípio, quando se começou por, ao menos, de tempos a tempos, ascultar a opinião do povo. Sempre de forma condicionada, apesar de tudo. Excluindo os menores, o que é compreensível, excluindo mulheres, excluindo analfabetos, excluindo pobres.

Chamou-se ao sistema democracia. Representativa, e exercida por hipotéticos representantes do povo, que também se incubiram do estabelecimento das respetivas regras. Seria de esperar que o sistema evoluisse, são a dinâmica e o sonho que comandam a vida. Mas não evoluiu o suficiente, nem de forma sustentável como diz o chavão. Pelo contrário, as coisas foram regredindo, muito rapidamente nos últimos vinte anos, ou algo mais.


Algumas facilidades permitiram aquilo a que chamam globalização e, com ela, o salve-se quem puder e o caminho para um novo tipo de sociedades precárias, instáveis, sem presente e sem futuro. Os valores adoptados foram subvertidos, tudo passou a ser provisõrio, inseguro e perigoso. Como pai gostaria de legar aos meus descendentes condições que lhes permitissem uma qualidade de vida superior à que tive. Creio que este será o desejo básico de qualquer pai, sensato, preocupado com o seu semelhante e sem ambições desmedidas. Mas já sabemos que assim não será, os nossos filhos terão uma vida mais difícil do que a nossa e os filhos deles também.

A nossa geração, e não apenas ela, hipotecou o presente e destruiu o futuro. E não será ela a pagar o custo incomensurável dos seus erros. A cada dia se estreita a faixa dos ricos que passam a muito ricos, que se afirmam trabalhadores como qualquer privilegiado que tenha trabalho e arrecade o salário mínimo. Do mesmo modo se alarga a faixa dos pobres que passam a muito pobres. Onde a fome mata indistintamente crianças, jovens e adultos, independentemente dos recursos disponíveis na porta ao lado. Enquanto se grita pela necessidade de reformas que aumentem a produtividade, instabilizem ainda mais as relações do trabalho com o capital e façam crescer exponencialmente os lucros e os dividendos.

Os gestores não são técnicos, são caciques cujo propósito único é aumentar os proveitos a qualquer custo, sacrificando direitos, esmagando morais, fazendo escravos daqueles que, como eles, têm atitude vertical e porte ereto da cabeça. E arrecadando, nessa condição, elevados salários, inumeráveis mordomias, inacreditáveis prémios. Sempre insatisfeitos, sempre clamando por normas que globalizem a ditadura, que legalizem todos os Biafras espalhados pelo mundo, que transformem torcionários em heróis. Globalizados.

No último fim de semana um quase pequeno pormenor terá passado quase despercebido nas manifestações de Madrid: cantou-se o Grândola vila morena! Acto que tem um significado que vai muito para além da distância que nos separa da capital espanhola: a resistência e a luta globalizam-se, adquirem nova dinâmica. Para enfrentar as dificuldades de sempre. Enquanto uma classe social vergonhosamente privilegiada, mais do que nunca, monopoliza todos os recursos materiais e todos os meios. Acreditemos que a globalização da resistência e da luta é o único caminho. Tem que se ir por aí!