13 de maio de 2020

Duas lágrimas sobre o orvalho da manhã [Mais uma lágrima tombando com o nevoeiro]


[O texto que se segue é de há três anos e foi uma evocação saudosa às memórias de minha Mãe. Que ali esteve quando Fátima era só Cova da Iria, um “bajanco” de água da chuva no cimo da serra agreste, as azinheiras sobrevivendo no meio do horizonte de pedra. E porque hoje o local é um sítio deserto, escapando-se suavemente entre o nevoeiro que desce, como se fosse uma cortina que se fechasse. Volto não alterando o texto, mas apenas acrescentando-lhe mais essa imagem. E mais uma lágrima, tombando com o nevoeiro.]


Duas lágrimas sobre o orvalho da manhã. O sol atravessando as copas perenes das azinheiras. Algumas nuvens brancas riscando a serra. E quase cem anos de permeio. E tu menina, feliz no teu vestidito novo e pobre de chita barata. Correndo pelo carreiro, quando te é curto o passo, para acompanhar a marcha de mulheres adultas, a quem a tua mãe te confiou: não me percam a rapariga.

Duas imagens e a proximidade a que me ficas, na larga distância dos anos. Da Cova da Iria não resta quase nada, nem o nome. Desapareceu o charco na cova do terreno, as pedras que emolduravam a serra e, mesmo as azinheiras, vão escasseando na beira estreita dos caminhos. Pararam por desuso, ao abandono, os moinhos de vento da Fazarga e da Ortiga.


Hoje fizeram santos os pastorinhos que morreram crianças. Sabes, não é importante. Cada mulher é canonizada com cada filho que dá ao mundo. Aos anos que te tenho neste altar que trago na cabeça, minha Mãe. Apenas por isso te trago aqui!

9 de maio de 2020

O café Polo Norte


Era tempo de calor, a meio da manhã, até posso estar esquecido, os meus dias não têm mais trópicos. O Polo Norte ficava na esquina, uma rua descia até à baía, passava nos correios, desaguava na marginal. A outra ia até ao Baleizão, podia virar-se à direita, morria também na marginal, atravessava a ponte, tinha a ilha toda à frente, a contracosta à esquerda, até à ponta. O nome das ruas já me esqueceu, também não interessa, sei que já lho mudaram, o meu tempo agora é só de bica e cimbalino.

A senhora jovem atravessou a rua com o filhito pela mão, entrou, encostou-se ao balcão, pediu um café. O pequenito – três, quatro, cinco anos? – empunhava sem nenhum entusiasmo um bolo de arroz, ia mirando os pasteis de nata expostos na vitrina, os olhitos brilhando de desejo:

- Mãe, quero aquele bolo.
- Não, já tens um. Come esse.

O pequenito não desistiu, foi insistindo debalde, sem resultado.
- Já te disse, come o que tens na mão.
- Este bolo é uma merda.

Não consegui engolir o café que tinha na boca, espirrei-o por cima do balcão, creio que me sujou o bolso da camisa, escorreu para dentro do maço de cigarros. Ainda eram os meus tempos de LM – felizmente já não são, há mais de vinte e sete anos -, o AC era por ali bem perto. A senhora deixou o dinheiro do café em cima do balcão, saiu apressada, o miúdo carregando o bolo de arroz e o desencanto. Eu já nem sei que camisa vestia, devia ter sido comprada na camisaria brasília, mas ainda me rio sozinho. Hoje e aqui, sob a ameaça do vírus e da chuva.





 

5 de maio de 2020

Dia mundial da língua portuguesa


A portuguesa língua que eu falo
Tem um grande livro cheio de palavras
E mesmo até quando me calo
São umas fáceis e outras bravas
Mas sempre disponíveis e sempre prontas
Tanto para cabeças sábias como tontas


Mesmo assim é duro e longo o seu rosário
De erros enganos e traições
Quando de verdade um dicionário
Está à curta distância de alguns tostões
E ainda assim essa distância
É um alto muro para tanta ignorância


Agora que a língua se celebra neste dia
Seria bom que a respeitassem como mãe
E a não deixassem solteira para tia
Mas a amassem como um bem
Porque estas palavras leva-as o vento
E vão perder-se no desnorte do cata-vento


3 de maio de 2020

Dia da Mãe


Mãe, com que fervor e com que fé tenho rezado cada letra do teu nome. Com o mesmo sorriso estampado na face te tenho estendido a bengalinha frágil, oferecido o apoio submisso do meu braço e retardado o passo para que nos mantenhamos lado a lado. Cumpro cada momento dos nossos dias como se fosse uma ladainha e quando chego há sempre aquela marcha alegre, como se uma banda tocasse no jardim para me dar as boas vindas. Para além da porta por onde entro há sempre o teu sorriso enchendo a sala, como se mais nada nem mais ninguém pudesse caber nela. E faltam-nos sempre as palavras que ambos ensaiamos durante os dias da semana, basta-nos a alegria do sorriso e o apetitoso sabor das lágrimas.


Sentamo-nos à mesma mesa da mesma taberna, a um canto da sala escondida na cave de uma moradia de gente abastada da cidade. Perguntas-me como ali cheguei, se moro longe e não conheço ninguém nestas paragens, nem aldeias nem pessoas. Vais saboreando o pão e gabando a broa, enquanto te retalho o queijo fresco no prato raso e o olhar te brilha percorrendo cada pedra das paredes. Entendemo-nos tão bem que não precisamos de palavras, mesmo que reproves a insistência com que te vou servindo o almoço e enchendo a paciência. Mas sorris sempre e sabes que, como te repito, é isso que te vale.

Deambulamos serra acima como se, ainda criança, lhe percorresses os caminhos até ao alto, o vestidito de chita esvoaçando-te sobre o corpito de menina, correndo para acompanhares o passo largo das mulheres. Quedamo-nos à sombra de uma oliveira carregada de flor, toda a serra estendendo-se à nossa frente. Enches de memórias todo o vasto horizonte que parece só nosso, um melro de bico amarelo salta sobre o muro baixo, a tua vida é um filme que tem a lotação esgotada e são só nossas todas as legendas. É tão vasto o teu sorriso que não me cabe na carteira, não tenho notas que o substituam, só nós ambos lá cabemos.

À noite, quando o fresco desce, aconchego-te a roupa ao corpo magro, passo-te a mão desajeitada sobre a face enrugada, deponho-te na testa um beijo agradecido e carinhoso. Sorris. E dormes. Mesmo na eternidade do teu sono é seguro e certo que continuarei a amar-te tanto, que continuarei a amar-te sempre!


1 de maio de 2020

Um ribeiro a correr ao lado da cama


Hoje acordei com um ribeiro a correr-me ao lado da cama, com um moinho plantado na sua margem esquerda, acolhido sob as copas dos salgueiros. E no alto, entre a folhagem, um ninho de melros com as crias piando de fome. Terra fora, as margens verdes de ervas rasteiras, trevo, luzerna, outras de que não sei o nome. O chilreio dos pássaros, o restolho dos rebanhos, o canto distante e próximo dos galos. Os chocalhos das ovelhas a caminho do pasto, um ou outro latido dos cães de guarda, o eco sibilino de um assobio. A água límpida, transparente, saltando por cima de algumas pedras, alimentando as mós. O ruído cavo e monótono destas, triturando o grão, deixando lentamente um lençol branco de farinha. E o silvo agudo de um apito de comboio que me desperta, que deixa um rasto de luz na penumbra do quarto, que faz desaparecer o ribeiro e o moinho.


Confinado há quarenta e oito dias, tenho transformado a minha vida e a minha casa. Libertei-me de amarras e de preconceitos, abri as janelas aos pássaros e à imaginação, a sobrevivência não convive bem com o isolamento. Se não se pode ir ao supermercado ou à mercearia, é preciso inovar, fazer a horta, tratar das couves, protegê-las dos parasitas, dar-lhes certificado de qualidade. Biológica, como é amigo do ambiente e do estômago. Há dias amanheci com um nutricionista à cabeceira, têm-me sido uteis as suas recomendações sobre a variedade da dieta em tempos de clausura. Tenho-me confrontado com a seca, a falta de chuva tem-me chegado a casa, vinda directamente do kalahari. Finalmente esta noite choveu e estão encharcadas as terras de cultivo e a varanda onde penduro a roupa a secar.

É um espaço diminuto o da varanda. Por baixo do estendal da roupa fica um tanque de cimento, chumbado ao chão para resistir aos terramotos e às investidas das lavadeiras. Serve na perfeição para lhe semear no fundo um quilo de arroz agulha, que é o de que gosto mais, mesmo que o carolino seja melhor e mais patriota. Parece que também se dá no baixo mondego, quando este abre os braços para o mar e se enche de arrozais e de canoas. Espalho-o no fundo, tão regularmente como mo permite o improviso de fazer tudo a olho. Cubro-o com uma curta camada de água e o tempo ameno, a tender para quente, ajudará à germinação. Dentro de uma semana terei um arrozal no tanque e terei de me manter atento, mondá-lo, libertá-lo de ervas daninhas. Esquadrinhei o chão em três pequenos quadriláteros, a um canto semeei um alfobre de alfaces, no do meio um canteiro de couve lombarda – ainda hei-de fazer um cozido à portuguesa, se conseguir criar porcos na despensa e montar um fumeiro na cozinha – e no último espalhei, sob uma suave cobertura de terra, bocados de batata de semente.

Abri a janela da varanda para lhes dar ar purificado pelos decretos da pandemia e deixar entrar o sol que por aqui passa a caminho do poente. Ao sol tudo medra, não invertam a ordem de nenhuma letra. Do lado de fora da janela pendurei um vaso que por inutilidade ocupava o parapeito. Semeei-lhe sementes de girassol, adoro o porte erecto dos girassóis, a sua corola tão regular e amarela, a utilidade reservada às sementes. Se a calamidade não lhes prejudicar o crescimento, ainda sou capaz de descobrir como se faz o óleo e aproveitá-lo para a fritura das batatas.