O vento ao sol, gemendo alto
nas copas do outono, o rio lá em baixo, no fundo do leito escavado entre as
margens de granito, contorcendo-se com as dores do parto a três quilómetros da
foz, onde vai parir gaivotas em voo plano e barcos prenhes de petróleo,
apontados às bombas de abastecimento e às cotações das bolsas de valores, a
azáfama habitual de chegada próxima, a crise instalada para além do cais,
intemporal e sempre.
Come chocolates pequena,
come chocolates, enquanto Pessoa encarna Álvaro de Campos, uma forma de
promoção social, engenheiro naval em vez de amanuense, a escrever poemas no
português escorreito que aprendeu nas escolas de Durban, de pé, encostado ao
balcão das tabernas do Cais do Sodré, o fígado desfeito, a caminho do hospital
dos franceses, tresandando a tabaco e a bagaço, os Jerónimos à espera, o
governo apostado em torná-lo herói nacional, sóbrio e lúcido, e em erigir-lhe uma
estátua no centro do largo.
É, se eu tivesse casado com
a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz, se ainda houvesse lavadeiras que
tivessem filhas e tu fosses uma delas, procurando casamento, hoje um, amanhã
outro, a roupa esfregada à mão, aquele cheirinho antigo às barras de sabão,
nenhum risco de haver filhos, a menopausa transposta há mais de uma dúzia de
anos, só mesmo pelo prazer que se alcança quando se sente o perfume fresco das
maçãs camoesas a entrar-nos pelas narinas, até ao fundo dos pulmões, o paraíso na palma da tua mão.