27 de abril de 2016

Vinte e dois mil dias

Vinte e dois mil dias são muito tempo, são muitos dias, mais do que todo o álbum “Long distance voyager” ou mesmo todas as canções dos Moody Blues, em todos os palcos do mundo por onde viajaram, durante anos e anos a fio. São campos de papoilas florescendo no verde que leva os terrenos férteis do forte de Peniche até à região deserta e cosmopolita das Berlengas, onde funciona o governo ideal de que falou Brecht. E que não muda, por mais que chova e os ministros caiam dos telhados, escorrendo pelas caleiras e perdendo-se nas sarjetas. Ainda assim, balançando na crista das ondas, o diminuto barco que te leva, o mar agitado, os teus cabelos longos desfraldados ao vento que vem de norte, reluzindo ao sol que espreita abaixo da linha da maré, centenas de golfinhos subindo pelo horizonte, as caudas desenhando um arco-íris perfeito, a física exacta da refracção total.


Um poema ao borralho, numa noite de abril que ainda não tem espaço para as cerejas, enquanto a neve ameaça acima de uma cota imaginária de novecentos metros, abaixo da qual os pinheiros mantêm o verde da caruma e os pássaros cheiram a primavera, onde escolhem os sítios de refúgio para esconder os ninhos e chocar os ovos. Ao serão, o fumo da fogueira que se entranha no fumeiro, a gordura caindo gota a gota, alimentando as chamas, escapando-se pela chaminé, uma nuvem branca espalhando-se na noite escura. Na obscuridade, o frio irrequieto dos teus pés chegando-se à lareira, o segredo das tuas pernas prometendo todo o calor das palavras que sussurras, os braços que estendes por cima da cabeça, um brilho de desejo e sono caindo-te do olhar e trazendo-te aos lábios sequiosos a cor explosiva do amanhecer. 

15 de abril de 2016

Uma pequena gota de orvalho

Uma pequena gota de orvalho escorrendo pelo gume da manhã, uma lágrima delicada tingindo-te de fresco a face de ternura, sublimando-se no nó cego que é esta paisagem em brasa, ventre todo feito de urze e de granito, por onde cresce o rio à procura da nascente. Apenas um irrequieto fio de água brotando-te dos pés, deixando a memória presa ao musgo que cobre as pedras onde fica reflectida a primeira imagem, um suspiro sensual pendurado nos raios de sol que vêm de oriente e que te trazem o ar puro que respiras e o cheiro magnífico das flores de cerejeira com que enfeitas o sorriso.


Os sonhos são como medronheiros crescendo nos penhascos, cobrindo toda a encosta íngreme que cai para o desfiladeiro, corando de vermelho e de maduro os frutos, ao sol de setembro, a doçura do mosto correndo nas bicas dos lagares, o engaço espremido a caminho dos alambiques, a parra ensaiando forrar a ouro o desenho geométrico dos socalcos. As palavras rudes de Torga projectadas no horizonte, os carreiros estreitos por entre fragas e vinhedos, levando ao promontório onde se situam a capela e o posto de comando, pontos e contos da montanha onde nasce o paraíso.

13 de abril de 2016

Muitos caminhos e nenhum destino

Muitos caminhos e nenhum destino, os teus passos lentos sob a folhagem, rompendo os dias a que já tarda a primavera. Um sorriso brando e tranquilo, como raios de sol pousando na serenidade da sombra, sem nuvens e sem vento. Um momento, como se não houvesse nem tempo nem instrumentos que o medissem, nem campainhas nem relógios, a mão que te estendo, os dedos que entrelaçamos, o tique taque com que sentimos bater o coração, o compasso adequado para que a melodia tenha a mesma imponência do voo sereno das cegonhas. Um extenso campo em baixo, exibindo o vermelho vivo e breve das papoilas, uma valsa vienense correndo em cascata, com a mesma frescura de um ribeiro que desce da montanha.

10 de abril de 2016

A chuva na manhã fresca

A chuva na manhã fresca, atravessando o equinócio, atrasando a explosão de verde nas copas quase nuas dos plátanos, os teus ombros descobertos, a igreja do outro lado da praça, ao fundo do adro amplo, onde se mantém desenhada uma enorme rosa-dos-ventos, obra de arte de um qualquer calceteiro de que se perdeu o nome e a profissão. Os guarda-chuvas abertos, atirando o céu limpo para lá do horizonte, como mostrengos povoando o cabo das tormentas, vítima futura da boa esperança, as quilhas brilhando à luz clara de um novo oceano, ainda por descobrir, rumos do oriente fascinante e misterioso. A esperança na cor rosa dos teus lábios firmes e ansiosos.


Depois, pela tarde, parece que um vento invisível, vindo de leste, empurrou o ventre da borrasca para o mar alto e foi desfraldando os cúmulos brancos pelo céu azul. Na tua sala, o sol rompendo a semiobscuridade das cortinas, a lareira acesa, a lenha ardendo num fogo lento, ao ritmo sincopado a que se dança um tango argentino, a gata ronronando com aquele calorzinho súbito alisando-lhe o pelo lustroso. A mesa posta, rectangular e longa, uma das pontas quase a fugir pela porta fora, sem nenhum lugar marcado e todos os lugares certos. Os pratos alinhados, os copos dispostos como se fossem uma escultura, os talheres arrumados com esmero, aguardando, os guardanapos de tecido imaculadamente branco, dobrados com rigor geométrico. Para o almoço!