31 de dezembro de 2004

Linguarejar

De há tempos a esta parte que durmo tranquilo e que deixei de me preocupar com os riscos que, pensava eu, corria a língua portuguesa. Tal aconteceu pelo efeito soporífero dos eruditos, profissionais encartados, possuidores de alvará, com colunas nos jornais, aparições celestiais nos telejornais e até mesmo com blogues com porta para o globalizado mundo virtual. A tranquilidade acentuou-se quando um dos meus descendentes em linha recta, não me recordo já com que grau de parentesco, me apareceu em casa com um ditado de três parágrafos, reproduzindo na perfeição os diálogos da Dra. Júlia Pinheiro com o seu interlocutor Professor Pavaroti de Jumento. Do cacarejar ao zurro tinha sido tudo fielmente reproduzido, senti que estava assegurada a continuidade da língua e a independência da Pátria. Admiti até que o Sr. José Saramago pudesse regressar ao país, desde que este fosse previamente desinfectado de Sousas Laras e que, a fixar residência na Zambujeira do Mar, pudesse haver chicas a passear-se na praia durante todo o ano a fim de lhe estimular a inspiração.

As jovens e os jovens repórteres que as televisões usam para os seus exteriores consolidaram-me o convencimento. Não me ficaram nem dúvidas nem receios. Apenas dois exemplos, que mais me não ocorrem de momento, o ilustram com toda a força da Guernica.

Exemplo A: A jovem repórter, destacada para uma reunião de pessoas importantes, é inquirida sobre o número de pessoas que já tinha chegado. Lesta, responde: já chegaram cerca de oito pessoas. Fico de imediato com a visão rigorosa da cena, teriam chegado entre 7,5 e 7,9 pessoas. A oitava teria meio corpo dentro da porta ou, sendo mulher e dependendo da medida, teria também já avançado com o par de mamas. O rigor da linguagem é muito bonito, não deve ser menosprezado.

Exemplo B: Esta manhã, na TSF, uma rádio de referência que incorre no erro de ainda não ter recrutado o Sr. Luís Delgado para o seu quadro de colaboradores e que, por isso mesmo, sintonizo menos. Uma jovem noticia o incêndio numa discoteca algures em Buenos Aires onde estariam algumas seis mil pessoas. E adianta que, segundo números oficiais, há 179 mortos praticamente. Fico certo, ciente e sabedor. Mas tenho pena daquelas 179 pessoas, todas praticamente mortas, quase no último estertor. Se Deus fosse de facto misericordioso pouparia ao menos umas quantas. Assim é mais que certo que à hora do noticiário seguinte estariam todas de facto mortas.

Por obrigações pessoais que não sou eu a estabelecer, não ouvi o noticiário seguinte. Mas, mesmo agora, estou atento. A ver se ouço repetir a notícia e se fico a saber se permanecem praticamente mortas ou se já estão só mortas, sem mais nada.

30 de dezembro de 2004

Angola e petróleo

Em primeiro lugar. Correspondendo amavelmente a um convite que lhe enderecei o Dito Cujo veio de visita ao Cabo Raso. Foi e será sempre bem-vindo quem, como reza um velho adágio, vier por bem. O blogue é público, os comentários estão e estarão abertos, quem tiver a gentileza de por aqui passar pode ler o que entender e deixar os comentários que lhe aprouver. À semelhança, aliás, do que eu próprio vou fazendo pelos recantos da blogosfera que já fazem parte da minha carta de prego. Mais do que deixar o seu comentário este amigo - seja-me perdoada a liberdade! - deu-lhe inclusivamente a exposição de um post autónomo. Ambas as acções se agradecem.

Em segundo lugar. Quando em Outubro de 2003 me aventurei nesta estranha coisa dos blogues não sabia nem o que eram e repetidamente perguntei para que serviam. Recordo-me de ter deixado um comentário num post do Barnabé e de ter ganho uma visita e, creio, o meu primeiro linque na coluna da esquerda - mesmo que ali não haja nem colunas do centro e muito menos da direita! - do blogue milionário. Não quer isto dizer que hoje saiba, mas pelo menos sempre são menos as dúvidas. E, em minha opinião, um blogue também serve para isto. Para trocar impressões, manifestar ideias, defendê-las. Por mim, e por temperamento, tentando a ironia e o sarcasmo relativamente a cada um dos pouco esperançosos dias que vivemos. Sem perder de vista a utopia e o sonho, sendo que este comanda a vida e, isso deixando de acontecer, a vida fina-se.

Em terceiro lugar. Um esclarecimento de índole estritamente pessoal. Angola não me é um país de todo estranho. Não sendo angolano de nascimento morrerei sendo-o do coração. Quase que lá dei os primeiros passos, frequentei as diversas escolas, tive os meus namoricos, nasceram-me os filhos. Bebi água do Bengo, comi cacussos pescados nas lagoas do Panguila e grelhados nos fogareiros do Letra. Fiz, deixei e conservo amigos. Uns do lá de cá, outros do lado de lá. Frequentemente repito uma curta frase de Camus em que se diz que em África o mar e o sol são de graça. Para acrescentar que é preciso conhecer África para entender a densidade de uma tão curta frase.

Em quarto lugar o comentário e o post do Dito Cujo, propriamente ditos. Não foi minha intenção sugerir que as receitas do petróleo fossem ou pudessem ser igualitariamente distribuídas por cada angolano. Creio ter corrido o risco de ser mal entendido e de, de facto, o ter sido. Mas essas receitas, públicas ou privadas, são geradas em Angola e era em Angola que deveriam ser aplicadas. O que é que o Estado angolano de facto arrecada, quanto fica retido no exterior à ordem de particulares, quanto entra nas contas do Estado são pormenores com que me não preocupo muito face à dimensão do descalabro. Não são José Eduardo dos Santos e o seu mais próximo círculo de amigos que o arrebanham todo mas são, seguramente, os que arrebanham a maior parte. A administração em funções é corrupta? Sem dúvida, da mesma forma que o seria outra se fosse diferente e o será certamente a que se seguir a esta.

Conheci bem o enclave de Cabinda, na altura com cerca de 120.000 habitantes, e o campo petrolífero do Malembo, sendo certo que toda a exploração, concessionada à Gulf Oil, era "offshore". A exploração estendeu-se a território angolano propriamente dito e, ao que sei, os jazigos foram sendo progressivamente localizados ao longo de quase toda a orla costeira. Quanto aos diamantes, cuja exploração esteve entregue à Diamang, em regime de exclusividade, na zona da Lunda, foi repartida - como aliás acontece com o petróleo - por outras empresas enquanto, como se sabe, o triunfo foi do garimpo e o enriquecimento do cacique.

Não creio que deva o sacrificado povo angolano aspirar a ficar rico. Como o não deve aspirar o povo saudita, iraquiano ou venezuelano. Angola é um país potencialmente rico com um povo extraordinariamente pobre, concentrando-se nas cidades, esgravatando as lixeiras à procura de sustento e deixando morrer crianças à míngua de alimento. Como a Suiça é um país pobre, sem recursos naturais, com um quarto do seu território coberto por neves eternas, cujo povo acaba por ter um invejável nível de vida, com as necessidades primárias perfeitamente satisfeitas.

Em penúltimo lugar. Coincidimos no essencial e não vislumbro, pela minha parte, divergências de maior. O investimento - já agora, lá como cá, salvaguardando aspectos específicos - deve de facto ser feito no futuro, naquilo que não dá votos nas próximas eleições, naquilo que reduz um pouco a capacidade de compra dos melhores champanhes franceses, naquilo que reduz os índices de mortalidade infantil e que prolonga a esperança matemática de vida para lá dos 40 anos.

Em último lugar. Quero referir o último parágrafo apenas para salientar que expressamente, e no bom sentido, o ignoro. Porque nunca o pensei, não o penso e não virei a pensá-lo. As opiniões de quem o pensa são, a meu ver, perfeitamente dispensáveis: estão completamente a leste dos problemas, devem ser pura e simplesmente menosprezadas.

A questão é complexa. O raciocínio e o alinhamento defeituosos. Um blogue é escrito assim: no fim da navalha, pendurado no trapézio sem rede de segurança. Se for preciso outros posts haverá para corrigir ou acrescentar factores que possam contribuir para melhorar o conjunto. Desculpo-me por isso. E sem favor ou reconhecimento tomo a liberdade de incluir o Dito Cujo na minha lista de linques.

As elites

A crescente frequência com que o país fala nas elites, a propósito de nada e a despropósito de tudo, deixa-me um sabor amargo a frustração e um revoltado sentimento de inutilidade. Carregado de dívidas e cheio de desempregados, com os empresários a reclamarem a baixa dos salários, o aumento da produtividade e o encurtamento dos prazos de entrega dos Ferraris, com a banca e os seguros esforçando-se por garantir a carteira e alguns postos de trabalho quando os lucros crescem a menos de 20 por cento ao ano, o país enxameia de elites. As elites surgem espontaneamente, de todos os lados, como os parcómetros nas ruas do Porto e os madeirenses nos comícios do Chão de Lagoa. Assemelham-se ao salalé que surge nos planaltos angolanos após as chuvadas tropicais, de asa caduca e vida efémera. Parecem voluntários participantes em manifestações no Terreiro do Paço, aliciados à conta do passeio, do almoço e do garrafão de tinto.

As elites sabem tudo, estão em todos os lugares, surgem quando o caos as reclama para a pronúncia final sobre as tragédias, têm nessas alturas direito a reverentes tempos de antena, sem uso de cronómetro e sem formulação prévia das questões. São como deuses pequeninos e humanos, que parecem ao nosso alcance, com aspecto de gente e algumas semelhanças com o bispo Edir Macedo, excluindo os fatos de bom corte, as viagens em avião particular e o negócio da Igreja Universal do Reino de Deus. Qualquer jerico, jumento ou mesmo burrico adulto e em vias de extinção, sem sequer passar pela academia para adquirir instrução e modos, se afirma como especialista seja no que for, adquire a condição de famoso e ascende, sem provas e sem concurso, ao estatuto providencial de elite. Desde logo apto para o desempenho de cargos ministeriais, incluindo o ministério da educação e a responsabilidade plena pela bem sucedida colocação de professores e pela manutenção em segredo dos relatórios de todas as auditorias que tiverem sido feitas ou pensadas.

Quanto ao vocábulo é escasso e curto o meu inseparável Dicionário Editora, 6ª. Edição, que refere a flor, o escol, o que há de melhor na sociedade. É óbvio que este permanente auxiliar não vale o preço que, há anos, paguei por ele. Não me converteu em elite de coisa nenhuma, amigos há que me apelidam de flor do capim, não tenho cartão de qualquer escol e, como se sabe, o melhor que há, em qualquer sociedade, são as crianças. Quanto a mim, entretanto, já deixei para trás até mesmo a adolescência. E quanto ao preço fez-se tarde para reclamar e exigir mais e melhor conhecimento da elite que, sem dúvida, se ocupou da sua elaboração.

Mas o conceito de elite alargou-se, a sociedade a que pertencemos passou a ser um jardim de lindas flores, - a propósito, as camélias estão floridas por toda a cidade! - já só temos melhores o que, a curto prazo, levantará problemas ao país por falta de termo de comparação. Qualquer gaja que se ponha nua em pelota e leia mal duas curtas notícias em frente a uma câmara de televisão passa a integrar a elite. Um ajudante de trolha que dê dois pontapés seguidos numa bola, ponha um tubo de gel no cabelo e dirija a um árbitro três c… sem parar, obtém o mesmo estatuto. Qualquer político que tenha nascido algures na capital e que por inspiração divina se veja como presidente da câmara da Figueira da Foz, - sem que me ocorra ninguém em particular - faça construir uns caminhos de tabuinhas que levem à beira-mar e empine dois copos nas docas depois da meia-noite é capa da Caras. E a Caras, como publicação de referência que é, não preenche capas com os desenhos ordinários do Sr. José Vilhena em que figura uma qualquer Odete de trancas à mostra e a apregoar uma virgindade do paleolítico.

Isto leva-me a concluir ter eu tido uma infância feliz, a que nunca faltou comida, calções e sapatos sem buracos nas solas, de permeio com umas boas cargas de porrada e alguns namoros platónicos. E a adolescência trouxe-me o convívio, esporádico e geralmente pago, com a elite, a flor, o escol da sociedade das putas do bairro de S. Pedro. Onde a gente ia todos, muito varonilmente despojados de complexos e cheios de vergonhas e inibições. Porque a Justa era, de longe, o que de melhor havia por aquelas bandas e por aqueles tempos. Pelos quinze anos - que a minha geração foi uma geração serôdia! - iniciava-nos a todos, de seguida se fosse esse o caso, à razão de vinte angolares por cabeça! Mesmo que eu hoje não pertença às elites, que fique bem claro: foram elas que me iniciaram!

29 de dezembro de 2004

Comparação

Vai ser fácil comparar a participação americana para o derrube da ditadura e a libertação do Iraque com a que certamente a ultrapassará no apoio às vítimas e na reconstrução das zonas afectadas pelo terramoto e pelas ondas gigantes do sudoeste asiático. Ambas logicamente expressas em dólares, não há que enganar! Não se trata de ir comparar toucinho com velocidade ou nabos com fenómenos do Entroncamento! Aguardemos pois!

Simples!

Muito simples! Uma pequena notícia na edição do JN de hoje revela que Angola exportou oficialmente, durante o ano em curso, 246,5 milhões de barris de petróleo ao preço médio de 35 dólares. O que representa uma receita de 8.627.500.000 dólares. Como ontem cada euro valia 1,3633 dólares aquela importância representa 6.328.394.337 euros. Como, em termos saudosistas, cada euro vale 200,482 escudos a conversão para a nossa antiga moeda dá-nos 1.268.729.153.524 escudos, ou sejam cerca de 1.268 milhões de contos.

Para que continue a ser simples! De acordo com dados oficiais, embora estimados, a população de Angola rondaria no ano de 2000 os 12.000.000 de habitantes. Nos países mais atrasados e mais pobres - para se evitar a estupidez do eufemismo "em vias de desenvolvimento" - aceita-se demograficamente que a respectiva população possa duplicar em cada 25 anos. O que quer dizer que em 2004 a população de Angola, também estimada, poderia ser computada em cerca de 13.920.000 habitantes.

Ainda simples, para que alguém possa explicar isto ao comissário europeu em Bruxelas e ao Dos Santos no Futungo de Belas! A divisão do valor de 1.268.729.153.524 escudos por 13.920.000 habitantes dá uma receita média de cerca de 91.144 escudos, ou sejam cerca de 7.600 escudos mensais, ou 250 escudos diários, por pessoa, apenas resultantes das exportações de petróleo bruto, oficialmente divulgadas.

Linearmente, esta seria o rendimento individual apenas resultante das exportações de petróleo, se fosse uniformemente distribuído. Mas Angola tem outras riquezas e produz outras coisas, mesmo que o petróleo seja a mais significativa. E a verdade ainda é que um qualquer cuanhama não trabalha para esta produção de riqueza tanto e tão afincadamente com a pandilha que desgoverna o país e se locupleta com a maior fatia deste rendimento.

Assim sendo será razoável que umbundos, kimbundus e até cuanhamas sucubam vítimas da subnutrição e da fome. Enquanto em Luanda, no palácio da cidade alta, o Dos Santos casa as filhas e convida os amigos da estranja para o marisco e o champanhe francês. Para também acabar simples!

A campanha

Na minha freguesia, incluindo o presidente da junta, está tudo em pânico. Terra desgraçada aquela, em má hora incluída nos itinerários do demónio, onde tudo sai ao contrário. Por decoro e algum temor a Deus e ao senhor prior, não lhe revelo o nome. Mas sempre digo que fica no Portugal profundo, aquele de que falam os políticos sem saberem o que dizem, o que é isso e muito menos onde fica.

Alguma sorte se deve agradecer ao facto do ribeiro ter secado. A levar água certamente correria para a nascente, trepando monte acima, submergindo cepas velhas e oliveiras novas. Quando a escola precisou de um novo professor o presidente da câmara veio em procissão fazer uma visita, o presidente da junta convocou a população, solicitou algumas galinhas para oferenda a sua excelência, acertou com o grupo folclórico uma exibição ao ar livre, recomendou o uso de fatos domingueiros. Sua excelência chegou sob o palio que cobre - salvo seja, que aquilo não é nenhum prostíbulo! - o prior na procissão da festa grande, por entre o barulho de foguetes a rebentar, com a banda a atacar com determinação As meninas da Ribeira do Sado. No meio de tanta gente que o acompanhava só vinham varredores, o juiz da comarca, o cabo da guarda, o conservador que assenta os nascimentos e passa os óbitos, o director da escola cêmaisesse e o não sei quê da escola cêmenosesse. Professor, nenhum!

Agora, pelo telefone, que a freguesia está evoluída, o presidente da câmara chamou o presidente da junta para que lá fosse, que precisava de lhe falar. O homem que é madeireiro antes das horas do expediente, levantou-se quando ainda era lusco-fusco, tinha tomado um banho de véspera, limpo o surro das unhas à custa de um graveto, desfez a barba de quatro dias, vestiu o fato com que acompanha os mortos ao cemitério, meteu o pescoço na gravata que está sempre de nó feito e arrimou-se. Na Toyota de caixa aberta em que vai ao negócio dos queimados e com que se faz ao caminho para o piquenique com a família amandou-se estrada fora e serra acima.

O contínuo, solícito, numa farda de general parecendo o comandante dos bombeiros, fez-lhe uma vénia, mandou-o subir ao primeiro andar e ao gabinete do presidente, ainda lhe ouviu qualquer coisa por entre dentes, melhor seria não ter ouvido, não há-de perder pela demora. O presidente tinha a porta aberta, levantou-se da secretária, caminhou em sua direcção, ainda chegou a pensar que se viesse com más intenções o virava com um murro nas trombas, pronto, que se fodesse o emprego e a ganância. Mas não! Ali havia merda! Estendeu-lhe a mão, tratou-o por senhor presidente, simulou um abraço assim de longe como se fosse na missa de domingo, afastou-se e sacudiu os bocados de carqueja que se lhe prenderam às calças. E falou!

Você sabe que em Fevereiro vai haver eleições, democraticamente toda a gente deve seguir a sábia orientação do senhor prior, santa como é, dita como o sermão do púlpito abaixo. Mas o nosso governo nem descansa com o tanto que se preocupa connosco e com o nosso bem estar. A preocupação com a província é a prioridade deste governo, tanto assim que o próprio primeiro ministro se deslocou já à região saloia e à Malveira da Serra e o ministro da defesa esfarelou os miolos a fazer contas para comprar quatro submarinos que a gente há-de poder visitar na doca do Alfeite, com bilhetes a um euro. E você nem sabe que distância vai do Terreiro do Paço à Malveira da Serra nem, talvez, quanto custam quatro submarinos. E da doca do Alfeite já ouviu falar? Se calhar nem do Jardim Zoológico!

Agora estive numa reunião com o senhor governador civil, um homem a quem o concelho tanto deve, católico praticante, sempre a distribuir esmolas à saída da missa, mesmo aos pobres, que me deu orientações para prepararmos a recepção ao senhor primeiro ministro que nos vai dar a grande, enorme, subida e elevada honra de passar pela nossa terra durante a campanha eleitoral. Fará uma curta paragem no adro da igreja, que aquilo é homem de muita ocupação a quem não sobra tempo, apenas para acenar ao Zé povinho, beijar duas criancinhas que devem vir de bata branca e cara lavada e apertar a mão ao senhor prior, ao carteiro que assegura o funcionamento dos correios e ao presidente da junta. Agora você veja se se esmera, corte o cabelo, faça a barba, a sua mulher que lhe engome o fato, engraxe as putas das botas, sacuda a terra da porra das bainhas das calças. Passe pela minha assessora de comunicação que lhe dará uma gravata nova, já com o nó feito. Eu estrago-vos com mimos, mas vá lá. É para o bem da freguesia, para o desenvolvimento do concelho e para a salvação da Pátria! O que eu me sacrifico pelo bem público...

28 de dezembro de 2004

Patriótico

Parabéns senhor ministro da Segurança Social, da Família e da Criança. Acaba V. Exa. por descer do seu elevado pedestal de ministro, assumindo a dimensão rasteira do português comum. Que sempre que não tem possibilidades para cumprir os compromissos assumidos se limita a protelá-los. Sem discussão e de forma unilateral. Assim têm feito os clubes desportivos em relação às dívidas incobráveis que têm - ironia das ironias - para com o ministério que o seu colega Bagão Felix superiormente dirige, da mesma forma rasteira e cheia de truques. Ou de forma exemplar como diria um conhecido major na reserva e segundo os métodos prescritos nas secretarias dos clubes das ligas profissionais. Decidindo sempre, para que não fiquem dúvidas, em prejuízo da parte mais necessitada. Para além de ser tecnicamente inovadora - engenharia de ponta, criatividade surrealista de Dali! - V. Exa. fecha a tampa da sanita sem puxar o autoclismo. Por cima dos doentes e dos desempregados que estão dependentes dos efeitos das mezinhas e dos anúncios de emprego. Ah! E dos substanciais subsídios de subsistência que o Estado que V. Exa. representa há-de pagar. Como sempre, tarde e mal. Se Deus quiser!

Numa passagem meteórica pelo governo acaba V. Exa. por garantir a entrada directa na história do país e a figuração na próxima edição da Diciopédia, com fotografia a cores e divulgação do inevitável currículo oficial. Na terra, descanse, hão-de recebê-lo com foguetes, dar-lhe o nome a uma rotunda e baptizar com ele um arruamento novo depois da aprovação por aclamação da comissão de toponímia ou da própria assembleia municipal. Nunca a freguesia esquecerá o tanto que a projectou para além dos caseiros limites do concelho. Mesmo os que agora ficam - patrioticamente, como dizia o outro! - à espera do subsídio hão-de esquecê-lo depressa e aplaudi-lo quando lá se deslocar para a romaria do Verão que vem.

Saiba V. Exa. que não sei de que freguesia é natural e que, minimamente, me não dei nem darei ao cuidado de o investigar. Não é coisa que me interesse nem com que suspeite vir a divertir-me seja o que for. Mas francamente alimento fortes expectativas quanto aos públicos reconhecimentos de que, muito honestamente, virá vossa senhoria a ser alvo!

P.S. (post scriptum, não haja confusões!) - Durante o dia esmerou-se o presidente da distrital do PSD do Porto, transitoriamente investido nas funções de ajudante de V. Exa., em desmistificar a questão e propalar a vocação social dele, do senhor ministro e do governo em geral (incluindo, cremos, a Defesa e os Assuntos Marinhos). Naturalmente desmentindo a notícia. Sugerimos que todos os jornalistas sejam sujeitos a rigorosos testes de visão e audição antes de serem autorizados a abraçar a profissão. Até porque nem todos, coitados, podem carregar as vastas qualidades do Sr. Luís Delgado e ser como ele: a excelência personificada. Por nós, olhe, o post fica para quando isto for outra vez verdade. Como não deve demorar muito...

27 de dezembro de 2004

Profissionais

Este blogue merece hoje uma curta referência no Jornal de Notícias, a par de outros de maior merecimento. Especialmente A Baixa do Porto, coordenado por Tiago Azevedo Fernandes que, aqui e agora o repetimos, desempenha funções de autêntico serviço público. Ali temos tido também generoso acolhimento, sendo certo que temos passado ao lado de polémicas e evitado discordâncias e atritos vazios e inúteis, seguindo um caminho solitário. Mas comungando sempre das posições que pugnam pelos interesses colectivos da cidade e tendo-os sempre por charneira incontornável em cada palavra escrita. A cidade não é a Câmara. A cidade é o conjunto dos que a habitam e é este conjunto que representa o tipo de cidade que somos. E a cidade será sempre aquilo que esse conjunto vier a ser.

O presidente da edilidade ter-se-á referido há alguns dias e a alguns participantes do A Baixa do Porto como sendo profissionais do contra. Seja-nos permitido reclamarmos o nosso quinhão no epíteto, desde que o Tiago Azevedo Fernandes o permita e desde que daí não venham à cidade maiores males. Para depois felicitarmos o Dr. Rio pela rara sensatez manifestada no uso do vocábulo profissionais.

Porque de um modo geral o que falta à classe política em cujas mãos depositamos os nossos destinos - e, infelizmente, o dos nossos filhos! - é exactamente o mais ténue sintoma de profissionalismo. E, lamentavelmente, a afirmação é válida a todos os níveis, desde as juntas de freguesia ao parlamento de onde, regra geral, emanam os governos que nos desgovernam.

No caso concreto da Invicta - a questão é doentiamente recorrente! - os exemplos de falta de profissionalismo estão espalhados pela cidade. Como o município tem tido direito a um novo presidente todos os quatro anos, excluindo o caso especial do Dr. Gomes cujo segundo mandato, como se verificou, foi uma excepção para que a regra se confirmasse, todos são culpados. Desde a actual vereação até à que, se a memória nos não falha, foi encabeçada por Aureliano Veloso. Quisesse Deus que as vereações fossem profissionais em qualquer coisa, que não fosse no embuste e na venda da banha da cobra que antigamente se fazia em frente à Imperial.

Mas não! Nenhuma lista se apresenta com ideias definidas sobre a cidade e com um projecto que possa mudar-lhe a camisa e restaurar-lhe a abalada saúde dos pulmões. Ainda hoje, numa entrevista ao mesmo jornal, o vereador responsável pelo urbanismo, classifica a Avenida da Boavista como uma estrada do terceiro mundo, a propósito da polémica que tem suscitado a linha do metro, enterrado ou de superfície. Viajado como o imagino o distinto vereador ter-se-á perdido pela Escandinávia e pelos fiordes e ilhas que a rodeiam e, mesmo assim, de olhos vendados.

Terceiro mundo, Dr. Morais, seria o senhor deixar a sua viatura de serviço e o respectivo motorista quietos nas traseiras dos paços do concelho. E depois disso, a pé, aventurar-se por todo o centro histórico da cidade para ver a degradação, contemplar as ruínas, extasiar-se com o abandono. E responsabilizar a herança, desde a Ferreirinha ao Marquês de Pombal e aos Almadas. As ruas nobres da baixa estão carregadas de ruínas que não são as do Carmo, desde Sá da Bandeira a Santa Catarina. As zonas que foram abrangidas pelo negócio da capital da cultura estão destruídas, desleixadas, ao abandono. Como a Rua Escura e a Viela do Anjo. E descobre o senhor, sem o saber e como Pedro Álvares Cabral, o caminho marítimo para a Índia. Quando vai a caminho da Foz…

Último acto

Pronto! Caiu o pano sobre a hipocrisia com que se encena o Natal em cada ano que passa. Apregoou-se a solidariedade, pregou-se a fraternidade, exprimiram-se sentimentos de dorida compaixão para com os indigentes, os vadios, os que nada devem nem à sorte nem tão pouco à dignidade. Num gesto único e pensado, responsáveis políticos interromperam as suas muitas tarefas e desceram ao povoado. Convocaram profissionais da comunicação, chamaram televisões e foram, de fato e gravata, participar nas cerimónias surrealistas dos jantares de bacalhau e batatas, servidos a pobres sem eira nem beira. Que não têm, em todo o dia, uma refeição quente, um alpendre onde se abriguem, um catre onde durmam duas horas.

Hoje a vida voltou à normalidade. As universidades continuarão a envolver brilhantes teóricos nos mais científicos estudos para acabar com a pobreza. O poder político promoverá conferências internacionais para debater a questão, ao abrigo de olhares indiscretos e de manifestações de pobres. Os ricos acharão que o são apenas na boca dos outros e nunca aceitarão como razoável o aumento do seu próprio pecúlio e invocarão a crise. Continuarão a pregar um selvagem neoliberalismo como o antídoto para todos os males, o único e verdadeiramente eficaz método contra a pobreza. De futuro, como prescreve a Câmara do Porto, é preciso não dar esmola a ninguém, nem aos arrumadores.

É um mundo estranho este reino de Pacheco, que pressiona as famílias para que se endividem e que, depois, vem publicamente queixar-se de que as mesmas não tiveram juízo e se endividaram para além das suas capacidades económicas. Enquanto isso as taxas de juro correm para montante, aos níveis da Cofidis ou da Cetelem, numa imparável mecânica de escravização. Porque, de facto, é de escravatura sem preceitos que se trata. A riqueza concentra-se à custa dos últimos resquícios de dignidade surripiados a quem já a não tem como bandeira. E mesmo assim a voraz banca lamenta-se da insuportável carga fiscal e do lento crescimento dos lucros, a míseros 15 por cento ao ano. O salário mínimo, para morrer à fome, sobe de forma exorbitante, à razão de alguns 2 por cento. Arredondado rigorosamente ao último cêntimo porque, em moeda arcaica, um cêntimo são dois escudos.

Os tribunais enchem-se de milhares e milhares de processos, a reclamar o pagamento de dívidas já vencidas, de dez euros cada uma, relativas a telemóveis que serviram para o engate, a canais de TV por cabo que alimentaram a visão erótica e a masturbação. Os funcionários não saberão para onde virar-se, os magistrados, instruídos e capazes, não saberão como julgá-los, que penas aplicar, como fazer que sejam justamente ressarcidos os prejudicados. Sendo obviamente prejudicados aqueles que não receberam, para que não haja confusões.

24 de dezembro de 2004

Excessivo

Em contrafé, mas demasiado. Na opinião do ministro da bagunçada das contas públicas a atitute de mascarar o défice orçamental com mais uma larga fatia do fundo de pensões da Caixa Geral de Depósitos é um acto patriótico de todos os portugueses. Os trabalhadores da CGD não o sentiram assim, ainda que a sua solidariedade, embora forçada, seja de todo excessiva. Por mim - acho que é uma questão de estatuto - só me faltava ser acusado por um ministro, mesmo de nomeação precária, de falta de patriotismo. Porque realmente eu não sinto nada do que ele apregoa!

23 de dezembro de 2004

Boas Festas

É altura de parar um pouco e pensar. Naquilo que somos, naquilo que desejamos ser e naquilo que de facto deveríamos ser. Todos! Termos consciência de que nenhum de nós, por si, consegue "endireitar o mundo" mas que essa certeza, também só por si, não implica que todos desistamos. Aos dias que correm falta humanismo, falta solidariedade, falta uma visão de futuro da espécie. Pensemos por estes dias mais nos outros do que em nós próprios. Admitamos que sendo cauda da Europa há muitos mais depois de nós do que antes. Concordemos que nenhuma sociedade é minimamente justa enquanto seres humanos, iguais a nós, morrem à míngua de alimento. Que crianças inocentes, frágeis e indefesas morrem todos os dias. Subalimentados, estropiadas, sem cuidados mínimos de saúde.

Nenhum de nós resolverá o problema. Nenhum governo minimamente se preocupará com isso. Por isso estas palavras não são mais do que um grito. Utópico e inútil. Na certeza, todavia, de que cada um de nós pode, afinal, partilhar com os outros um pouco mais do que lhe sobra. Minorando-lhes o sofrimento, reconhecendo-lhes a dignidade humana a que têm direito.

Tenham todos muito Boas Festas. Que o ano de 2005 possa ser realmente Ano Novo. Por ser diferente. Por melhorar um pouco esta ânsia quotidiana em que nos sufocamos. Nós e os outros. Feliz Natal. Bom Ano Novo.

22 de dezembro de 2004

Orçamento



O Orçamento do Estado para 2005 explicado à sorrelfa a inocentes criancinhas, à custa de 100.000 euros - em versão de ministro demissionário -, utilizando como veículo os jornais em que manda o independente Luís Delgado, por um impenitente benfiquista caracterizado de ministro para a emissão do TV Regiões.

Excelência

Nuno Barradas, que não conheço e que não indicou endereço, veio aqui parar à força de correntes, ventos e marés. Utilizando motor auxiliar veio ancorar na praia, frente a este baixo promontório, onde deixou o seguinte comentário:

Isto é desonesto: não há júri nem parecer sobre as candidaturas, e ganhar não é uma questão de sorte. É apenas uma questão de cumprir critérios objectivos, os quais não são, de todo, impossíveis de cumprir uma vez que foram atribuídos 73 prémios. Vários a cientistas com menos de 40 anos, e muitos a cientistas com menos de 50 anos. Mas neste país continua-se com medo da excelência, porque contrasta demasiado com a mediocridade.

Tranquilizou-me de todo este excelso visitante. Tivesse ele dito que isto era honesto e eu correria a comprar Prozac e sentir-me-ia socialmente excluído. Porque de facto honesto é não haver concursos, nem pareceres, nem questões de sorte. Honesto é que assim seja, por ajuste directo, tipo leilão de quem dá mais. Honesto é ainda que a ministra tenha sido incluída e que o Dr. - Doutor soa-me melhor, peço desculpa! - Ramôa que preside à Fundação tenha concorrido e, sem sorte, tenha ganho. Pena é que não tenha arrecadado o dinheiro, sempre dava jeito e era estimulante e excelentemente merecido.

Discordo, humildemente, apenas em relação a um pormenor: o país não teme a excelência. Muito menos por contrastar com a mediocridade muito, pouco ou assim assim. O país é excelente por natureza e nenhum país constrói a excelência sobre a mediocridade. É à custa da excelência, obviamente honesta, que o país se orgulha de estar onde está: na cauda da Europa dos 15, heroicamente a caminho da cauda da Europa dos 25. Dentro de pouco tempo um guarda-redes excelente deve defender o dobro das penalidades, um ponta de lança excelente marcar o dobro dos golos. Um árbitro excelente receber o dobro dos prémios e apitar o triplo das vezes. Sem concurso, sem parecer e sem sorte!

José Régio



Aliás, José Maria dos Reis Pereira, morreu faz hoje 35 anos, em Vila do Conde. Tinha 68 anos. Ainda hoje estremeço quando ouço o seu Cântico Negro ou a sua Toada de Portalegre ditos, de forma inimitável por João Villaret. Assinale-se a efeméride, quando tão pouco de ouve falar dele e da sua multifacetada obra.

21 de dezembro de 2004

Menino Jesus

Sento-me aqui no alto da arriba, sobre uma pedra solta que me magoa mas me não foge. Olhando o mar bravio que vai mais longe dos que os olhos com que vejo. Cercado por ventos assustados que varrem as cinzas que ainda restam dos incêndios e agitam frágeis troncos secos de cardos que me picam os pés quando caminho. Para além disto o dia está calmo, não se vê vivalma, o céu cinzento não ameaça chuva nem sol. Ouvi de caminho que hoje começa o inverno, que este é o dia mais pequeno do ano, que nos ficam pela frente três meses de maiores sofrimentos e de mais curtas esperanças.

Queria escrever-te uma carta, sem usar papel nem esferográfica, para ter a certeza de que seguia limpa e que não dava erros. Mas não tenho nem dinheiro para o selo nem sei em que código postal te podem encontrar. É inútil que te fale de viva voz, por mais que grite. Não sei para que lado o faça e este mar, e estes ventos, não deixam que alguém grite mais alto e mais longe do que eles.

Não te quero pedir nada, que sei que aos pobres nem sequer respondes. Ou porque te não preocupas com eles ou porque vivem em casebres sem números nas portas e sem carteiros que lhes percorram os caminhos. Mas queria dizer-te que gostava de ter umas sapatilhas que pudesse calçar com um par de meias, das que se compram na feira, que me protegessem os pés do frio, das pedras e do tojo. De poder ter uma camisa e umas calças novas e lavadas, que pudesse vestir para ir à igreja na noite de Natal, para espreitar a missa do galo. Não ter vergonha do meu aspecto pobre e sujo, não temer que me escorraçassem, poder espreitar de longe os pezinhos limpos em que te depositam beijos breves e falsos como Judas.

Mas não acredito que existas e ainda menos que chegues acompanhando o inverno. Não posso crer que me possas desamparar ao frio, descalço e esfarrapado, procurando alimento nas lixeiras e correndo a dar alguma côdea seca que encontre ao meu irmão mais novo. Preso à enxerga, tomado de uma tosse convulsa que apaga a lamparina de petróleo, as moscas devorando-lhe os olhos, as lágrimas de fome caindo-lhe da boca. Nem o teu pai, Senhor Deus, omnisciente, omnipresente e todo-poderoso se preocupa connosco. Alguém ia preocupar-se?

20 de dezembro de 2004

Mariah

Tempos houve em que desconhecidas gentes de ignotos lugares por aqui insistentemente procuravam um trio de beldades selvagens. O leque foi-se reduzindo e, nos dias que passam, persistentemente por aqui se lança ferro à espera de Godot e à procura de Mariah. A esses destrambelhados Cabrais de caravelas virtuais aqui se deixa o certo azimute para lá chegar. Mas não se enganem!

Perigo!

O Raúl alerta para o perigo. Aqui! E não é só o perigo decorrente da acção dos ministros Arnault, Bagão ou Filipe Pereira. É para outros que incluem a subtracção de "passwords" e as comunicações para a internet ao módico preço de cerca de 3,30 euros por minuto.

É demais

O governo, coitado, nasceu de sete meses e, à cautela, puseram-no na incubadora. Não serviu de nada, os irmãos e os parentes mais próximos não lhe respeitaram a debilidade e encheram-lhe a carinha de estalos e o pequeno cu de pontapés. Não vingou e, mesmo que isso tivesse acontecido, inúmeros atiradores furtivos estavam já posicionados nas águas furtadas dos prédios fronteiros, com a mira acertada, prontos para o disparo fatal. O chefe, pobrezito, arrasta-se exangue, cheio de punhais cravados nas costas. Não cabe nem mais um e são verdadeiros, não há truques do Luís de Matos. Não bastava isso, estava a manigância estudada, a criatividade surrealista encomendada ao Cesariny, o pano pronto a subir. Vem a União Europeia e recusa a inovação na arte da vigarice que só este país constroi. É demais! Não tivesse sido demitido e o governo teria que ir à bruxa. Assim já não é preciso, ficou a despesa por conta do Dr. Karamba!

Co-incineração



Seria chover no molhado repetir que o espectáculo é confrangedor. Porque, de facto, assim é de há muito, sem que nada ameace melhorar seja o que for. O programa de desgoverno do Dr. José Barroso foi salientar os defeitos do desgoverno anterior e a fuga, sem música e sem compasso, do Eng. Guterres. Garantido melhor emprego, não hesitou e fez o mesmo. Não deu nenhum pré-aviso, entregou a disciplina da turma aos cuidados de um novato sem experiência e sem vocação, suprimiu o Durão do apelido, confirmou que estavam prontas as obras do gabinete e rumou a Bruxelas. Onde não paga impostos e se pode dar ao luxo de ignorar a família real, os valões e os flamengos.

O seu sucessor legitimou a sua promoção numa reunião de moradores, num sábado à noite, tendo-se confrontado com algumas vozes discordantes que não reconheciam ao sacristão conhecimentos para se responsabilizar pela celebração e pelas orações do dia a dia. Cedo os factos vieram a dar razão a estes atiradores furtivos, inofensivos por utilizarem velhas carabinas de repetição que tinham feito grandes estragos na conquista do oeste e revelado ainda algum préstimo nas forças que se confrontaram na segunda guerra mundial. O novo mordomo ajustou aos tempos que passavam a sua prática política e manteve a crítica feroz ao desgoverno que antecedera o do novo rei do Boulevard Charles Magne. Ao mesmo tempo que, já agora, também criticava este por ter abandonado a igreja no exacto momento em que era dada a comunhão. Enquanto, por vocação, se apresentava mais prontamente ao desfile de raparigas despidas de trapos, se deixava adormecer depois de qualquer almoço mesmo frugal e trocava a sensaboria de uma tomada de posse de humildes ajudantes de ministros pelo fausto de um casamento de sociedade, com mariscos importados de Moçambique e champanhes genuínos da região de Reims.

Depois de muito ponderar, de gastar uma larga fatia do orçamento em repetidas consultas à cientista Maya e de encomendar relatórios a uma rapariga da Malveira da Serra que escreve livros com títulos em inglês, o Dr. Sampaio passou-se à hora do jantar, enquanto saboreava a sopa de alho francês e deu um violento murro na mesa. A D. Maria José assustou-se, a governanta escapou-se para um canto da cozinha, a sopa entornou-se e três copos de cristal de Alcobaça, pertencentes ao erário público, ficaram feitos em cortantes e perigosos cacos. No dia seguinte, com ar grave, falou ao país, omitiu a sua conhecida inclinação sportinguista, criticou as regras do fora de jogo e deu um sopapo final e fatal no Dr. Santana que já contraíra empréstimos com prestações a pagar até 2014.

Resolveu dar o seu contributo à quadra carnavalesca, prolongando-a até ao dia 20 de Fevereiro, prescindindo da quarta-feira de cinzas e instituindo, com a originalidade a que o país já se habituou, a segunda-feira de cinzas para o dia 21, início da Quaresma. Os foliões começaram a surgir em público, a marcar os locais e as datas dos corsos, a anunciar as fantasias. Mantém-se calado o supremo educador da sociedade do Mercado dos Lavradores mas já se sabe quem vai encabeçar os desfiles e, como nas marchas populares, quem vai ganhar como se fosse o Bairro da Bica. Nessa perspectiva começou o combate, todo feito de fantochada como se fosse na luta livre, com corpos enfezados armados em Tarzans Tabordas, a saltar por cima das cordas e a arremessar os adversários para fora do ringue.

Como projecto para o país e para os anémicos portugueses, o candidato ao desgoverno futuro repete que o desgoverno presente é uma vergonha e que o anterior também já o tinha sido. A anemia dos portugueses começa a desaparecer ao ritmo da retoma económica trinta vezes anunciada pelo Dr. Santana e quarenta desmentida pelo eterno candidato à direcção do Benfica. O demissionário desgoverno de gestão repete que o candidato é herdeiro de um fugitivo e de várias hortas na cova das beiras e que não será nem com a agricultura nem com a fuga com o centenário país previne os sismos e recupera o centro histórico das cidades.

Até que, original, o candidato ao desgoverno futuro se passa dos pirolitos e assevera que vai co-incinerar tudo como ameaçou fazer no desgoverno do primeiro fugitivo, desde lixos a pneus usados, opositores e botas de elástico. Ganhou inusitada dimensão o programa de desgoverno que ambos defendem, a par com a má língua como naquela quinta em que habita sangue azul e extracto de salsaparrilha. Reciprocamente dizem mal um do outro. Para além disso um promove o co-icineração, o outro não. O país comove-se e tranquiliza-se. Um promete fazê-lo arder em altos fornos, o outro em lume brando. Com uma certeza: pelo que cada um diz do outro, nenhum deles presta. As vendas de Prozac prometem disparar. O pior é o poder de compra!

19 de dezembro de 2004

Dizer mal

O presidente da Câmara afirmou um destes dias, num arrevesado olhar sobre o Porto, que este só dizia mal de si próprio. O que comprova que o Dr. Rio, enquanto líder da edilidade, não sabe o que a cidade diz. E o facto constitui, em relação a si como em relação aos seus antecessores, o mais significativo obstáculo para um razoável desempenho das funções em que se encontra investido. Porque, antes seja do que for, é preciso ouvir, é preciso conhecer, é preciso cimentar ideias e edificar projectos.

O Porto, ao invés, exagera no bem que diz de si próprio e no mal que pensa que os outros lhe fazem e de si dizem. Antes o Porto, de facto, dissesse de si o mal que justificadamente tem razões para dizer. E pudesse ter garantias de ser atentamente escutado, saber que as suas lamentações seriam dissecadas, que nenhuma justa queixa cairia em saco roto. Mas não tem e a vereação do Dr. Rio é, quanto a isto, apenas uma réplica de quantos o antecederam.

Não colhe a arrevesada afirmação do presidente da Câmara, também ela reduzida ao limite geográfico da Foz, regionalista como as tripas à maneira e o carago na boca de um boneco do Contra Informação. Acontece é que o país ri quando se fala no Porto, o que também é redutor porque o país tem razões de sobra para se rir de si 24 horas por dia. Mas o país continua a ter do Porto a imagem que dele deu Raul Solnado no Zip-Zip. Exceptuando o facto do Futebol Clube do Porto há anos somar vitórias e da possibilidade de Solnado ser accionista do Banco Pinto de Magalhães se ter sumido pela extinção do banco e pela morte do dono.

Se olharmos para as coisas acabamos a repetir-nos. Cada projecto que a cidade leva por diante é um tiro, e por cada tiro há um melro que cai redondo. É fastidioso e é inútil enumerar casos como o túnel do Carregal, a Porto 2001, a Casa dos 24 (que, pela designação, me desculpe o Sr. Germano Silva), a Casa da Música, o edifício Transparente, o apelidado funicular dos Guindais ou a requalificação da Viela do Anjo e áreas adjacentes.

Já ontem, noutras circunstâncias, o presidente da Câmara terá dito que os seus adversários políticos ainda não teriam digerido a vitória, ao fim de três anos. O que parece certo e, mais do que isso, preocupante. Porque a ser assim se tem que concluir que o Dr. Rio é difícil de digerir, o que representa uma indesejável sobrecarga para o aparelho digestivo seja de quem for. É também verdade que o próprio Dr. Rio ainda não percebeu como ganhou aquilo que de facto nunca pensou ganhar. E, assim sendo, permanece no deslumbramento de apenas se olhar ao espelho e de se aconselhar com ele. Como se usasse capachinho.

A um ano de distância não se compreende que segredo faz sobre a sua próxima candidatura a novo mandato nem o tom acintoso das críticas aos opositores. Não interessa saber se o PS alinha com Nuno Cardoso, com Fernando Gomes ou com Orlando Gaspar e que marca de equipamentos os patrocina. A cidade não se constrói sobre as críticas que se fazem aos adversários, sejam justas ou injustas. A cidade freme, sente e cresce com projectos que se alicercem em necessidades reais, em propósitos colectivos, em benefícios comuns.

Mas a cidade não caminha contra o regionalismo exacerbado e mesquinho vendendo ruínas em hasta pública. Nem passando para o âmbito da novel SRU dezenas de edifícios na gananciosa perspectiva do especulativo lucro imobiliário. É preciso palmilhar as ruas da cidade, identificar-lhe as muitas mazelas, seleccionar os antídotos e estabelecer as formas de administração. Não basta salientar aos outros que os edifícios se não começam pelo telhado para, depois de o dizermos, começarmos exactamente por aí.

Furtivo

Hoje. Depois da missa. Embuçado por esta morrinha fria de domingo. Colado às paredes, evitando as portas do comércio aberto para o Natal do consumo imprevidente. Passei à porta de um atirador furtivo, sem reclamo na janela e sem armas que se vissem do exterior. O contador, silencioso, marca já mais de um milhão de vítimas. Os milhares excedentes são apenas trocos para deixar de gorjeta. Não se linka ninguém e não se fala nisso. Grande parte da colaboração saca-se dos bolsos das vítimas. Depois do tiro, único e certeiro. Depois de tal mortandade, de certeza, segue-se o livro, intercalado com mais 800 páginas de episódios policiais da epopeia do Dr. Cunhal. Não é preciso suprimir a caixa de comentários. Já os não havia, o seguro morreu de velho. A longevidade de um atirador furtivo é cerebralmente acautelada. Com a reforma das G-3 vêm armas de maior precisão e de maior alcance, o risco aumenta. O lançamento do livro não fará afixar editais na portaria e não será público. Furtivamente também se vende. É preciso ter calma e não dar o corpo pela alma.

Ou me engano muito ou já ouvi isto em algum lugar, numa qualquer altura. Só não sei onde, nem interessa!

18 de dezembro de 2004

Originalidades

Se não existisse Portugal tinha que ser inventado. Quanto mais não fosse pela originalidade. É quase certo que, doravante, a União Europeia permitirá que o país viole as suas regras, exceda os limites estabelecidos para o défice, atropele a transparência de algumas leis eleitorais, falte aos Conselhos Europeus. Os atiradores furtivos de que fala Portas serão equipados pelo seu ministério com espingardas novas, para a caça nas coutadas e o tiro fortuito nas avenidas novas. Devem acautelar-se os frequentadores do Galeto, os parzinhos do Campo Pequeno e os transeuntes da Duque de Ávila.

A ministra da Ciência, Inovação e Ensino superior - podendo a ciência ser oculta, a inovação medieva e o ensino aquele que é - anunciou em Maio último o programa Estímulo à Excelência. A reger-se por regras simples, lineares e originais como convém a este pequeno país plantado a oriente do cabo da Roca. Basta ser residente em Portugal, ter cinco anos de carreira profissional ligada à investigação e cumprir alguns índices mínimos como a publicação de 100 artigos em revistas internacionais, 500 citações num índice específico, ter supervisionado 10 doutoramentos. No caso de jogadores de futebol exige-se que tenham cumprido 5 anos de contrato num clube vencedor da liga dos campeões, representado uma grosa de vezes a selecção das quinas, defendido 20 penalidades numa época, de forem guarda-redes, marcado um golo por jornada se forem médios e dois se forem atacantes.

Logo no primeiro ano, por mera questão de reconhecimento, o nome da própria ministra foi incluído na lista dos excelentes. Sendo original, não deixa de ser bonito: nos dias que passam é gratificante verificar que a gratidão não é palavra vã. Por modéstia da própria parece que o nome acabou por ser injustamente retirado. Em todo o caso a avaliação das candidaturas e a atribuição dos financiamentos é da responsabilidade da Fundação para a Ciência e Tecnologia, cujo presidente é Fernando Ramôa Ribeiro. Que também se apresentou a concurso e que, por originalidade e sorte dos diabos, acabou por ganhar. Não se sabe se terá feito parte do júri, se terá produzido parecer sobre a candidatura ou se a terá despachado favoravelmente. Sabe-se, isso sim, que o próprio não vê na originalidade nenhum problema, até porque não vai receber o dinheiro, o que está mal.

Devia arrecadar o financiamento, mesmo que fosse concorrente, membro do júri ou até seu presidente. Não se compreende, por exemplo, que os prémios da lotaria e do totoloto continuem a ser arrecadados por estranhos, que muitas vezes apostaram ninharias, não sabem governar o dinheiro que ganham e acabam de novo tesos como um virote. Então não seria muito mais decente, muito mais original que os prémios saíssem ao pessoal da casa? Porque é que a Provedora ainda não despachou nesse sentido?

17 de dezembro de 2004

O circo

A Câmara de Gondomar não é uma autarquia, é um circo. Não daqueles circos que pela quadra que se atravessa por aí surgem para assentar arraiais no Coliseu do Porto, nos terrenos do Lima 5 ou até da Rua de Faria Guimarães e que rapidamente debandam depois do enterro do ano velho e de consumado o baptizado do ano novo. É, ao invés, um circo permanente, que se mantém em cartaz, apenas decretando os fins de semana como dias de descanso. Para ir à missa de manhã e à bola de tarde. Não se compreende sequer que se aguente em cartaz durante tão longo período, tão curto e tão pouco diversificado é o seu elenco.

O circo da Câmara de Gondomar é nacionalista como foi o Benfica de outros tempos e apenas utiliza artistas nacionais, embora não consiga os mesmos resultados. Não apresenta animais selvagens das florestas de África nem sequer trapezistas ou contorcionistas vindos de esquisitas repúblicas que se não sabe onde ficam. O mestre-sala é o mesmo há muitas épocas, tem um aspecto desgastado e uma assiduidade precária. Sem aviso prévio e sem apresentação de nenhum boletim clínico, chega a faltar aos maiores espectáculos e às galas especiais de casa cheia.

Ainda ontem assim fez, sem que nada o justificasse e sem que o seu lugar perigasse. Pior do que isso, nem o seu vice-chefe assegurou a substituição, retido em casa de ressaca à custa das ordinárias bebidas que algumas casas nocturnas têm o ganancioso hábito de servir. O alinhamento do espectáculo foi sobremaneira comprometido. Os mais complexos guiões do programa desapareceram e não foram localizados até ao fim da noite. A actuação dos palhaços foi confiada a velhos empregados de limpeza que também ocupam a bilheteira. Os espectadores riram mas foi do desajeitado jeito, não da pantomina hábil.

Para o início da semana todo o pessoal do circo está já convocado, independentemente das habilidades que saiba fazer ou da idade que tenha. Não se poupam nem os reformados nem as crianças de escola. Os primeiros, se estiver tempo de sol, faltarão ao jogo da sueca no jardim do costume. Os segundos terão que conseguir uma segunda chamada para os testes que tinham marcados.

Os programas desaparecidos hão-de aparecer. No meio dos volumosos processos respeitantes a obras no concelho que ontem nem a Judiciária conseguiu localizar. Mas não há possibilidades de estarem noutro qualquer sítio. Mesmo que ontem tivesse faltado, o mestre-sala não teria levado para casa nada disso. Pelo menos é o que se pensa, até porque dificilmente caberiam na pasta.

16 de dezembro de 2004

Par de botas

Senhor Ministro das Finanças,

Ouso dirigir-me a V. Exa. contando com a compreensão e a benevolência que a quadra festiva justifica. Faço-o na qualidade de português de pleno direito, maior de idade, portador do bilhete de identidade como manda a polícia e convenientemente calçado como, para bem do país e aumento da produtividade, em tempos decretou o governante Nandim de Carvalho. Nunca, nem em pensamentos, atentei contra a autoridade e segurança do Estado, nomeadamente introduzindo palitos de madeira nas ranhuras das fechaduras das portas que tanto embaraço causaram ao ministro Ângelo Correia. Penitencio-me por não ser nem sócio nem simpatizante do Benfica mas posso apresentar certificado da junta de freguesia atestando que não frequento o estádio do Dragão, não empunho bandeiras aos quadradinhos e nunca me cruzei com o senhor Pinto da Costa em nenhuma casa de alterne. A título meramente informativo cometo a inconfidência de referir que a junta a que pertenço é superiormente dirigida por um militante do outro partido da coligação e que o mesmo não bebe, não fuma, não dorme a sesta e nunca foi condenado em juízo. Quanto ao resto, não sei de nada mas, como não sou de intrigas, não me meto na vida de ninguém.

Tenho percorrido a Rua de Santa Catarina mirando as prenditas que poderia comprar para as crianças e enjoando com os preços que, não sei porque razões, me causam náuseas, vómitos e até aquela coisa que deu ao Vítor Baía no Japão e que, em Portugal, não sei como se chama. E as crianças o senhor sabe como são: querem patins em linha, bicicletas, play stations que, mesmo sem recibo e recorrendo ao crédito pelo telefone, custam os olhos da cara.

Como está na moda e me tranquiliza a facilidade com que o doutor qualquer coisa das Neves lhe chamou simples operação financeira, ouso vir propor-lhe um negócio. Dos bons, daqueles em que se diz que ambas as partes saem a ganhar, embora a melhor parte reverta a bem do orçamento do ministério, do progresso do país e do futuro radioso das gerações futuras, incluindo a dos nossos filhos. E, sendo assim, poderá certamente o senhor ministro comprar uma coleira nova para o gato, uma trela em couro para o cão e até um pirilampo novo, de cor vermelha, para o tractor em que se entretém pelo monte, assustando as ovelhas e espantando os melros. Melros, disse eu, não corra V. Exa. a imprudência de perceber Mellos, que são um tipo de passarocos completamente diferente.

Proponho-me vender-lhe um belo e vistoso par de botas, maneirinhas, número quarenta, de boa marca, com meio cano, nada cambadas, biqueiras não esfoladas e solas de couro em bom estado e prontas para as voltas. Custaram-me uma fortuna, mas a necessidade obriga e vendo-lhas baratas, por ajuste directo se isso não ferir a ética política que ontem o ouvi referir e que fez pulsar mais rápido o meu pobre coração de patriota. De igual modo me comprometo a tomá-las de aluguer e assumo o compromisso de as engraxar todas as semanas, substituir-lhes os atacadores, mandar mudar-lhes os tacões e aplicar-lhes meias solas sempre que sinta que os pés se me encharcam na água das sarjetas.

Com a mesma paciência de sempre fico a aguardar o favor da sua pronta resposta, dentro dos próximos quatro anos. Antes que o senhor tome a pouco patriótica decisão de se reformar ou a Assembleia da República que para aí vem faça a revisão da constituição e legisle ao arrepio dos princípios de ética que V. Exa. comprovadamente defende. E com que tanto se excita este meu tão emocional coração!

15 de dezembro de 2004

Para que serve um blogue

Quando, caído aos trambolhões, surgi na blogosfera pus a questão algumas vezes. Acho natural que o tenha feito e, mais do que isso, continuo a achar que a dúvida é pertinente.

Hoje, aqui, encontrei mais uma resposta para a utilidade ou desutilidade de um blogue. Que, como se comprova, também serve para que gente fina, pertencente às elites que pensam o país, ocupando cargos de relevo, tendo grande visibilidade mediática - expressão à altura, heim! - e auferindo proventos em conformidade, se aventure em assuntos rasteiros, sem interesse e de índole pessoal. Que não são causa de nada nem de ninguém. Mas é para o que está!

Voto de qualidade

Sem a arte ilusionista de Luís de Matos mas com a eficácia matadora do Pauleta o Dr. Rio tirou ontem da cartola um bem nutrido laparoto e a sua qualidade de presidente da Câmara. O orçamento para o ano de 2005 foi aprovado mercê do seu voto de qualidade. Os seis vereadores do PS votaram contra e o vereador da CDU absteve-se. Tomando a sério a situação acrescentarei que o Dr. Rio adicionou mais um ponto ao seu currículo pessoal, processado em Microsoft Word, fonte arial, tamanho 12, para que possa ver-se bem e resistir melhor à devastadora erosão política.

O orçamento parece ser uma peça reservada a que, para além da vereação, apenas o SIS pode ter acesso. De forma que a sua leitura tem que fazer-se nas entrelinhas das notícias que alguns profissionais da comunicação social foram incumbidos de redigir. Por um lado salienta-se a preocupação da vereação com o problema da habitação social e a verba que o orçamento lhe consagra. Por outro condiciona-se a disponibilização dessas verbas aos proveitos obtidos na venda de habitações camarárias. O acto, em si próprio, parece surrealista: a Câmara vende habitação social para financiar habitação social, quer dizer, vira o disco e toca o mesmo. Mesmo que por formação profissional me situe na área nunca fui capaz de entender aquilo a que novos eufemismos chamam contabilidades criativas. Provavelmente por falta de vocação artística, concedo sem rebuço. E, já agora, sem parecer dos auditores ou certificação dos revisores de contas.

Mas Deus me acuda que mais surrealista ainda é a argumentação desfraldada pelos vereadores socialistas. O propósito está correcto e estes seis homens bons de que a cidade se orgulha e que os funcionários respeitam, comandados pelo engenheiro Gaspar na condição de chefe de quina, entendem que «a fórmula como se tem procurado levar os moradores a comprar tem sido incorrecta», porque muitos «preferem pagar o aluguer a ter a responsabilidade do condomínio e da contribuição autárquica». E lembra-se ainda que a prova de que a fórmula é errada é o facto de, em 2004, em 723 casas municipais, só cinco foram vendidas. Além disso, objectivamente, o orçamento é «demasiado restritivo e redutor». Não diz em quê nem isso são contas do nosso rosário, mas um orçamento demasiado restritivo já é uma afronta. Como se isso lhe não bastasse ainda faltava que fosse redutor. Redutor é que nunca, ó santa Câmara, nem por cima dos nossos cadáveres, que fique expresso. Ainda por cima quando isso tem a ver com «os caminhos de alguma incerteza nalgumas rubricas, principalmente das despesas e receitas». O problema, pelos vistos, é de marketing e de falta de empenho dos vereadores-vendedores que não atingiram os objectivos, mesmo que tivessem em mãos um produto de primeira necessidade, como as batatas da Póvoa ou os nabos de Gondomar que, como se sabe, as lojas do Continente vendem sem anúncios e sem demonstradores. Não tivesse a sua acção sido incompreensivelmente restritiva e alarvemente redutora. E não se compreende sequer que «a falta de visão tenha sido a grande marca deste executivo», tanto mais que a cidade dispõe de oftalmologistas nos hospitais SA e nas clínicas privadas, não há listas de espera na mesa de trabalho do ministro da saúde e os vereadores, mesmo que destrambelhados oposiocionistas, estão magnanimamente abrangidos pelos serviços de protecção da ADSE.

O vereador da CDU abrigou-se da chuva que, aliás, tem andado muito mais arredia do que o frio. E até porque, entre outras coisas, há que poupar as reservas estratégicas dos SMAS e qualquer cargo que a elas possa andar associado. E assim objectivamente refere que o orçamento tem coisas boas e coisas más. Como na filosofia futeboleira do treinador do Sporting: umas vezes não se ganha mas joga-se bem, outras joga-se mal mas ganha-se. Tanto quanto transparece da notícia são factores positivos «manter como principal preocupação o saneamento financeiro da câmara» e ainda o facto do orçamento «não ter, na generalidade, um carácter eleitoralista». Quanto a este último, se for verdadeiro, irei reequacionar a possibilidade de ir votar nas próximas eleições autárquicas, correrei a encher uma proposta para sócio do Boavista e Loureiros, SA e prometo um «post» de apoio ao tal circuito automobilístico da Boavista 2005. A mais alargada manifestação de índole social desta incompreendida Câmara. Só não prometo estar presente: apavora-me o barulho de tantos bólides, assusta-me a probabilidade de ser atropelado e não sei com quantas vénias hei-de saudar o talvez visconde Marionicha Cabral. Além disso, com tanta gente que se espera nem a Fnac teria bilhete para mim e o mercado negro é solução que não penso adoptar. Para mais nem sequer caberia em nenhum lugar, esparramado contra as cordas na ânsia de acenar pequeninas bandeiras ao septuagenário Stirling Moss.

14 de dezembro de 2004

Ai o país!

O país, hipocondríaco, é dado à depressão e atreito à maleita. Em qualquer merda vê um vírus e inventa uma doença. Como não fomenta a investigação, deprime-se. Quando se não deprime vai à bola, bebe e fuma para esquecer. Quando pensa que já esqueceu tudo está velho, de longas barbas brancas, especado na zona do Restelo à espera da passagem das naus. Para felicidade do ministro da saúde não consta das listas de espera e já nem vale a pena que se inscreva para a consulta. Já lhe não sobra nem juventude, nem fígado, nem pulmões.

A histeria nacional, deste esquisito povo que nos chegou certamente importado da Gália - está bem, do arquipélago da Madeira também! - reduz-se agora a saber como é que Pedro e Paulo se vão apresentar às eleições da próxima Quaresma, depois dos bailes de serpentinas e dos corsos carnavalescos. De meias brancas, calções, batas do pré-escolar e cabelinho assente à força de brilhantina? Ou de fatinho da Maconde, acabado de regressar da limpeza a seco na lavandaria do centro comercial, camisa de cor ligeira, um terço de algodão e dois terços de poliéster, sapatos Charles pagos aos solavancos como na banca?

Tem esta gravidade toda a forma como Pedro e Paulo se vão apresentar a eleições? Claro que sim, nem a isso chegou a perda da fortaleza de S. João Baptista e a proclamação unilateral da independência da Guiné Bissau. Tão pouco a provável e anunciada vitória de Armando Guebuza nas eleições para a sucessão de Joaquim Chissano ou a escandaleira da goleada que o Benfica arrecadou na deslocação a Belém. Nem mesmo o fastio com que se debate o cabrão do burro, que recusa a água e regurgita a palha, criada à força de fertilizantes e de insecticidas. E que, além disso, deita abaixo os arreios e a montada. F… que é demais!

13 de dezembro de 2004

Orçamento

O presidente da Câmara Municipal do Porto apresentou o Orçamento da vereação que dirige para o ano de 2005. Salientou, como é politicamente natural e eticamente incorrecto, os factores que mais lhe convêm. Referiu, como bandeira, que a preocupação da Câmara continua a ser a habitação social e que o item é contemplado com 20 milhões de euros - 4 milhões de contos -, ou sejam mais 172 por cento do que no ano anterior. O que significa que o orçamento anterior, também da sua responsabilidade, se ficou por pouco mais de 7 milhões de euros - menos de 1,5 milhões de contos - cujo peso no orçamento global, a considerar a pouca informação publicitada, não atinge dez por cento.

O presidente da Câmara é economista de formação e no currículo que publicita no site da autarquia, refere mesmo alguma, embora reduzida, experiência profissional naquela área. Hoje, e de longa data, como se sabe, Rui Rio é político profissional, seja lá isso aquilo que for. Porque, de facto, essa qualidade não corresponde a mais nada que não seja o desempenho de cargos políticos, por via do voto, sem nenhum concurso e sem nenhuma avaliação das capacidades profissionais. Referindo-se, por justo e verdadeiro, que o que aqui se diz em relação a Rui Rio se pode dizer em relação a toda a extensa classe de políticos profissionais que, aos mais diversos níveis, vêm assumindo os mais variados cargos.

Agora percorro com a calma de que sou capaz e a minúcia de um fiscal camarário de parcómetros a série de menus e sub menus em que se encontra estruturado o site da Câmara Municipal do Porto. Debalde! Não encontro o orçamento para o ano em curso nem tão pouco a proposta para o ano que se aproxima. Sabendo que a divulgação desses documentos essenciais se situa no limiar da transparência que o presidente da vereação tão activamente defende e tão persistentemente pratica, o erro só pode ser meu que não os consegui localizar. Poderá alguém ajudar-me, a começar pela própria Câmara ou pela Direcção Municipal dos Serviços da Presidência?

E agora?

Segundo os jornais de caserna desta manhã, e depois da concludente derrota de ontem no Restelo, os órgãos mandantes do Benfica reuniram-se de emergência, incluindo o presidente e o capataz da SAD.

Ponto único da agenda: a definição do ministro a quem solicitar audiência para lhe entregar o DVD com a gravação do encontro, trezentas cassetes de escutas telefónicas, cento e vinte telemóveis não registados nas operadoras e dois carros de mão de revistas e jornais velhos incluindo os artigos do Dr. Santana Lopes no jornal redondo de referência e todas as subversivas referências feitas ao sistema pelo Dr. Dias da Cunha, antes do seu envolvimento no sistema de organização do jantar de aniversário do Dr. Mário Soares.

Proibido de falar e mesmo de utilizar o apito, o Sr. Pinto da Costa contratou uma especialista em linguagem gestual, despedida da RTP, e recebeu em audiência, na sua residência, o Sr. Reinaldo Teles, regressado do Japão onde visitou as ruínas de Hiroshima para avaliação de um projecto inovador de utilização do Edifício Transparente e da Torre dos 24. Esbracejando como uma galinha tonta atravessando a auto-estrada do norte por entre os automóveis que respeitavam os limites de velocidade, o cognominado Papa do Norte exprimiu a sua alegria e o seu contentamento pelos resultados obtidos.

Utilizando os serviços da intérprete fez entretanto saber que por esta época, da parte do FCP, se acabaram as ajudas e que dez pontos perdidos em casa, em quatro jogos, era o máximo que poderia oferecer como gratidão pela inestimável colaboração que no passado recente recebeu do ex-presidente do Alverca, antes deste subir na vida e se ter mudado - deslocalizado(?) - para Lisboa.

12 de dezembro de 2004

Infância

Mesmo com algum atraso permitam-me que invoque a edição de sexta-feira passada, dia 10, do jornal onde também vagueia o bloguista. Com base num relatório da Unicef aí se refere que metade das crianças do mundo vive na pobreza e que isso representa mais de mil milhões de seres indefesos e inocentes que ainda não têm mais de 15 anos.

Pela primeira vez em muitos anos encho o peito de um irreconhecível orgulho de ser português. Já o não sentia desde que, heroicamente, uma guarnição de meia dúzia de homens armados de canhangulos e equilibrando-se no convés de uma canhoneira, resistiram a um exército indiano numeroso e maltrapilho, de pelo menos alguns cinco milhões de soldados, quando da invasão de Goa, Damão e Diu. Mesmo sem a inspiração divina do Dr. Portas que, por essa altura, embora nacionalista convicto, não era nem ministro da defesa nem sequer filho da D. Helena Sacadura Cabral.

Portugal não está incluído nas tabelas do relatório da Unicef e o que temos são os números nacionais, antes de ter sido extinta a delegação do Porto do Instituto Nacional de Estatística. Que referem que apenas dois por cento da população global, entre 1992 e 2002, vivia com cerca de 75 cêntimos por dia, o equivalente a 150 escudos. Convenhamos que, com tal importância, ninguém em Portugal poderia passar fome, bem pelo contrário. Honra e glória aos políticos que têm governado o país - e a eles próprios também, já agora! Uma importância daquelas, à altura, dava pelo menos para dez carcaças e para algum meio litro de vinho.

11 de dezembro de 2004

Alentejo

Não há nada como a planície vergastada pelo sol já maduro de Setembro. Como a sombra heróica do chaparro perdido na paisagem, confundindo-se com a linha do horizonte. Semeado com a mesma rara frequência com que o ministro das finanças nos reduz as taxas do IRS e o governo decreta a convergência das pensões de miséria com o salário mínimo que prolonga a agonia. Sem opção pela eutanásia e com a garantia da morte lenta, código postal em Grândola, vila morena.

Nada como isso para ter outro horizonte visual que não seja das traseiras de Camões contemplar, a menos de 50 metros, velhos prédios em ruínas da Rua do Almada. Para ter outras ideias, mais originais e mais soltas. Largas, escorreitas e arrumadas. Não deixa, apesar disso, de ficar longe a convenção do cozido alentejano, a pinga em cujo fabrico o Dr. Roquete mantém a uva e um qualquer doce regional para ajudar à subida da glicemia. Mas prometo que fica para a próxima. A menos que tenha que pirar-me antes, fugindo a esta embasbacada vereação e ao governo que para aí promete vir. Com a Margarida Rebelo Pinto na pasta da kultura!

10 de dezembro de 2004

Condomínio

Passaram ontem 150 anos sobre a morte de Almeida Garrett, nascido no Porto, desembarcado em Pampelido e falecido em Lisboa. No Porto é natural que se ignorem ou se hostilizem os seus filhos, especialmente os que maior notoriedade obtiveram e aos quais a cidade deveria estar mais reconhecida. Não é nenhuma novidade, a vocação endémica da cidade é fazer demolições, abrir buracos nas ruas, prolongar indefinidamente quaisquer obras e construir de raiz aquelas que ninguém sonhou se serviriam para alguma coisa. E que, de facto, acabam a não servir para coisa nenhuma.

A casa em que Garrett viveu os primeiros anos de vida, à Cordoaria, está à venda por qualquer coisa como 350.000 euros - o equivalente a 70.000 contos - com frutaria e lugar de legumes e hortaliças no rés-do-chão. É, no sítio apropriado, uma evocação das Viagens na minha terra. O prédio ostenta na frontaria um artístico medalhão - o nome não deve ser o apropriado mas é o que me ocorre - homenageando o escritor em 1864, dez anos passados sobre a sua morte, há cento e quarenta anos. Ontem o que foi feito, e tanto quanto sei foi pouco, deveu-se essencialmente à iniciativa de particulares. A Livraria Académica e o incontornável Nuno Canavez promoveram uma exposição de edições de obras do autor que, por dificuldades várias, ainda não visitei. Aí também ontem à tarde se reuniu quem esteve interessado em fazer um percurso evocativo de Garrett, conduzido por Germano Silva. Um homem que tem desenvolvido um trabalho notável, que acumula invejáveis conhecimentos e que a cidade não considera como devia. Mas que eu pessoalmente muito admiro e leio com uma quase devoção.

A casa em que Garrett morreu em Lisboa, fez ontem 150 anos, tem sido objecto de notícia. Não pela notoriedade do inquilino que albergou, aliás por curto tempo, mas pelo condomínio de luxo a que o local já estaria destinado. A bem das letras pátrias, da indústria do cimento e da associação dos construtores civis. Devo a Virgílio Marques, a quem importa reconhecer o persistente esforço em benefício da memória de outra incontornável figura do Porto, a fotografia que ilustra este apontamento. Sem qualidade, pela estreiteza da rua e pela falta de atributos para fotógrafo, segundo diz. Mas que, mesmo assim, dispensa uma só palavra porque é de todo elucidativa. A lápide, cuja arte já hoje se não encontra, tem a seguinte inscrição: "No dia 9 de Dezembro de 1854 faleceu nesta casa o poeta português visconde de Almeida Garrett". Hoje, muito provavelmente, um chegado grupo de amigos limitar-se-ia a fazer publicar um anúncio na secção necrológica de um dos jornais do Grupo PT.

A outra luta de Vírgilio Marques, com a criação da Associação Guilhermina Suggia, prossegue e terá, como outras, o pequeno contributo que eu, pessoalmente, possa dar-lhe. No respeito pelo passado de onde provimos, pelo presente em que nos afirmamos e pelo futuro que devemos às gerações vindouras. Que têm direito a mais e melhor do que viver na pobre perspectiva de ir pagando as prestações das dívidas que lhes deixámos como herança.