28 de fevereiro de 2017

Um mar grande

Um mar grande, um mar enorme, um mar de maré cheia. Rugindo. Poderoso e ameaçador. Um mar inteiro, um mar todo, um mar absoluto. Um mar submergindo a tarde, sem portos e sem barcos. Um mar soberano, subjugando areias, praias, destroços. Indomável e inclemente. Absoluto. Um mar sem cedências, implacável. Um mar de todos os pequenos e grandes naufrágios. Teatro de guerras, cemitério de frágeis caravelas e de indestrutíveis transatlânticos. Esquife de homens, morada derradeira de marinheiros. Vencedor de cabos e promontórios, ameaçando a altura do voo assustado de todas as aves marinhas. O mar tenebroso, escuro, negro. Sempre por descobrir, sempre por conhecer!


24 de fevereiro de 2017

Quando te dei a mão

Quando te dei a mão, a calçada descia lentamente para poente. Não falámos e o sorriso dos teus olhos disse-nos todas as palavras que se podem esperar ao fim da tarde. Ouvia-se claramente o chilreio dos pássaros, recolhendo-se aos seus abrigos discretos, no tempo das árvores ainda despidas pelos dias de Fevereiro. O sol era uma nuvem tímida, cobrindo o crepúsculo por detrás dos quintais, onde o chão floria de pétalas caídas das flores abertas em tempo de inverno.



Quando nos sentámos lado a lado, para nos vermos nos olhos, estava a casa vazia e a mesa posta de nada. A inquietude dos dedos tamborilou-te sob o tampo, quando se acenderam as luzes da rua e brilharam os ladrilhos cerâmicos do chão. Enroscou-se ainda mais o gato ao canto da lareira. E tu inventaste o caminho de regresso, como se já fosse tarde demais. Na estrada apagou-se o amarelo das mimosas e foi-se abrindo o escuro da noite. Pousados no teu joelho, foram os meus dedos ouvindo o discurso macio da tua mão e respondendo às perguntas que sempre soube que me farias. Foram-se-te iluminando os olhos de toda a ternura e enchendo o firmamento da distância próxima das estrelas, à medida que se aproximava o vazio do regresso e o peso do sono crescendo nas pálpebras. Depois desapareceste, engolida pela primeira curva da estrada e ficou comigo apenas a calada ausência de tudo.

21 de fevereiro de 2017

Uma pedra como se fosse vida

Uma pedra como se fosse vida. Rolando pela encosta do caminho, repousando à beira das águas do lago, espelho da hora vespertina. O amarelo das mimosas debruçando-se sobre o reflexo da tarde, pelos meados de Fevereiro. Os botões das magnólias crescendo na nudez dos ramos, esperando pelo parto vindo de oriente. Imagem jovem de mulher enchendo as margens. Viçosa como ervas verdes, apetitosa como as cerejas amadurecendo pelos fins de Maio. O sorriso aberto na carinhosa mão que as colhe e as deposita no vime de que se fez o cesto.



A cereja, a que nem a forma falta para ser amor, a cor convicta na delicadeza com que se fez vermelha entre a folhagem. Perfume de mulher ao cimo da escada.

19 de fevereiro de 2017

Nunca hesites quando a manhã é de promessas

Nunca hesites quando a manhã é de promessas. Abre toda a janela do quarto ao sol que corre de nascente. Acolhe no rosto a chuva oblíqua que atravessa as floreiras arrumadas ao canto da varanda, onde cresce o aroma fresco que te enche as mãos de sede. Chama a primavera, rega as plantas para que possam florir com saudades do efémero das camélias. Deixa que a tua imagem se projecte inteira no espelho plano, como se fosses mais do que tu. Solta os cabelos, ergue os caracóis num gesto único que te desnude, como acontece com as andorinhas sob a luz que inunda os beirais. Não enjeites a vida que fechas na palma das mãos, guarda nas gavetas o silêncio que te resguarda a silhueta e os contornos. Preenche-te de confiança e de certezas.


10 de fevereiro de 2017

Uma estrada sob a tua pele

Uma estrada sob a tua pele. Com salgueiros ladeando as margens nuas da tua ausência. Onde no passado se preparavam os campos para a sementeira, as charruas abrindo espaço para regalo do sol. O teu corpo crescendo como o milho verde das searas, deitando duas espigas frescas na fome das minhas mãos. Seguindo o percurso doce dos meus dedos. O tempo reclamando pela rega, inquietando a migração das aves e a sede dos ninhos. As raízes do teu desejo procurando no solo o cereal que amadurece na tua boca. A eira à espera, um terreiro plano e limpo. O milho-rei escondido nos segredos da blusa, pronto para a desfolhada. Assim é a estrada, assim é o teu calor subcutâneo. 


2 de fevereiro de 2017

Mudar de vida

Mudar de vida. Elevar o meu voo ao nível dos teus passos. Asa aberta do grifo sobre a inclemência dos penhascos. No fundo dos quais, desde sempre, dorme um rio. Um rio de águas líquidas, desenhando na fronteira a elegância do repouso das cegonhas. E a silhueta doce e sensual dos dias nas colmeias. A promessa ardendo no pavio das velas que se acendem na dimensão dos santuários. É de mel toda a madrugada que começa, o silêncio das horas varrendo o nevoeiro. O som metálico dos sinos das igrejas, como os faróis, assinalando a entrada das barras submersas.


É sob a chuva que te realizas, quando caminhas. E o meu olhar te procura do cimo de todos os miradouros, atravessando os cumes da serrania. Enquanto dormes um sono longo, o branco amarrotado dos lençóis sorrindo nos teus braços. Como as asas abertas de um anjo tirado das ilustrações dos antigos livros infantis. Há-de haver manhã, quando a geada cobrir as ervas que crescem à entrada da porta. E tu acordares, cansada da noite.