28 de abril de 2020

Hoje acordei com um pardal na almofada



Hoje acordei com um pardal na almofada. Que impertinente, sem me dar tempo para esfregar os olhos, disse – piou, porque é o pio que é a voz dos pardais:

- Se não acordasses, fazia-te o ninho atrás da orelha.

Com o meu mundo ainda reduzido à dimensão da ramela, retorqui-lhe:

- Fritava-te!

Com um pio de escárnio, respondeu-me, esvoaçando e rindo:

- Eu sou um pardal, não sou um burro. Além disso, sou previdente. Já passei pela tua cozinha e vi que tens lá uma frigideira, mas não tens tem nem azeite, nem óleo. Queres que te abra as janelas, para entrar luz, a ver se acordas melhor?


Sem aguardar por resposta minha, ergueu as persianas e um manto de sol espalhou-se sobre a cama. Esbarrou contra o vidro, cambaleou, aguentou-se a golpe de asa, inquiriu:

- Que tens tu na janela, que vejo o sol e as nuvens do outro lado da rua e não consigo voar até lá? Quase caio ao chão, morto, como se chocasse com um comboio ou com uma ave de rapina?

E, reparando nos livros que repousam a meu lado, sobre o colchão, fechados no último sono, inquire-me, piando fino:

- Andas a ler tantos livros ao mesmo tempo? És escritor?

- Tinha de te apanhar, sacana de passarito, pequeno e ignorante. Quem lê livros é um leitor, quem os escreve é um escritor, há vários dicionários na sala. Quer dizer, o escritor escreve-os para que o leitor os leia. São tarefas diferentes, entendes? Ninguém faz o trabalho dos outros, mas a literatura não é para pássaros. E os dicionários também não.
Nisto, faltou-me a almofada e o pardal. Assim vão quarenta e cinco dias, confinado ao espaço da gaiola. Sem espaço para o voo e sem grão que me empertigue o papo!


23 de abril de 2020

40º dia - Dia mundial do livro


Ao quadragésimo dia estou que nem posso, tão empanturrado como se tivesse comido sozinho uma dose inteira de cozido à portuguesa, valendo-me o litro de tinto para o empurrar. Arroto tão sonoramente que eu próprio me distancio socialmente de mim para me proteger, se ressonar durante o sono adivinho que haverá um concerto nocturno que seguramente me não vai deixar dormir e imagino o desastroso resultado da insónia. Os olhos esbugalhados a saírem-me das órbitas, raiados da cor do vinho, prontos a chorar pelo dia seguinte, tendendo para o infortúnio e para a tragédia, desejoso que termine a quarentena para que eu possa sair à rua a reparar nos cidadãos asseados e limpos que acompanham os cães e não lhes apanham os dejectos, empurrando-os artisticamente com a biqueira do sapato para os bastidores, abaixo do lancil. Não fosse este recolhimento forçado e já eu teria acertado no euromilhões pelo menos duas vezes ou até mais, acho que devo mover uma irrevogável acção ao estado a solicitar uma indemnização que me compense do prejuízo e me deixe finalmente viver abastadamente de papo para o ar numa estância balnear das caraíbas, rodeado de copos de mojito com intenso sabor a hortelã e de livros de Ernest Hemingway, assim como se fosse o idoso e o mar, a puxar um espadarte por um fio amarrado a uma cana de pesca.

Enquanto faço a mala para a viagem à grande muralha da china reparo por acaso que entra na travessa o rapaz que perdeu o cavalo por falta de identificação. Empurra um carrinho de mão cheio de traquitanas e uma enorme pilha de livros, e atrás dele caminha uma escada de alumínio, muito erecta, capaz de chegar ao terraço do terceiro andar, que se encosta à parede do prédio fronteiro, talvez por cansaço ou falência da vontade. O rapaz veste umas calças de ganga azul, penduradas ao pescoço por uma alça que quase o degola, com um grande remendo amarelo no cu, mas que não deixa ver nada para dentro e que lhe protege a intimidade e uma marca da vacina contra a varíola que apanhou em criança. Do espaço desce por milagre uma faixa de pano-cru, com três metros de comprido e para aí um metro e vinte de largura, talvez menos dois centímetros mais milímetro menos milímetro, que se fixa à parede como se a mão de Deus, em pessoa, lhe indicasse o caminho e o local exacto para fixar morada e espetar os pregos. Da chaminé uma gaivota que acaba de despertar faz um sinal ao rapaz, como para lhe dizer que está tudo pronto, que pode subir a escada e que não corre perigo de bater com a cabeça no céu.

O rapaz sobe a escada cautelosamente, degrau a degrau, para não rasgar o remendo das calças, carregando uma lata de tinta na mão esquerda e um pincel bem largo no bolso da camisa, que espalha na travessa o perfume suave e meigo das flores de tília no princípio do verão. Para ao nível da faixa de pano e segreda à escada quaisquer instruções que não consigo entender, mas ela desloca-se para a ponta esquerda do tecido e o rapaz começa a desenhar-lhe letras num cursivo perfeito, de cor tão vermelha que parece uma melancia por dentro mas sem pevides nenhumas. E escreve “dia mundial do livro – leia. aulas grátis e ao domicílio”. Depois olha para o resultado do trabalho e limpa as mãos às calças, satisfeito com o resultado da obra. Acena ao bando de gaivotas pousado no telhado e este grasna um aplauso colectivo que enche a rua com o som estereofónico da quadragésima sinfonia de Mozart, um velho amigo de minha avó materna que ainda andou comigo ao colo, ainda eu não usava bibe nem andava na escola.


 Batem-me à porta e corro a espreitar quem será, antes de responder e entreabrir apenas uma nesga com quatro dedos de largo. É afinal uma figura que conheço das histórias e das esplanadas à beira mar nos crepúsculos de verão. Traja uma armadura de bom corte, justa e refulgente, que a protege por inteiro, deixando-lhe apenas uma abertura ao nível dos olhos, para ver o caminho e apontar a lança fatal ao coração do inimigo. Tem um perfil esguio e imponente, soberbo e nobre, e se se lhe abrir a torneira certamente sairá sangue azul ou extracto de salsaparrilha. Estende-me o cartão-de-visita numa pequena bandeja de prata que tira do bolso de trás, pego-lhe com uma pinça que trago pendurada ao pescoço, não é por nada, mas o raio do cartão pode estar infectado, nunca se sabe, o seguro morreu de velho. Leio num cursivinho tão perfeito que podia ter sido escrito pelo rapaz que perdeu o cavalo e que agora anda a distribuir livros pelas casas de todos os vizinhos:

Dom Quixote de la Mancha
Mandatário de Miguel de Cervantes Saavedra
Aulas de leitura ao domicílio para escritores encartados

Seja bem-vindo senhor dom quixote - o senhor, dom sancho e dom rocinante - neste dia mundial do livro, em que toda a gente sabe escrever e ninguém sabe ler. Espero que tenha feito boa viagem e que até o burro tenha cumprido o horário, sem atrasos nem desvios para o pasto, que a fome é negra. E já agora, que também traga nos alforges a cartilha do senhor joão de deus se, como bem penso, tiver entrado pela fronteira de Ayamonte. E que no reino lhe deem bom uso, que tão precisada está de ter por estes sítios de deus.

22 de abril de 2020

Trigésimo nono dia


Acordei hoje às seis horas da manhã, ainda a noite me escorria pelas paredes do quarto e o dia vinha, a passo, no outro lado do mundo. Fumegava de cansaço o candeeiro em frente da janela, arfando de tão longa noite de trabalho, dando luz sem interrupção para o silêncio lúgubre da travessa e para a ausência de bêbados e pederastas encolhidos no frio granítico dos portais. Por razões de segurança durmo com as janelas fechadas e colei nos vidros de cada uma um sinal de sentido proibido, convenientemente virado para fora para que seja visto e respeitado. Até ao momento nem a polícia nem a guarda me comunicaram quaisquer ocorrências em que se desse caso de prevaricações, de um modo geral todos os passantes respeitam civicamente as orientações do estado de emergência e temem o peso imprevisto do cassetete. E isso me dá maior tranquilidade para o sono e muito maior disponibilidade para o sonho.

Espreitei a rua pela mão-travessa que para isso deixo aberta no estore, o resto disfarça-me a curiosidade e esconde-me dos olhares indiscretos dos transeuntes que passam com a cara coberta por máscaras e as mãos envoltas em luvas que se usam para repartir as tarefas domésticas e lavar a louça do jantar. Há um autocarro que passa, iluminado por dentro, com os bancos todos vazios, cumprindo a dupla função de dar utilidade às paragens e de acordar quem dorme sozinho. E ainda uma passadeira pintada no pavimento, de listas paralelas, parecendo uma zebra deitada com as pernas encolhidas onde, antes de tudo isto, atravessavam os peões carregados com os sacos de compras e os pardais à procura de perdidos grãos de arroz que lhes coubessem no papo. Ainda uma fileira de vasos de cores variadas onde, durante a madrugada, floriram rosas de várias cores, brancas, amarelas, vermelhas. Oscilam com a deslocação do ar que o autocarro provoca, agitam-se desesperadamente, pedem-lhe que pare e não são atendidas. Hão-se seguir no autocarro seguinte, sempre cheio de tulipas a cheirar aos canais de Amesterdão, de pernas cruzadas como se se oferecessem nas montras das lojas de sexo das ruas da holanda. Não lhes agrada a companhia, são frios os ares daquelas paragens e mais ainda as manápulas dos homens fumando erva nas praças e apertando os seios púberes das adolescentes altas e louras que procuram emprego.


Há um rapaz que atravessa fora da passadeira, puxando pela arreata um cavalo branco, de raça lusitana, com quatro rodas e o aspecto fatigado de ter abandonado a arena vazia de uma praça de touros. Uma gaivota que voa baixo grasna-lhes mesmo por cima e assusta ambos, o rapaz agarra-se à barriga, como se se tivesse mijado todo, e o cavalo dispara coices para todos os lados, deitando abaixo um dos vasos e magoando-se nos espinhos das roseiras. Azar que ambos tiveram, porque há um guarda-nocturno que pelo outro passeio vem em sentido contrário, como prova de que a profissão não está extinta e de que o livro de multas ainda colhe proveito e contribui para os cofres públicos. Manda-os parar e atravessa a rua para os interpelar e pedir-lhes a identificação. O rapaz reclama mas estende-lhe o cartão de cidadão caducado há três meses e que já nem serve para apresentar ao porteiro da sala de cinema e assistir ao filme os dez mandamentos, que já devem ser alguns quinze, fora aquele de cobiçar a mulher do próximo, porque agora toda a gente se deve manter afastada por questões de distância social, é assim que vem no catálogo e que aconselham os ministros. O cavalo levanta a pata dianteira do lado direito e mostra a ferradura, ainda a brilhar de nova, parece de prata, por ter sido ferrado no dia anterior na oficina de um ferrador que morreu em finais do século passado e que não deixou descendentes nem conta bancária.

Sem me voltar falo para o lado, para que o meu amigo africano que fundeou numa ilha dos açores, a caminho da sua descoberta da américa e das torres da quinta avenida, me possa ouvir. Mas ele não me responde, vida de marinheiro é sempre a mesma coisa, ou se faz de surdo ou se embebeda. Chegados a novo porto são sempre mulheres e vinho, gin tónico e whisky escocês de doze anos, apesar de ser proibido fumar em recintos fechados e nas escadas de acesso aos ancoradouros das marinas. Sozinho nada posso fazer nem pelo rapaz nem pelo cavalo, tanto mais que nem bebo. E o agente da ordem multa o rapaz, como é de lei e de justiça, e apreende o cavalo que não lhe cabe no bolso. Assim sendo tem de prender a arreata ao cinto com que segura as calças à volta do abdómen e pedir ao cavalo que, por favor, o acompanhe até à esquadra mais próxima, onde sempre terá o conforto da estrebaria e lhe será servido um fardo de palha numa manjedoura de prata. Para que depois possa ser identificado e voluntariamente prestar declarações em auto oficial, a encaminhar para a justiça. Porque vivemos num estado de direito, está tudo sob controlo e a democracia funciona em pleno!


21 de abril de 2020

Trigésimo oitavo dia


Estou no trigésimo oitavo dia de quarentena, já me doem os pés de tanto olhar para eles, com as sapatilhas por apertar. Tenho deixado acumular o lixo no saco e as teias de aranha nos tectos, como não há moscas, protejo as aranhas, nem as abato nem lhes estrago a casa. Por medo do escuro e receio do vírus, durmo com uma mão travessa dos estores levantada. Sempre entra alguma luz difusa do candeeiro fronteiro, se a câmara pagar as contas à dona da luz e distribuidora de dividendos, que não chega para me perturbar o sono ou para me fazer sonhar com sereias ou com rinocerontes, depois de me certificar que não flutuam sonhos na rua nem dormem rinocerontes nos portais.

De manhã aceno às gaivotas que descansam nas chaminés dos edifícios do outro lado da rua, confirmando sempre se estão todas. Fomo-nos conhecendo lentamente, com o decorrer dos dias, sei-lhes os nomes, todos começados por um caracter especial, e elas adivinham-me o estado de espírito e a ramela nos olhos, sugerem-me uma escova no cabelo se ainda estou desgrenhado, riem-se-me na cara grasnando um coro insolente e desafinado que me chateia, esvoaçam para me mostrarem que não tenho asas e que posso tombar da janela. Queixam-se da falta de comida nos contentores e do reduzido número de alvos para o voo e para os dejectos, não têm onde trabalhar e o mar já se queixa disso. Têm razão elas e o mar, mas não há livro de reclamações onde possam fazê-lo, estão encerradas as papelarias que os vendem e até a autoridade oficial que fiscaliza o cumprimento das normas. Além do pormenor delas não saberem escrever e de terem parado no tempo, não adoptando as novas tecnologias que fariam de cada uma delas um poema musicado e um livro de sucesso a publicar depois do surto e das cerejas.


Há uma que me grasna de forma compreensiva, creio que já nos encontrámos no ginásio que frequentei antes disto tudo, e as outras mantêm-se quietas e caladas, consentem como se fossem casar no próximo sábado, se os casamentos não estivessem proibidos a todas as virgens ou não. A que grasna deve ser a que lidera, a presidente da junta, a capitã de equipa, a chefe de turma, o olhar superior, o perfil erecto, o peito para fora como um soldado pronto para a guerra, há-de ganhar a medalha da condecoração depois das guerras púnicas, vai ser o presidente a pôr-lha ao pescoço num feriado de manhã. Mas chegamos sempre a um entendimento rápido e fácil, elas mantêm o voo, eu mantenho o recolhimento. Tudo ao nível do estrictamente necessário e indispensável, quer da parte delas, quer da minha. Elas não vão empunhar cravos vermelhos no 25 de Abril, eu não vou voar e cagar no tejadilho dos automóveis da travessa, são assim as sociedades de especialistas, cada um faz aquilo que sabe, aquilo para que estudou, e é por isso que há desemprego e tanta gente e tanta gaivota sem fazer nada, para já não falar nos analfabetos com estudos e nos estudos sem uma quadra escrita, uma perfeita redondilha maior.

Mas há gente que não tem medo do escuro e que se limita a difundir o cagaço do vírus e que, por isso, fecha completamente os estores das janelas que tem e não vê para lado nenhum, nem para dentro nem para fora, são cegos da cabeça aos pés, podem ter o vírus nas mãos e não lhe apertam o pescoço nem o dissolvem em formaldeído, como mandam a química e o bom senso. Não fazem amizade com as gaivotas, não lhes sabem os nomes, não lhes respeitam o território nem lhes aparam as unhas, não há barcos que de manhã lhes entrem pela janela quando a maré sobe e o peixe é à discrição, sem necessidade da cantilena na lota. Onde é tudo à grande, como nas marisqueiras, não fosse a quarentena e hoje havia de me rodear de lagostas por todos os lados. Pelo menos setenta, para parecer um árabe a caminho do céu, todo armadilhado da cintura para baixo.



18 de abril de 2020

Para que é tanto azul lá fora


Para que é tanto azul lá fora
Tanto céu aberto
Tanto voo de pássaro
Tanto verde crescendo para o sol
Tanta flor abrindo-se para a manhã
Tanto silêncio deserto
Tanta rua larga para lado nenhum
Tanta casa sem portas
Tanto beco sem um candeeiro aceso
Tanta inutilidade nos sinais de trânsito

Tanto rio tranquilo
Sem bóias nem embarcações
Com caudais de espanto descendo para o mar
Correndo entre cais vazios
E bandos de gaivotas assustadas
Pela transparência das águas
E pelo excesso de peixe livre das redes

E onde está a porta
Onde fica o corredor que dá para a alameda
Onde se sente o ar a entrar-nos nas narinas
E a brisa acariciando-nos a face?



16 de abril de 2020

Pneumotórax


Trinta e três é um número mágico, mesmo que se não aprenda na escola e não conste da tabuada, um conjunto arcaico de tabelas numa oficina gráfica que em tempos remotos substituiu as tecnologias e as folhas de cálculo e que ajudavam crianças e adultos a aprender as operações aritméticas básicas, a somar cinco mais sete doze, como a multiplicar sete vezes oito cinquenta e seis. Por mim, sempre trouxe o trinta e três no bolso das calças e o trinta e um no cocuruto da cabeça e não o contrário e só o último me deu problemas, talvez por ser número primo e eu não saber, que não me interessa a família de nada nem de ninguém. Trinta e três traz consigo a sugestão de um conjunto de coisas fatalmente ocasionais como a terminação dos números da lotaria, o número da porta da morada da rapariga mais bonita do bairro, o tamanho dos sapatos que não servem a ninguém e o número do autocarro que não tem destino.

Trinta e três era a idade de Jesus Cristo, que eu não conheci e que não tinha nenhum documento de identificação, nem que fossem contadas todas as contas do mais longo rosário. Com mais doze apóstolos eram treze à mesa. E treze são trinta e três menos duas dezenas, coisa surpreendente e rara. E treze foi o meu número numa qualquer turma do ensino secundário, sendo que treze não era nem boa nem má nota, quer dizer era assim-assim e pronto. Trinta e três sugere ainda pneumotórax e, obviamente, medicina e génio poético, métrica, rima, cantares de amigo. Quer dizer, muito mais génio poético, com cabral à procura da índia navegando para ocidente. Bendito ocidente a partir de onde tão largos passos têm percorrido mundo e tão curtos outros têm dormido no arejo das salas do palácio da alvorada.

É preciso avisar toda a gente, marcar bilhete e arranjar avião ou barco ou comboio que me leve até pasárgada para lá ser amigo do rei e montar um burro brabo e ser feliz. Bandeira foi tudo e mais do que isso, depois que criou o reino e subiu as escadas para ser mais rei do que súbdito, mais amigo de todos e meu também, sacudindo a poeira dos olhos e a inércia das estantes, tantas luas passadas à espera de cumprir meu ideal e construir um império colonial tijolo a tijolo, sempre burro para ser mais sólido. E escrever pneumotórax nas paredes para ficar para sempre, para as escavações futuras, quando a arqueologia chegar a um qualquer sítio soterrado, meia dúzia de quilómetros a sul do rio leça que nasce numa serra peninsular e que desagua a norte de mértola.


PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
— Respire.
...................................................................................................
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

12 de abril de 2020

Domingo de Páscoa


O menino subiu as escadas a correr até ao segundo andar, quase tropeçando nos degraus, aproveitou o facto da porta estar apenas encostada e foi apressadamente ter com a mãe que estava na cozinha a tratar do almoço. A mãe tinha o aspecto bonito e doce que têm todas as mães, usava uma leve camisola de algodão, de um cor-de-rosa fresco e esbatido, e tinha um avental que lhe protegia a elegância esguia das pernas e o asseio engomado das calças justas.

E o menino disse, gaguejando com a excitação:
- Mãe, o Cristo está lá em baixo, à entrada da porta.


A mãe olhou-o de soslaio, com aquele sorriso amarelo e doce que têm todas as mães, e retorquiu, tranquila:
- Vai deixar as sapatilhas do lado de fora da porta, vira as calças do avesso, lava as mãos com muito sabão e vai pensando em te sentares à mesa para comeres a sopa de abóbora. E eu já vou ver se Jesus Cristo abriu a porta da igreja e fugiu da quarentena, como mandam o bispo e o governo, e anda aí pelas ruas desertas de sinetas e de amêndoas, a assomar a cada esquina.

O menino baixou o olhar triste e contrariado e, a passo lento e curto, foi ao cumprimento das ordens da mãe. Esta passou as mãos pelos cabelos que lhe caíam sobre os ombros e dirigiu-se a uma das janelas que davam para a rua onde a calçada de granito brilhava ao sol do meio dia de abril. Para seu espanto, Jesus Cristo estava do lado de fora, pregado a uma cruz alta, de ferro, que chegava à altura do segundo andar, esquálido de ferrugem e magro de quarentena. Ninguém o acompanhava, nem o padre metido no seu hábito branco, com a barriga proeminente empurrando o caminho, nem o sacristão agitando a sineta e carregando um saco de plástico com a marca de um supermercado, pronto a receber as oferendas – sempre em dinheiro, porque Jesus Cristo não usa multibanco – e a abrir-se para deixar em cada casa um pequeno pacotinho de amêndoas baratas para as crianças.

A senhora ruborizou-se, sem jeito limpou as mãos às calças por de baixo do avental, notou que as tinha desapertadas na cintura, sentiu nas narinas o cheiro a esturro do assado que se queimava na cozinha. Não tinha o cabelo arranjado nem pintura nos olhos ou nos lábios, vestia-se de quarentena há já quatro semanas, sempre a recomendar a lavagem das mãos. 

Chamou o filho, que ia enchendo o lavatório de espuma e de bolinhas de sabão:
- João, anda fazer companhia a Jesus Cristo, enquanto sirvo uma malga de sopa a cada um.

O menino veio logo, de mãos molhadas e sorriso aberto. Empertigou-se para a janela e pousou o olhar infantil no conjunto enferrujado e magro. Nem Jesus Cristo se moveu  nem a cruz ganhou outra dimensão. Mas o menino viu-o rebrilhando ao sol, como se fosse em aço inoxidável. E da cozinha chegou-lhe o som metálico da sineta, como se o sacristão tivesse entrado pelas traseiras. Tirou uma amêndoa que tinha no bolso das calças e meteu-a à boca. A mãe chegava com duas malgas de sopa, fumegando um perfume a feijão e hortaliça.

É sempre domingo de Páscoa, com ou sem quarentena. O compasso há-de regressar às ruas para o ano que vem, quando estiver de novo aberta a porta da igreja e as andorinhas tiverem pousado nos beirais.


7 de abril de 2020

Semana 4, Cena 24


Um dia de neblina
A que ainda sobra sol
Uma manhã de vento
A que ainda sobra calma
Uma hora de desânimo
A que ainda sobra esperança
Um momento de angústia
A que ainda sobra conforto
Um rio alteroso
A que ainda sobra água fresca
Uma extensa fome geográfica
A que ainda há-de sobrar pão e faltar geografia
Um longo caminho longo
A que ainda há-de faltar distância
Um cansaço último e precário
A que ainda há-de sobrar energia definitiva

Um arco-íris atravessando
Um prisma de refracção total
A que há-de sobrar todo o brilho infinito dos teus olhos



4 de abril de 2020

Uma radical tarde de quarentena


Sou, como sempre fui, um tipo muito racional e organizado, exceptuando as vezes em que não sou nem uma coisa nem outra e ainda aquelas em que sou irracional e desorganizado. Tirando isso, faço por programar as minhas tarefas, tirando as vezes em que não penso nisso e não programo nada. Acordei a meio da noite e estava escuro e não o contrário. Nem o silêncio entrava pelas frestas da janela, só uns curtos raios mortiços do candeeiro público que dorme em frente. Perdi o sonho que sonhava e esqueci-o, não devia ser grande coisa. Mas tive pena, faltam-me castelos no vale do Loire, princesas encantadas, a inspecção militar, aquele aliciante estudo dos Lusíadas no antigo quinto ano dos liceus, tanto tempo para fixar apenas os dois primeiros versos. Preciso de recordar as coisas que detesto, a par da sopa de alho francês e da superior qualidade noticiosa do correio da manhã, que avalio por não conhecer. Embrulhei-me na roupa e devo ter adormecido de novo porque voltei a acordar mais tarde. Mas sonhei que lavava as mãos.

O sol hoje surgiu no horizonte às sete horas e onze minutos, nem mais nem menos. Devo ter acordado por essa hora, quando já um nevoeiro fraco me entrava pelos olhos. Eram horas de lavar as mãos. Creio que me levantei imediatamente, eram cerca de oito e trinta. Lavei as mãos, fiz a barba, lavei as mãos, tomei banho – porque hoje é sábado, saravá Vinícius de Moraes –, lavei as mãos, tratei do pequeno almoço, lavei as mãos, lavei os dentes, lavei as mãos, vesti-me, lavei as mãos e calcei-me e lavei as mãos. Ou ao contrário, mas lavei as mãos e lavei as mãos.


Vi que estava cheio o saco do lixo e fui lavar os olhos e as mãos. Arranjei um saco novo para pôr no balde, puxei os atilhos do saco cheio, dei-lhe dois nós, fui lavar as mãos duas vezes, abri a porta da rua e pu-lo do lado de fora. Fechei a porta de novo, fui buscar um pano limpo, encharquei-o com álcool, limpei as maçanetas da porta, limpei as chaves, limpei as mãos. Fui lavar as mãos.

Programei a ida ao contentor para as dezasseis horas e quarenta e sete minutos. Com rigor, por faltarem apenas três horas e quinze minutos para o por do sol, que hoje é às vinte horas e dois minutos exactas. Calcei umas sapatilhas velhas. Como não obedeceram à minha chamada, tive de as puxar de longe, com uma vassoura. Lavei as mãos, calcei uma luva descartável na mão direita, abri a porta com a esquerda. Peguei no saco pelos atilhos, sempre afastado de mim, desci as escadas, abri a porta da rua com a mão direita. Olhei para todos os lados, que são dois, não vi ninguém. Pensei em lavar as mãos.

Com passo resoluto e lento, com o saco sempre pendurado pelos atilhos, sempre afastado de mim, comigo a insultar-lhe toda a ascendência de hidrocarbonetos, caminhei até ao contentor. Uma longa distância de cem ou cento e vinte metros, olhando sempre para diante. Não se vê vivalma, não há lavatórios, não posso lavar as mãos. Ergo a tampa do contentor com a mão direita, ensaio com a esquerda um lançamento de martelo, atiro com o saco lá para dentro. Dou meia volta para o caminho de regresso. Uma gaivota grasna no ar, até fica bem no céu azul, por sorte não me acerta. Devia lavar as mãos, se me acertasse tinha de ser também a cabeça. Subo as escadas de volta ao meu exílio e ao meu aconchego, entro em casa, pego no trapo e encharco-o em álcool. Limpo as maçanetas, fecho a porta, limpo as chaves, lavo as mãos, tiro as sapatilhas sem lhes tocar com as mãos. Lavo as mãos, calço uns chinelos, apetece-me coçar uma pequenina comichão ao lado do nariz, vou lavar as mãos. Passo uma unha levemente pelo ponto comichoso, volto a lavar as mãos. Estou exausto. Lavo as mãos. Sento-me. Pego num livro, Contos Completos, de Gabriel Garcia Márquez. A cada página que viro, vou lavar as mãos. O detergente já se me está a acabar. Antes que se acabe, vou lavar as mãos. Estou pronto para a próxima página, estou é tão cansado!