31 de dezembro de 2015

Alvorada de um novo ano bissexto

Aqui estou eu, levemente encostado a uma minúscula esquina do dia que corre a caminho do passado, como camélias dobradas e frágeis, caídas com a chuva teimosa das noites intermináveis de inverno. Trezentos mil sóis nascendo a ocidente, como se fossem barcos de quilhas desfeitas e leme partido, tecendo a densa escuridão da noite e encalhando nos rochedos erectos, à beira da praia, com o silêncio estridente da tripulação gritando por mar calmo e peixes vermelhos de aquário espreguiçando-se nas areias finas e reluzentes.


E tu, memória da jovem rapariguinha plantada na berma dos carreiros, virgem prostituta do palco da vida, tomando café à mesa de uma pastelaria da baixa numa manhã de domingo, o puro prazer das descobertas caindo-te do olhar pequeno e frouxo, escorrendo-te dos lábios curtos para o vazio dos seios mirrados, crescendo sobre a camada de caruma caída da sombra incompleta dos pinheiros. O verão rachado em cavacas, a golpes certeiros de machado, que hão-de crepitar nas fogueiras do infinito, enquanto dobram os sinos das igrejas e se sobrepõem os ponteiros dos relógios nas curvas apertadas e sinuosas de uma longa noite, sem estrelas e sem luar. Como o horizonte da órbita fechada em que gravita Plutão, quando chega a alvorada de um novo ano bissexto.

24 de dezembro de 2015

Naquele tempo era sempre tempo de palavras doces

Naquele tempo era sempre tempo de palavras doces. Naquele tempo amanhecia a quase dois mil metros de altitude, o sol rompia por entre os capinzais nas manhãs frias, todos os pássaros chilreavam com os peitos pintados de azul celeste, como se fossem catuitis, e os bicos curtos com a cor do lacre que selava as cartas em que eram escritas as declarações de amor, como se fossem bicos de lacre. Uma ribeira de margens estreitas serpenteava por entre caniços e nevoeiros herdados das madrugadas, sem ruído que despertasse a preguiça dos peixes que lhe repousavam no fundo, ao ritmo a que áfrica guardava o sol nos horizontes da savana, quando nem sequer imaginava que havia relógios que mediam o tempo nas ruas iluminadas das cidades da europa.


Naquele tempo, como em todos os tempos, áfrica era mais do que um continente, um estado de espírito, uma forma de vida, uma picada de marimbondo, um sortilégio onde o mar e o sol são de graça, como disse Camus na profundidade das suas palavras simples e doces, a saber a chocolate. África era uma sinfonia, uma orquestra de não sei quantas figuras, sobrando-lhe no ritmo frenético o que lhe pudesse faltar no enlevo educado da melodia dos salões vienenses. O ritmo dos dias e das noites, da água vermelha das chuvadas correndo nas valetas, dos pregões das quitandeiras subindo do vale do Kewe, bairro de Benfica acima, cada cesto de morangos a meia cinco e um sorriso aberto por entre os dentes brancos, a brilhar num fundo escuro e de inocência feliz.

14 de dezembro de 2015

Todas as mulheres com que me cruzei

Todas as mulheres com que me cruzei na vida traziam uma tristeza líquida e azul no fundo dos olhos, pendia-lhes dos cantos da boca um verniz carmim que seguravam nas pontas dos dedos e usavam saltos altos com que se equilibravam no piso escorregadio das calçadas à chuva. Abraçavam o vento que acolhiam no universo do regaço, os cabelos soltos em desalinho como se fossem os de James Dean sulcando a estrada em cima de uma Harley-Davidson de grande potência, toda a pressa de chegar ao oceano Pacífico e sentir o sal morno das águas nas solas dos pés e debaixo da língua.


Os joelhos magros a caírem-lhe das saias curtas, prometendo a forma generosa das ancas para lá do tecido, os seios erectos segurando-lhes a elegância da silhueta e a altivez serena e sóbria do porte, como se o sol caísse a pino sem deixar sombra nenhuma, fosse ainda meio-dia e o brilho continuasse como se fosse verão além do círculo polar árctico, se é assim que a geografia o ensina e a latitude o comporta. O sonho arfando-lhes no peito ao ritmo da frequência cardíaca, como um terço que trouxessem pendurado ao pescoço, nenhum mistério lhes dissimulasse o desejo e as revelasse completas e inteiras, como se não houvesse rosário nenhum.

13 de dezembro de 2015

Mulheres de preto descendo pelas chaminés

Antigamente, nas remotas aldeias de província e nas noites que davam para domingo, as mulheres vestidas de preto como se fossem viúvas do tempo, desciam pela fuligem das chaminés quando o solstício do inverno batia às portas do calendário. E traziam consigo cavacas secas para alimentar as chamas tranquilas da fogueira e um ramo de azevinho carregado de bolinhas vermelhas, que encurtasse as longas viagens dos sonos frios do hemisfério norte.


Hoje não há fumos que subam pelas chaminés e se misturem com as nuvens brancas que enchem as manhãs frias e luminosas dos dias claros e secos de dezembro. Como se anunciassem a chegada de flores garridas colorindo as primaveras e de um novo sucessor de Pedro, ajoujado ao peso de quantos futuros lhe sobrecarregam a estreita largura dos ombros, a apoiar-se no báculo, como peregrino que percorresse os caminhos de Santiago. E que de lá voltasse convicto de que trazia consigo, como o sol para todos, as certezas do porvir que nos falta.

8 de dezembro de 2015

Eu existo nos dias úteis

Eu existo nos dias úteis, com horário certo, como funcionário público preparado para a rotina do expediente no começo da semana, marcando o ponto às nove da manhã, a atirar-me à burocracia parada dos dias cinzentos nas vésperas do inverno, justificando os atrasos com os transportes que obedecem a horários apenas decorativos e inúteis. Agradecendo a compreensão incompreensível e magnânima do assessor que o ministro demitido me empurrou para chefe e a quem devo entregar a consciência e a fidelidade do voto, quando o país o indicar como sumidade pública, todo entregue à vocação divina de me lamentar a miséria e proteger a inutilidade, enquanto lhe cresce o saldo da conta bancária e a potência do automóvel que se abastece do meu bolso e lhe leva os filhos prendados às aulas de piano, o mestre superiormente diplomado em Viena.

Pontualmente tenho direito a um intervalo a que chamam para almoço, que não uso nem repito, não vá o tempo curto atrasar-me de novo para a marcação do ponto e o assessor recusar-me a justificação, porque a fome não desculpa coisa nenhuma, podendo até cair-me na fraqueza. Para além do alimento poder prejudicar a lucidez e o despacho para o atendimento da fila de velhos que se perfila à frente do balcão, o medo tremendo-lhes nas pernas bambas, o olhar mortiço transbordando passados e distâncias que os hão-de acompanhar até à cova, onde a morte sem romarias nem foguetes os há-de acolher, porque os crematórios levam mais caro do que os advogados que caçam fortunas no Brasil e rascunham leis no parlamento.
Um poema pode não ter métrica nem rima, pode até não apregoar a lucidez que Pessoa bebia a copo ao balcão das tabernas da baixa de Lisboa. Mas pode dizer merda e acabar com um ponto final. Como terminam a vida e as exéquias dos funcionários que esperam pelo sol de agosto sob o abrigo invernoso dos guarda-chuva. Merda, sou lúcido, eu também!


7 de dezembro de 2015

A voz presa à garganta

A voz presa à garganta por um fio, o gelo de um glaciar inteiro a fundir-se-me nos dentes, flutuando para sul à procura dos destroços submersos do Titanic, ainda com música nos salões de baile, instrumentos de cordas, violinos, os esqueletos batendo a cadência do compasso com o que lhes sobra das falangetas. É ainda outono, sexta-feira de manhã, um sol frouxo e pouco como se fosse ontem e nos chegasse directamente do estado social, no meio da tralha da indústria e do insulto plangente da retórica, promessas líquidas dos peregrinos que rezam o terço nos recintos dos santuários e nos corredores dos ministérios.


Mais longe do que isso fica o trópico de Câncer, o traço realista de Henry Miller, visão utópica de novos mundos na ponta curva do leme das caravelas, só o redondo dos teus seios, pronto a queimar-me nas mãos todo o degelo que trago pendurado ao pescoço, os lábios frios do fogo que crepita nas lareiras rústicas dos antigos solares de província, a igreja da freguesia vestida de nevoeiro cerrado que desce das colinas. Para lá do fogo fica o tacto procurando a descoberta de caminhos novos, percorrendo todos os silêncios doces da tua boca, desenhando todas as curvas suaves do teu corpo em que pousam as nuvens carregando os sonhos da noite de quarto minguante. E a voz que se solta, como se fosse outro dia e a lua nova.

1 de dezembro de 2015

Há mulheres que se abraçam

Há mulheres que se abraçam enquanto os sonhos lhes voam por constelações para além da via láctea e que chegam ao outro lado do rio, com a largura do universo e todos os afluentes inteiros, a transbordar das margens. E a corrente que sobe pelo leito cheira a maresia, com a fragrância macia e terna das flores de tília, o branco sem adjectivos das flores de laranjeira e o verde-escuro das folhas para sempre, como se fosse domingo o dia todo.


Um abraço forte e apertado que nos traz o calor do coração à ponta dos dedos, como se não tivessem corpo e estivessem expectantes e nuas, à espera do poente onde se possa acolher o sol que lhes revolva o perfume dos cabelos, lhes humedeça os lábios finos e devolva a serenidade ansiosa e meiga do olhar. E a felicidade, mais do que a carícia de veludo da lua cheia, que arrepia sempre cada centímetro de pele, possa ser apenas como um sopro quase de repente, quase brisa, a chegar do infinito. E a ficar!