Dinamarca – Portugal
Eu não sou viciado, nem em drogas, nem em álcool, nem em tabaco. Nunca me droguei, nunca bebi a não ser socialmente, seja lá isso aquilo que for, e se bebi sempre paguei a minha parte. E quanto ao tabaco, vejam lá, que este ano a efeméride me passou em claro: fez no dia dois trinta e dois (sim, 32) anos que deixei de fumar. De manhã, antes de ir trabalhar, fumei os dois últimos cigarros da minha vida. Que me tinham sobrado dos quatro maços (sim, 4) consumidos no dia anterior. Até hoje ocupo-me a pensar no que terei eu feito à fortuna que já poupei, porque não tenho um chavo. Também não sou viciado a ver televisão, nem em telenovelas, nem em futebol. Gosto de ver futebol como o via em garoto, no campo do Clube Desportivo Ferrovia, por onde passaram equipas da divisão maior do campeonato portuga. E não vou falar de mais vícios, isso queriam vocês, mas desiludam-se, cada um que se desenrasque como puder. E não digo mais nada, mas a época, como sabem, é muito condescendente com tudo e com todos.
Na televisão gosto de ver
futebol mas sem comentários e sem apalpões. Os comentários dos especialistas,
dos catedráticos do esférico, exponenciam-me a ignorância e reduzem-me a um
Sancho Pança falando da vida quotidiana não sei em que galáxia, talvez ainda
mesmo por descobrir ou por nascer ou mesmo onde ainda nem a CP chegou. Ontem decidi-me
a ver o Dinamarca – Portugal, em Copenhaga (que até os catedráticos do esférico
sabem ser a capital da Dinamarca) onde me lembro de ter chegado num dia à noite
e encontrar os jardins do Tivoli cheios de gente bêbada, com camisolas e cachecóis
dinamarqueses, sem nada para comer ou para beber, fosse em que tasca fosse.
Nesse dia a Dinamarca tinha ganho à União Soviética (que se desuniu em não sei
quantos países não soviéticos) e acabaria por ser repescada (à linha, com cana
de pesca) e sagrar-se campeã europeia. E onde as raparigas, à noite, se expõem
nas montras a mostrar as mamas, senão ninguém repara nelas porque as não devem ter
muito vistosas. Apesar do desábito não tive dificuldades em seguir o relato do
saudoso José de Vasconcelos. Onze rapazes de um lado, vestidos de vermelho (ou
encarnado, sei lá, embora não seja daltónico) e onze do outro, vestidos de
branco, como se fossem descendentes dos pastorinhos de Fátima. E um senhor vestido
de preto. Com um apito pendurado ao pescoço e a bola na mão e que, pelo aspeto
e pelo espírito autoritário, devia ser o dono dela.
Começou o jogo e logo do lado esquerdo, um afrodescendente vestido de branco ultrapassou um branco fdp e este desatou desalmadamente a perseguir o desgraçado do afrodescendente. Não era preto, era afrodescendente, que eu bem vi. Branco fdp era o gajo vestido de vermelho que desatou a persegui-lo sem motivo, bem como o cabrão (não vejo que haja palavra mais erudita para chamar ao gajo) do dono da bola que nem usou o apito. E o catedrátido do esférico que tinha o microgaitas desatou, com razão, a proferir uma sequência histérica de impropérios que até eu cheguei a pensar que lhe estivesse alguém a telefonar para lhe dizer que lhe tinham violado alguma filha. Depois o afrodescendente atirou a bola a alguns vinte metros da baliza e o catedrátido com o rigor da cátedra e da fita métrica a relatar como o remate tinha sido ligeiramente mal medido e passado a centímetros da baliza. Que, se não fosse isso,de nada serviria o guarda redes que não conseguia encher a baliza e isso eu vi e garanto que não, que não enchia.
Mas o nosso guarda redes
sim, não enchia a baliza, ele era maior do que ela. Porque o dono da bola
resolveu implicar com outro afrodescendente (podiam arranjar uma palavra mais
curta para dizer esta merda) que tinha tocado na bola com a mão mas via-se logo
que tinha sido sem querer e vai daí marcou penalty. Penalty é assim: o guarda
redes na baliza e o marcador com a bola na marca, se o marcador tocar duas
vezes na bola, não vale e se o guarda redes se mexer repete-se que é para ele
aprender a ficar quieto. Então o nosso guarda redes, cuja cara não me é
estranha, acho até que já o vi por Miragaia ou nas festas do Senhor de
Matosinhos, ficou tão quietinho que até doía e quando a bola já ía a entrar
atirou-se pelo ar que até parecia uma cegonha e pimba, atirou a bola para fora
do campo e até eu quase que bati palmas. Se ainda houvesse banda de certeza que
tinha tocado o hino e o senhor presidente Marcelo tinha ficado em sentido
Deve mesmo ter havido alguma
intervenção da irmã Lúcia porque a primeira coisa que o rapaz fez quando se
levantou do chão foi fazer o sinal da cruz e não se ouviu mas certamente
desejar as melhoras do Papa Francisco. O catedrátido do microfone ainda estava
a gritar adjetivos que nunca ouvi ninguém usar, nem na Ribeira, e a dizer que
ele era enorme, era imenso, era maior do que a baliza. Para ser franco, não
sei, devo-me ter distraído, não reparei nisso. Mas o mais natural é que o homem
tivesse realmente uma perna para lá de cada poste (parece que é assim que se
chama) e o pescoço apoiado na trave, porque estar ali quieto, sempre parado,
sem nada que fazer, deve cansar como o caraças. No fim dizia o catedrático do
esférico que a seleção fora uma vergonha, fora péssima, tinha sido horrorosa. E
que o selecionador, um castelhano de má fama, devia ter sido apanhado pela pá
da padeira de Aljubarrota para saber como elas mordem. Fiquei por mim a desejar
que a qualidade da exibição não chegasse aos ouvidos do doutor Salazar ou até
do Afonso Henriques. O primeiro de certeza que os mandava de férias para o forte
de Peniche e o Afonso Henriques dava-lhes cabo do canastro como fez aos cabrões
dos mouros. E nem quero pensar no que faria o ministro da defesa, o doutor Nuno
Melo, esse impoluto e indefectível patriota. Toma!