9 de setembro de 2025

Minha Mãe, dezoito anos

Pois, podia ser assim, mas não é. A dor e o sofrimento não têm convenções nem obedecem a regras. Não fazem ideia do que seja o código civil nem do que estabelece. Esta imensa dor que me deixaste já me ficou assim: enorme e de maioridade. E apesar disso não deixou de crescer a cada dia, a cada momento, como se pudesse ser sempre maior, sem nada que a limite ou a impeça de crescer. De forma que não tem nenhum sentido especial o facto de hoje se cumprirem dezoito anos. Não representa maioridade nenhuma. A maioridade vem do primeiro dia e persegue-se em cada dia seguinte, sem nunca se atingir. E assim vai continuar, enquanto eu souber contá-los.

Na manhã fina de Setembro ainda se desmontam os enfeites da Festa Grande e se recolhe o engelhado colorido do papel de seda esvoaçando ao vento. Para que ainda possa servir para o ano que vem. Só há velhos no recinto da igreja cujo restauro minga à falta de vontades e de recursos. E apesar disso não há ninguém que se reconheça à sombra dos carvalhos onde repousam andares carregados de bolos e de notas de cem escudos. Nem o azul deslumbrante do olhar da gata atravessa o adro e enche a nave cheia da igreja. A freguesia não tem pároco e as chaves da igreja repousam na algibeira do sacristão ou das zeladoras que renovam as flores naturais que adornam o altar. Já ninguém vem ao teu encontro, já ninguém sabe quem eu sou. Nem sei se a fotografia do teu abraço repousa ainda na cozinha da gata, ao lado do forno onde se cozem os bolos. Mas na minha memória tudo continua nítido como se fosse ontem.

21 de agosto de 2025

Carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel I sobre o achamento do Brasil

E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de Abril, estando da dita ilha obra de seiscentas e sessenta ou seiscentas e setenta léguas, segundo os pilotos diziam, topámos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarte-feira seguinte (22 de Abril), pela manhã topámos aves a que chamam fura-buxos.

Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente de um grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o MONTE PASCOAL – e à terra – a TERRA DA VERA CRUZ.

Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças, e, ao sol-posto, obra de seis léguas de terra, surgimos âncoras, em dezanove braças – ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira (23 de Abril), pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezassete, dezasseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua de terra, onde todos lançámos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos.

Dali avistámos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.

Então lançámos fora os batéis e esquifes; e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor; onde falaram entre si.  E o capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quandio aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com as suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.

[Excerto da edição da Parque Expo 98, SA, de 1997. O original desta carta, uma preciosidade de valor incalculável, é propriedade do estado português e encontra-se à guarda da Torre do Tombo.]

4 de maio de 2025

Dia das Mães

Foi quando me faltaste que julguei que te perdia. E isso, assim de repente, mais do que doloroso foi-me inconcebível e insuportável. Tu nunca me  faltaras, nem quando pensara não precisar de ti e a tua presença continuara, sem a sentir, a pairar acima de mim e de tudo, benevolente e disponível, humilde e tranquila, sem palavras e de sorriso fácil. Omnipresente. Nada me conteve nem as lágrimas, nem a dor, nem a revolta. Contigo faltou-me tudo, a fé, o horizonte e a já débil esperamça. Sobrou-me  a funda desesperança, contando os dias, como quem deixa de fumar e faz de cada hora uma vitória mirrada.

De peito apertado foram-se-me secando as lágrimas mas não a dor e o sofrimento. A tua falta foi sendo ausência e esta foi sendo cada vez menos distante, contigo a pairares de novo sobre a minha vida, a devolver-me alguma esperança, a abrir-me o horizonte estreito no fim do caminho, a fazer-me acreditar. A aproximar-nos e a fazer-me sentir de novo a benevolência do teu sorriso fácil e humilde. Mesmo se um qualquer dia eu voltar a pensar não precisar dele. Porque, entretanto, me sobreveio a certeza de que te não perdi. De que, afinal, as Mães nunca se perdem. O nosso destino é prosseguirmos juntos. O nosso destino é ficarmos juntos, como sempre. Para sempre.

25 de abril de 2025

25 de Abril – 51 anos

Ainda por Abril águas mil amanheceu o dia inicial inteiro e limpo, fresco e descoberto. E os dias que se seguiram foram fartos rios que correram para o centro do mundo, desaguando na euforia e na esperança da multidão. Os cravos vermelhos floriram por todo o lado, de forma expontânea, espalhando um perfume novo e inebriante. Mas o sonho é efémero, quase sempre se esfuma pela madrugada, quando os galos cantam e se anuncia a alvorada próxima.

Rapidamente os cravos foram murchando e perdendo o cheiro. Por falta de atenção e de rega, por carência do indispensável desvelo coletivo. A esperança vacilou, uma ruga apreensiva sulcou lentamente as faces mais tisnadas pela dureza dos anos. A alegria foi-se esfumando, os preços subiram, a carestia de vida aumentou, foram-se formando nuvens escuras no horizonte, a borrasca perfilou-se como expetativa possível que se aproximava.

Os filhos foram envelhecendo em casa dos pais, por incapacidade de comprar ou de alugar uma casa. Pela falta de emprego ou pelo emprego precário e pouco. Um apregoado liberalismo foi-se instalando como uma praga, como a oitava maravilha do mundo. Concentrando cada vez mais riqueza e distribuindo-a cada vez menos, exigindo que se produza cada vez mais rapidamente. A pobreza foi-se alargando, a fome cresceu por todos os lados, os sem abrigo multiplicaram-se pelos frios portais das cidades. Sempre ignorados pelo poder, sem uma palavra nos discursos, sem uma pequena verba no orçamento. Passados 51 anos, Abril está por cumprir. É preciso que se cumpra, vai sendo tempo que se cumpra. É esse o nosso desiderato coletivo.

21 de abril de 2025

Papa Francisco: duas palavras

Nós vivemos numa época caótica. Vivemos numa sociedade intolerante, de confronto, hipócrita, falsa, extremista e violenta. Manipulada por interesses inconfessáveis, invocando o bem comum e espezinhando os direitos básicos a coberto do voto popular, das democracias, dos nacionalismos e da proximidade com as pessoas. Basta assistir ao mais elementar debate, seja ele político, desportivo, religioso ou do comezinho dia a dia do cidadão comum.

A grandeza de muito raras pessoas é conseguirem ser racionais, apelar ao senso comum, pugnar pelos mais fracos, invocar direitos naturais, dizer o que é mais fácil e mais simples de pensar, desejar o fim de guerras de milhões e pensar num prato de comida para todos. Assim foi Francsico, nem revolucionário, nem reformador, nem extraordinário, nem superior. Foi apenas um homem entre todos que se não esqueceu da sua condição. Foi ser tão igual que fez dele tão diferente. Que fez que dissesse e defendesse aquilo que são direitos inalienáveis de todo e qualquer ser humano. É por isso que ficará na história, porque a história não é mais do que a memória coletiva de todos os que habitam o planeta.