22 de outubro de 2024

Han Kang – Prémio Nobel da Literatura 2024

Não será grande confissão dizer que, até ter sido divulgado o Prémio Nobel de Literatura de 2024, eu nunca ouvira falar de Han Kang. Mas a circunstância desperta -me um interesse expontâneo e imediato. Primeiro por ser coreana, um país do extremo oriente de que sabemos pouco ou nada. A não ser, talvez e cada vez mais, as marcas de alguns automóveis que circulam pelas nossas estradas. Depois por ser mulher. Apregoemos a igualdade que apregoarmos, ser mulher continua a ser uma desvantagem. Porque, se tanto assim não for hoje, há ainda pouco tempo não teve as mesmas oportunidades. Foi impedida de estudar, foi limitada às tarefas domésticas, foi literalmente industriada para a condição de femea e de mãe. Finalmente por ser nova e ter apenas 53 anos de idade. Como Albert Camus disse no seu discurso de 10 de Dezembro de 1957, “como é que um homem quase jovem, apenas rico das suas dúvidas e de uma obra ainda em construção” ou, neste caso, como é que uma mulher.

Confesso, isso sim, que sou cético. Mas sou-o, apesar de tudo, com a razoabilidade de considerar que o prémio Nobel ainda conserva alguma respeitabilidade, ainda não é atribuído aos prolíferos escritores que enxameiam redes sociais e escaparates de livrarias de vão de escada. É verdade que se não conhecem os critérios para a distinção nem sequer os nomes dos membros do júri. É verdade que não é consensual – e mal seria se o fosse – e que lhe querem sempre atribuir conotações subterrâneas, frequentemente pouco ou nada credíveis e nunca certificadas.

Por mim espero sempre a criatividade e a inovação, sabendo que procuro uma agulha no meio do amplo palheiro. Todas as histórias já foram contadas, todos os estilos foram por demais explorados. Todos os escritores que não atinam com a gramática e que dão erros de ortografia frequentaram, com êxito e aproveitamente, meia dúzia de cursos de escrita criativa. Nem Miguel de Cervantes seria hoje tão criativo como foi com o seu “El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha” no início do século XVII. Mas esta senhora coreana tem de ter, forçosamente, alguma coisa de novo. É à procura disso que a vou ler.


18 de outubro de 2024

No teu 113º. aniversário

Faz hoje 113 anos que nasceste, numa pequena e pobre casa no lugar da Casaria, freguesia do Olival, concelho de Vila Nova de Ourém, distrito de Santarém. Primogénita de seis irmãos que a vida deixaria órfã de pai antes dos dez anos e que te reclamaria para o trabalho ainda tão criança. Percorreste um longo caminho e nunca tivemos esta conversa antes, apenas porque não calhou. Mas connosco nunca é tarde para nada, podemos falar de tudo em qualquer altura, seja onde for.

Quando aos oitenta e nove anos te viste sozinha na vida eu, morando longe, rapidamente compreendi que não seria possível deixar-te a viver como vivias, acantonada no teu cantinho, quieta e calada, apenas para não incomodar. Fomos à procura de um destino, decente, digno, asseado e confortável onde pudesses tranquilamente repousar de uma longa vida de trabalho a que nunca voltaste a cara. Algumas vezes não compreendi nem as lágrimas nos teus olhos, nem a ironia no repentino acordo das tuas respostas. Mas hoje compreendo.

Recordo aqui e agora, como exemplo, o último grande problema que tiveste para resolver: o Joli. Era o Joli um pequeno cachorro rafeiro que criaste quase desde que abriu os olhos e que, confesso, me não recordo de onde te chegou. Tinha o pelo comprido, de cor castanha, com grandes manchas brancas, e um latido esganiçado e rouco, de timbre meio efiminado, que te acompanhava os passos e se plantava a teu lado o tempo todo, à espera de uma festa ou de uma pequena côdea de pão que te sobrasse. E que acompanhava os meus passeios matinais, saltando à minha frente como se me abrisse caminho por entre as ervas altas, escorrendo do orvalho da madrugada.

A preocupação que tiveste para que tivesse um destino condigno, onde fosse bem alimentado e não fosse sujeito a maus tratos. Foi confiado aos cuidados da tua sobrinha Luciana que, todavia, para evitar que ele se perdesse à tua procura o teve de manter preso na ponta de uma corrente com pouco mais de dois metros. Nunca o Joli se vira preso na vida, cachorro criado em liberdade, saltando à nossa frente, soltando aquele latido roufenho, como se nos servisse de guia. E as visitas que depois, a teu pedido, fazíamos à tua sobrinha, como pretexto para veres o Joli, lhe fazeres uma singela festa no dorso e lhe dizeres duas palavras que ele, claramente, entendia. E tenho de recordar como exemplo a incontida e exuberante alegria do cachorro quando te via e se rebolava pelo chão, em autêntico extase, mijando-se todo, descontroladamente, esganiçando o seu latido efiminado e rouco.

No teu aniversário é-me muito grato salientar, como exemplar, o amor que dedicaste a um rafeiro e, mais do que isso, a gratidão com que ele sempre te correspondeu. Nasceste há 113 anos!

9 de setembro de 2024

Dezassete anos, minha Mãe

Minha Mãe, há dezassete anos que te não falo. Todas as palavras perderam o sentido, tornaram-se inúteis por completo, não servem para mais nada. Já não há brisa que as agite ou onda que as estenda na areia fina, quando o Verão se esfuma nos primeiros dias de Setembro. Apesar disso estou mais próximo de ti a cada instante que passa, quase ao dobrar da esquina, quase a bater-te à porta.

Ambos sabemos, desde sempre e cada vez melhor, que o nosso destino é comum, sem precisar de gestos ou de palavras. O fim, como o princípio, é o teu regaço, o teu sorriso fácil, a tua humildade excessiva, a tua determinação com lágrimas sentidas nos olhos. A primeira imagem que retenho de ti, criança que não foste, de vestidito de chita, por carreiros, serra acima, correndo atrás das mulheres que te levaram à Cova da Iria pela primeira vez. À época um sítio sem jeito nenhum, só montes e pedras, algumas azinheiras, charcos com água da chuva e um mar de gente no descampado. À procura não se sabia bem de quê.

Depois, muito mais tarde, a praia do Pedrogão, com o largo areal ali, à nossa frente, emoldurando aquele mar imenso, sem fim à vista. E o brilho traquina e feliz no fundo dos teus olhos cansados pelos anos. Com a sorte que é voltarmos a um sítio onde fomos felizes e onde pensámos que não teríamos oportunidade de voltar. Hoje vou contigo, pela tua mão, criança como tu, por carreiros, serra acima. E estou aqui contigo, debruçado sobre o areal, vendo o mar e a praia já deserta de Setembro. Não precisamos de palavras. Volto ao teu regaço.

1 de julho de 2024

Fausto Bordalo Dias

O Carlinhos morreu. Conheci-o quando a sua família morava no Bairro de São João, em Nova Lisboa, mesmo em frente à escola nº. 21, onde completei a minha instrução primária. A sua mãe, ali professora, morreu prematuramente, ainda muito nova. O seu pai é que era o Fausto, o sucateiro, com quem ainda estive numa das minhas poucas idas ao convívio anual nas Caldas da Rainha. O seu irmão Manuel, mais velho, médico veterinário, também já falecido, ainda se encontrou comigo num dos almoços de confraternização, creio que na Redinha, Pombal. Nunca me reencontrei com o Carlinhos, a não ser sentado na plateia, para ouvi-lo.


Primeiro num concerto a que se aventurou, no Coliseu do Porto, a solo. E mais tarde, na mesma sala emblemática da cidade invicta, num concerto único com José Mário Branco e Sérgio Godinho. Em criança era pequeno, magro, enfezado e ninguém diria que os seus dedos viriam a ter o virtuosismo que tiveram dedilhando as cordas de uma viola ou que o seu vozeirão ecoaria até ao último lugar do coliseu. Eu só gosto de música, nem sei uma nota, nem tão pouco tenho ouvido musical. Mas Fausto Bordalo Dias deixa-nos, com poucas ou nenhumas dúvidas, o trabalho mais importante da música popular portuguesa dos últimos cem anos: Por este rio acima!

5 de maio de 2024

Dia da Mãe

Regresso muito devagar ao princípio do mundo, até chegar ao apertado aconchego do teu regaço. E descubro que é daí que vem a invenção da luz e o movimento de translação da terra. Antes disso não havia sol e todos os dias eram escuros, sem horas e sem azul por cima. Não havia nem árvores, nem mares, nem pássaros e tudo era quieto como o silêncio. Não havia nem entardecer nem fim do dia. Depois, ao fundo do teu vasto ventre, acendeu-se a luz inicial nas meninas dos meus olhos e inventou-se a vida. E de repente houve oceanos e marés e o barulho das ondas desfazendo-se contra as falésias. Surgiram planícies e montanhas onde nasceram ervas e abriram flores, cresceram árvores e voaram pássaros. A terra começou a girar à sua volta e daí nasceu a noite para descanso dos olhos e para descoberta das estrelas.

Depois, na palma da tua mão, deram-se os primeiros passos e descobriu-se o equilíbrio, e com isso se abriram os primeiros caminhos e se mediram ainda pequenas distâncias. Com a terra plana e com Galileu ainda sem saber quando e onde nascer, sempre o teu rosto foi espelho de todos os sorrisos e porto de abrigo para todos os peregrinos. Deve ter sido das grandes peregrinações que vieram os maiores desafios e ainda a necessidade da invenção da escrita, para falarmos de amor a quem mora longe, para lá da noite e do dia seguinte. Quando consegui caminhar sozinho julguei-me dono do mundo, como se os rios e as cidades e todas as coisas me tivessem sido oferecidos quando decidiram celebrar o dia dos meus anos. Mas, por detrás de tudo, manteve-se sempre a sombra protetora do teu corpo franzino e a imensa sensatez das tuas palavras iluminando o horizonte.

Quando pensei que voava, desprovido de asas, tão logo tropecei. E tu tão longe, na imensidão longínqua da savana, ali estavas de repente, ao meu lado, com o amparo do teu braço e o estímulo do teu conselho, a trazer nova luz à certeza dos meus passos. Girassol ereto indicando-me o rumo certo. Sempre de sorriso aberto como se eu estivesse ainda para nascer. Depois foi-se encurtando o caminho e pesando os anos. Mas nunca deixaste de sorrir, de ter a boca doce de palavras, de passar a tua mão carinhosa pela cinza dos meus cabelos. Foi por aí que verdadeiramente te senti universal. Como se fosses mais do que coisa minha e representasses a Mãe de todos. Hoje, a Mãe de todos e de todos os dias.