8 de janeiro de 2025

Santa Engrácia te acolha tarde e devagar

“Leitor de bom senso, que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi escrito – se tens bom senso! E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres e justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir, através da ilusão das aparências, algumas realidades do nosso tempo.

Aproxima-te um pouco de nós e vê.”

[Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre]

************

Não sou mais do que um pobre homem da Póvoa de Varzim, que nem sequer nasceu em casa de seus pais ou, sequer, de sua mãe. E que, menos de uma semana depois, foi a batizar a Vila do Conde, a alguns quilómetros de distância, sem se saber o nome da mulher que o parira. Portanto nascido irrelevante e anónimo. E assim fui andando, aos tropeções pela vida e aos trambolhões pelo mundo. Sem esperar dele mais do que a ignorância ou o desprezo.

Morto, contra minha vontade, no cosmopolitismo de Paris, mal deixaram que me arrefecessem os pés. Menos de um mês depois aí estava eu, de pantanas, a bordo de um navio que me devolveu a Lisboa, calado, inofensivo e quieto. Foi o facto muito celebrado e aplaudido. Tanto pela inconveniência que assim cessava como pelas dívidas que se me extinguiam.

Deu-me guarida o jazigo familiar e amigo dos Condes de Resende onde fui deixado, descansado e ao abandono. Até que interesses imobiliários me ameaçassem de despejo e o favor de remotos descendentes me levassem para Santa Cruz do Douro, onde já não me chegava ao nariz o perfume apetitoso das favas e da cozinha. Por ali fiquei uns tempos, num rústico e bucólico sossego.

Agora, finalmente, depois dos tribunais e das disputas, o estrelato e as parangonas nos jornais. Sem que eu possa ressuscitar, passear-me pelo Chiado, vestir Prada, eventualmente até adquirir a mansão de um ex-banqueiro falido na Quinta da Marinha. Talvez que pelas madrugadas a Dona Amália me presenteie com a tristeza de um fado. Ou que o senhor Eusébio me delicie com a magia dos seus toques de cabeça. E eu arranje inspiração para glorificar num romance a comunidade do condomínio privado do panteão.

 

5 de janeiro de 2025

Foi só o Sporting de Braga

Não foi propriamente o terramoto. E, por mais significativo que tenha sido o dia, não terá sido o dia D, nem tão pouco a Normandia. Quem, durante a noite e a madrugada, passou pelo Terreiro do Paço, encontrou todos os edifícios de pé e D. José, el-rei nosso senhor, garbosamente montado no seu cavalo, pronto a submeter a turba. Do cais das colunas não terão subido tropas anfíbias e submarinas, comandadas por um qualquer almirante sem covid e sem cargo, determinadas a reconstruir a baixa e a libertar-nos do opressivo e malévolo jugo espanhol. Do alto da Ajuda não chegou também notícia de que ali houvesse sido erguida barraca para alojar precariamente o vizinho do beco onde o chão haverá de ser salgado para que nem as ervas medrem.

No entanto há um novo Miguel de Vasconcelos, a quem se deu um nome mais actual e mais moderno, de melenas caídas para a fronte, vestindo roupas de marca, exibindo uma exuberante tatuagem no antebraço moldado pelo ginásio. Que durante quase oito semanas, até há oito dias, foi um intrépido e aplaudido condestável da segunda circular, alinhando as tropas em três quatro três, verticais, com profundidade, rápido nas transições, a toda a largura do campo de batalha, verde prado de erva fresca, com a generosa área de 7140 metros quadrados para repasto das bestas e alivio das aves de voo alto.

Depois, de há uma semana para cá, um incompetente de mau cheiro, discípulo de um qualquer alemão sobrevivente do III Reich, incapaz de entender duas palavras de português básico e de ver claramente visto aquilo que qualquer cego veria da última fila do terceiro anel, onde se bebia o vinho do pacote e se arremessava este para a frente com o benemérito anúncio do lá vai mijo. Sem mão na manada, irremediavelmente toldado pelo brilho das estrelas, sem rasgo nem ousadia, afunilando tudo, acagaçado e tosco como o mais rudimentar ajudante de trolha. Pede-se-lhe a cabeça, na praça pública, decepada de golpe único, como a da marquesa velha de Távora, como se ela tivesse aberto as pernas a el-rei nosso senhor, sem resistência e gemendo como qualquer freira de Odivelas.

Afinal foi só o Sporting de Braga que esculhambou a segunda circular e todos os 64.642 lugares da catedral da luz. Ámen.

26 de dezembro de 2024

O futebol como base de princípios e valores

Eu converti-me ao Sporting, já não sei quando, depois de um jogo de fim de época, em que a equipa lisboeta, contando ainda com os cinco violinos sobreviventes, Manuel Vasques e José Travassos, venceu, no campo do Clube Desportivo Ferrovia – completamente pelado – a seleção do Huambo, por dois a zero, com golos do Zé da Europa.

Agora, de há muito tempo, deixei de perder tempo com o futebol. Este deixou de ser um desporto e passou a ser uma ciência exata, com catedráticos que lhe dedicam uma intensa e ativa vida profissional, sem que ninguém os cale ou os entenda. E é, ao mesmo tempo, um negócio abjeto e oportunista, cheirando a esgoto, a que falta um mínimo de transparência e que não retém nenhuns princípios e nenhuns valores.

A sociedade em que nos inserimos tem de apoiar-se em princípios e em valores morais e éticos, sem necessidade de os transcrever em leis ou em outras normas. O futebol movimenta fortunas, não gera riqueza e não respeita nada nem ninguém. O poder político, infelizmente, enferma dos mesmos defeitos e encosta-se ao futebol tanto quanto pode. Com a intenção de lhe dar regras? Não, mas muito apenas com o propósito de dele tirar visibilidade e proveito.

Há cerca de dois meses caiu o Carmo e a Trindade – que hão-de continuar de pé – quando o treinador Ruben Amorim, a meio do contrato, se vinculou ao Manchester United, depois deste ter satisfeito as cláusulas contratuais para a respetiva resolução. Portanto, nada a opor, a não ser um sentimento de perda sem quantificação e sem substrato. De imediato foi anunciado o substituto, ainda sem curso universitário e sem carreira que lhe justificassem o endeusamento e o salário, com contrato até, se não erro, 2027. Os resultados não foram os que se esperavam porque, em boa verdade, nunca o são.

Como consequência imediata, o contrato foi rasgado, o treinador vilipendiado, o seu eventual profissionalismo arrastado pela lama. Não é nem moral, nem ético, nem sequer legítimo. Um contrato é um contrato, celebrado entre duas partes, que deve ser honrado, tenha a forma que tiver. Não posso concordar com isso, porque ainda sou do tempo em que a palavra dos homens existia e tinha algum valor. A que um contrato escrito transmitia ainda maior solidez. Os contratos são para se cumprir. A não ser assim, e pela mesma razão, o treinador que rumou a Inglaterra já também teria sido demitido. Ainda nem venceu a Premier League, nem descobriu a América.

25 de dezembro de 2024

Ganhei um limoeiro no quintal

Quem, como eu, não acredita nem nas intenções nem na ação do governo, dificilmente conseguirá[U1]  passar a ideia de que o pai natal existe, mesmo sem o patrocínio capitalista da coca cola. Ou que, em vez da paróquia do bairro de S. João, o menino jesus terá regressado a este curto rincão da península, a bordo de um voo “low cost” – continuo a adorar a língua portuguesa! - da ryanair ou da easyjet. Isto por mais solidário que seja o Natal e pródiga a respetiva quadra.

Para voos é curto o quintal e nem com a ajuda do meu velho amigo Segadães será possível construir uma pista como a da Madeira, onde possa aterrar um respeitável DC-4, a bordo do qual tive o meu batismo de voo, sempre com terra à vista, do Huambo para Luanda. No tempo em que, se os animais não falavam, pelo menos andavam perto de nós, rosnavam e enroscavam-se à volta da fogueira, cheirando-nos os pés. De forma que, à maneira de D, Sebastião, fica afastada a possibilidade do regresso do menino, esteja nevoeiro ou não.

Então isso me comprova que o pai natal existe, sem sequer me obrigar ao consumo da mixórdia ou à exibição da garrafa durante as manifestações públicas. Porquê? Ora, simplesmente porque o dia me amanheceu com um limoeiro plantado no quintal. Jovem, robusto, frondoso, à sombra do qual me acolho neste limpo dia de sol, poucos dias depois do solstício de capricórnio. Um limoeiro mais do que amigo, com o tronco e os ramos lisos, despidos de espinhos e guarnecido de farta quantidade de limões, amarelecendo como se fossem bolas de cristal enfeitando o jovem pinheiro encostado ao canto da sala, assinalando a época.

Aqui me sento e aqui repouso, estendo as pernas e desfrutando da sombra. E aspirando este perfume fresco e único, em dia de celebrações festivas. Como se fosse Irresistible, de Givenchy.


 

24 de dezembro de 2024

D. Quixote de la Mancha

Bem te digo Sancho, sendo Dezembro e Inverno, a noite não está nem muito fria, nem muito escura. A lua cheia já foi há alguns dias, devemos estar quase pelo quarto minguante. E as ruas estão desertas, não se vê vivalma, nada se move, não corre uma brisa. Mas esta espécie de luar encoberto deixa-nos ver a estrada, nada nos impede a caminhada, ninguém nos perturba. E apesar disso há uma luz difusa em cada casa, parece que toda a gente se mantém desperta, à roda da fogueira que se consome, como se não lhes desse o sono. Como se a chegada do frio da madrugada as não atormentasse, lhes não fosse desconfortável.

Eu sinto renovadas as forças e a esperança. Nós estamos no bom caminho, Sancho, nós vamos atingir os nossos objetivos. Valeu a pena porfiar, valeu a pena persistir. Não nos demoveram nem o riso, nem a chacota, nem a humilhação. Muito menos o desânimo e o cansaço. Sempre soubemos aquilo que perseguíamos. E será esta noite quieta de Dezembro que nos fará justiça, que imobilizará as velas pandas de todos os moinhos, que tirará o vento do cimo dos outeiros e a maldade do espírito dos homens. Cada um de nós terá o seu lugar na história. Eu, o indomável cavaleiro da esperança, valente e determinado. E tu, Sancho, meu fiel seguidor, que me não abandonaste em nenhum momento, nem quando o desânimo quase te derrubou do burro Rucio, alquebrado do  caminho.

Já era tempo, Sancho. Foi a isto que dediquei toda a minha vida e entreguei todo o meu esforço. A abrir caminho, a imobilizar moinhos, a aquietar velas, a semear serenidade e concórdia. Cavalgando este bravo Rocinante, ousado e destemido. Nada nos deteve, nada nos deterá. Mais tarde, depois de Cervantes, alguém virá para lembrar-nos que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Se não fraquejarmos, nem nós, nem as montadas. A fé e a missa do galo nos salvarão, antes que chegue o dia seguinte.

Depois, o dia seguinte já será novamente de ruínas, povoado por moinhos ameaçadores por todos os cantos do mundo, com todas as velas zunindo. Porque nunca houve nem haverá ninguém como o homem, tão capaz de se matar para sua suprema felicidade. Sem que, para tanto e para seu propósito, consiga extinguir a espécie. Nem no Natal!