1 de julho de 2024

Fausto Bordalo Dias

O Carlinhos morreu. Conheci-o quando a sua família morava no Bairro de São João, em Nova Lisboa, mesmo em frente à escola nº. 21, onde completei a minha instrução primária. A sua mãe, ali professora, morreu prematuramente, ainda muito nova. O seu pai é que era o Fausto, o sucateiro, com quem ainda estive numa das minhas poucas idas ao convívio anual nas Caldas da Rainha. O seu irmão Manuel, mais velho, médico veterinário, também já falecido, ainda se encontrou comigo num dos almoços de confraternização, creio que na Redinha, Pombal. Nunca me reencontrei com o Carlinhos, a não ser sentado na plateia, para ouvi-lo.


Primeiro num concerto a que se aventurou, no Coliseu do Porto, a solo. E mais tarde, na mesma sala emblemática da cidade invicta, num concerto único com José Mário Branco e Sérgio Godinho. Em criança era pequeno, magro, enfezado e ninguém diria que os seus dedos viriam a ter o virtuosismo que tiveram dedilhando as cordas de uma viola ou que o seu vozeirão ecoaria até ao último lugar do coliseu. Eu só gosto de música, nem sei uma nota, nem tão pouco tenho ouvido musical. Mas Fausto Bordalo Dias deixa-nos, com poucas ou nenhumas dúvidas, o trabalho mais importante da música popular portuguesa dos últimos cem anos: Por este rio acima!

5 de maio de 2024

Dia da Mãe

Regresso muito devagar ao princípio do mundo, até chegar ao apertado aconchego do teu regaço. E descubro que é daí que vem a invenção da luz e o movimento de translação da terra. Antes disso não havia sol e todos os dias eram escuros, sem horas e sem azul por cima. Não havia nem árvores, nem mares, nem pássaros e tudo era quieto como o silêncio. Não havia nem entardecer nem fim do dia. Depois, ao fundo do teu vasto ventre, acendeu-se a luz inicial nas meninas dos meus olhos e inventou-se a vida. E de repente houve oceanos e marés e o barulho das ondas desfazendo-se contra as falésias. Surgiram planícies e montanhas onde nasceram ervas e abriram flores, cresceram árvores e voaram pássaros. A terra começou a girar à sua volta e daí nasceu a noite para descanso dos olhos e para descoberta das estrelas.

Depois, na palma da tua mão, deram-se os primeiros passos e descobriu-se o equilíbrio, e com isso se abriram os primeiros caminhos e se mediram ainda pequenas distâncias. Com a terra plana e com Galileu ainda sem saber quando e onde nascer, sempre o teu rosto foi espelho de todos os sorrisos e porto de abrigo para todos os peregrinos. Deve ter sido das grandes peregrinações que vieram os maiores desafios e ainda a necessidade da invenção da escrita, para falarmos de amor a quem mora longe, para lá da noite e do dia seguinte. Quando consegui caminhar sozinho julguei-me dono do mundo, como se os rios e as cidades e todas as coisas me tivessem sido oferecidos quando decidiram celebrar o dia dos meus anos. Mas, por detrás de tudo, manteve-se sempre a sombra protetora do teu corpo franzino e a imensa sensatez das tuas palavras iluminando o horizonte.

Quando pensei que voava, desprovido de asas, tão logo tropecei. E tu tão longe, na imensidão longínqua da savana, ali estavas de repente, ao meu lado, com o amparo do teu braço e o estímulo do teu conselho, a trazer nova luz à certeza dos meus passos. Girassol ereto indicando-me o rumo certo. Sempre de sorriso aberto como se eu estivesse ainda para nascer. Depois foi-se encurtando o caminho e pesando os anos. Mas nunca deixaste de sorrir, de ter a boca doce de palavras, de passar a tua mão carinhosa pela cinza dos meus cabelos. Foi por aí que verdadeiramente te senti universal. Como se fosses mais do que coisa minha e representasses a Mãe de todos. Hoje, a Mãe de todos e de todos os dias.

 

25 de abril de 2024

25 de Abril mais 50

Parabéns minha querida Dra. Dorinda Agualusa. O primeiro objetivo do 25 de Abril está alcançado: trazê-la até aqui, à celebração do seu 100º aniversário. Por isso me curvo à sua frente, com a emoção a ameaçar-me as lágrimas, para entregar-lhe, simbolicamente, um pequenino ramo de orquídeas. E a dizer-lhe, de novo, da minha gratidão de sempre e para sempre. Cem anos são um marco especial, a inscrever naquele penedo ao fundo do quintal do seu canto de paraíso, com o mar ao fundo, na Casa do Cruzeiro. A assinalar esta data e o seu centésimo aniversário.

O outro 25 de Abril foi há 50 anos, quando um regime já senil e obsoleto, ameaçando ruína, se desmoronou às mãos de meia dúzia de capitães que, para isso, de facto, não precisaram nem de grande arsenal nem de muita heroicidade. Ou que foram heróis mas pelos propósitos, pelas intenções e pelo sonho com que realizaram o golpe. Entretanto, ao longo do tempo, foi-se vulgarizando a questão de sabermos onde estávamos no 25 de Abril, não importa com que intenção. E, passado este meio século, é avisado e aconselhável que pensemos, cada um de nós, à margem dos políticos que nos governam mas com eles: onde estamos depois destes 50 anos. Depois do capitão Fernando Salgueiro Maia ter plantado em frente ao Quartel do Carmo o girassol da liberdade, à sombra da qual hoje nos acolhemos.
O girassol cresceu, ganhou porte, criou folhas, abriu uma larga e bela corola. Tapou algumas misérias absurdas e destapou outras, deixou satisfeitos uns e insatisfeitos outros. Temos um regime democrático, com eleições regulares e livres, em que todos podem ser eleitores e, com algumas condições, também eleitos. Eliminaram-se algumas distorções medievais e deixaram-se aumentar outras, de todo inaceitáveis. Há liberdade de expressão, condição necessária para que falemos de democracia mas, de todo, não suficiente para que a tenhamos. O país tem crianças que, de manhã, vão para a escola sem pequeno-almoço, tem milhares de jovens que não completam o ensino obrigatório, tem adultos que vivem ao relento, nas portadas das ruas das cidades, tem velhos indefesos e abandonados à sua velhice e à sua desgraça. Tem jovens a que se não oferece oportunidade de emprego, se não garante rendimento digno, se não dá a possibilidade de criar família, de ter uma casa e de ter e educar filhos. Tem uma imensa pobreza que se alarga, sem uma escala que a possa medir e que cresce sem combate e sem freio. Não se alarga a proteção aos mais vulneráveis, não se lhes dão maiores benefícios ou algum horizonte. A falta de habitação não é um problema, é uma tragédia. O cidadão comum não vislumbra no seu dia-a-dia esperanças de melhor futuro.

Não há democracia com tão graves problemas por resolver. E a sua resolução não é uma questão individual, é uma tarefa coletiva que diz respeito a todos. O país, coletivamente, será mais rico se se produzir mais e maior riqueza. Mas teremos também muito menos e muito menor pobreza se a riqueza existente for melhor distribuída. E menos e menor pobreza significará mais e melhor democracia. Não se fala nisso ao fim de 50 anos. É importante, é necessário, é imperioso que se fale. Para mais e para melhor democracia!

19 de abril de 2024

A primeira margem do rio

O pouco que sei aprendi-o com minha Mãe, tudo o que não sei aprendi sozinho. Aos oito anos eu só sabia que aquela era a primeira margem do rio, mas não sabia que o rio tinha mil quilómetros. Não sabia onde era a sua nascente. Mas sabia que iria desaguar no mar, sem saber onde era o mar ou, se calhar, também ainda não sabia. Sabia que o rio tinha uma jangada para o atravessar, que os homens, à força de varas compridas e de braços faziam encostar a um pequeno cais onde esperava uma camioneta Internacional K-11. Pôr a camioneta a bordo era uma tarefa de homens de ciência, demorava uma eternidade, até que minha Mãe me chamasse para o almoço. Para, talvez, me dar peixe frito e salada para comer e quinino para tomar, por causa do paludismo.

Logo depois de almoço a camioneta estava a bordo com precisão milimétrica, metade dos homens orientando de um lado, a outra metade orientando do outro, mais um bocadinho para a esquerda, menos um bocadinho para a direita, em frente devagarinho, para, em frente, volta a parar, isso. A cantilena muito lenta, muito arrastada, da qual, finalmente, sobressaía a voz poderosa de tenor: alto! Os homens subiam também todos a bordo, pegavam nas varas compridas, de pés descalços, os peitos negros exibindo o poder dos músculos e o preto da pele. Desamarravam as cordas grossas que prendiam a jangada aos troncos de árvore enterrados na terra seca. A jangada balançava suavemente ao sabor da corrente, parecia ameaçar ir rio abaixo, os homens fincavam as varas ao fundo do rio, o coro do esforço enchia o ar: huuuuumm. O balanço sustinha-se, a jangada contrariava a corrente, arrastava-se uma mão-travessa a subir o rio. A monotonia do coro durava uma hora, primeiro subindo o rio alguns cem metros, ao longo da margem. Depois empurrando a jangada para o outro lado, de uma outra margem tão distante que não existia, depois aproveitando e controlando a corrente para chegar ao destino.

Nesta primeira margem, com um pequeno resto de tábua, eu escavava a terra húmida sob a sombra larga das mangueiras. Cada punhado de terra trazia duas ou três minhocas contorcendo-se, tentando libertar-se da luz que lhes cegava os olhos que não viam. Eu aprontava o anzol na ponta de um fio com dois metros, preso a uma cana mal aparada de outros dois. Cravava-lhe na ponta a primeira minhoca, que se contorcia sempre, sem ai nem ui, esperneando, calada. Atirava o anzol ao rio e a rolha ficava a boiar, à superfície, acompanhando lentamente a corrente do rio e o movimento da jangada a meio dele. A meio do rio os homens continuavam com o seu esforço e o seu coro, arrastando a jangada e a cantiga, de troncos nus rebrilhando ao sol. Eu fixava o olhar no sol e na distância, preso à margem, à sombra das mangueiras, seguindo a rolha que flutuava e a jangada que carregava a camioneta. E começava a divisar um grande girassol que emergia no fundo do horizonte, ereto e poderoso, de tronco largo e folhas muito verdes, com uma corola tão brilhante e amarela como o sol escaldante do meio-dia. Era o sonho que se abria à volta do sol. Durante cinquenta anos o girassol cresceria sem rega e sem cuidados, fortalecendo-se nesta primeira margem do rio. O rio era o Kwanza, farto, largo, imenso e forte, grande de mil quilómetros, arrastando-se lentamente a caminho de Nossa Senhora da Muxima. Saravá!

12 de abril de 2024

O girassol do desassossego

Bem, antes de mais é necessário que te arranje um nome. Tenho pensado em muitos com insistência, persistido, acabando depois perdido num cansado desassossego. Faço ainda mais algumas tentativas. Ocorre-me chamar-te girassol. É uma bela flor, altaneira, com uma simplicidade grandiosa e parece-me também um bonito nome. Se seguir o sol nunca te perderei, nunca me faltarás, ter-te-ei sempre por perto. Como flor agrada-me, é de uma beleza consensual, de pétalas alegremente amarelas, de vestes elegantes e discretas, sem a fragrância explosiva da alta perfumaria. Não requer habitação cosmopolita, vive bem em sociedade, cresce espontânea ao ar livre, em terreno que tenha a humidade suficiente para a vida. É alegre mesmo quando solitária e a sua corola é sempre um sorriso largo e aberto, mesmo se se curva numa vénia elegante e delicada. É um símbolo de esperança e um sinal de concórdia, até quando ao fim do dia o sol se põe no horizonte e a noite envolve a última claridade do crepúsculo.

A história é real, impossivelmente real, com pessoas, coisas, ruas e cidades, por dentro e por fora. Com a vida do dia-a-dia, com horários para cumprir, horas para as refeições, tempos para descanso, noites para que as estrelas possam brilhar. E apesar de tudo é um realismo mágico que não dá para entender, que nenhuma razão explica, que nenhum raciocínio justifica. Como se compreende, senão por magia, que sempre tenham estado juntas pessoas tão desconhecidas, nunca vistas, sem nenhuma possibilidade de se poderem ter pensado. E que, apesar de todas as impossibilidades, sempre se entenderam sem o saberem, sem gestos e sem palavras, sem divergências nem desentendimentos. Como caminharam sempre lado a lado, de mão dada, seguindo uma vida comum e única, sem espaço que lhes pertencesse e onde estivessem. Que mais do que juntas sempre foram só uma, como se assim tivessem crescido, com um só sonho e um único destino. A mesma cidade mágica, só existente na fertilidade da imaginação e nos antigos contos de fadas que viviam em castelos isolados no píncaro dos montes.

Cinquenta anos de solidão não dão para contar a história de Garcia Márquez, mas dão para atravessar noites em claro, entrar numa colmeia, procurar pela rainha, não a encontrar. Saltar por sobre as nuvens, abrir oceanos, tentar descobertas, desenhar a rosa dos ventos e continuar sem encontrar norte. Construir caravelas, navegar pela madrugada até à terra fria, enregelar, abrir os olhos no escuro. Sentir o enxame reunido por cima do sonho, escalar promontórios, não saber como comunicar, não haver informação disponível depois da linha quebrada. Acreditar que há uma nova vida em cada manhã, ter esperança apesar do desconsolo. Saber que haverá sempre um momento encantado, enfeitado com fitas e com estrelas tatuadas sobre o coração. Extasiar-se como se tudo fosse ainda ontem, dois olhares e nenhuma palavra, sem distância nem interrupção. Ter o mundo aos pés, agarrá-lo, não deixar que se perca mais.