9 de setembro de 2023

Dezasseis anos, Deolinda.

Da chada resta a ribanceira, descarnada do tojo e do coro agudo das cigarras, com o sol a dar-lhe de manhã cedo nos longos dias de Verão e sempre sombria nos curtos dias de Inverno. Abaixo nem casa, nem ruínas, já não resta nada. As cepas velhas, sem poda e sem vindima, estendendo os braços sequiosos pelo terreno seco, de pousio, ainda suportam a parra prestes a tombar. Resistem as oliveiras pelo talho abaixo, ao abandono, sem cuidados, carregando de azeitona miúda que há de cair antes que possa ganhar cor e chegar-lhe os corvos e a rapina. Apenas a figueira, aquela danada árvore do inferno, resiste a tudo, assinalando o sítio exacto onde era um canto do antigo e acanhado pátio. De resto, só velhas memórias de tempos remotos, mais nada.

E no meio, na pequena falda, continua descendo a estrada estreita, hoje quase apenas uma negra fita de alcatrão, a caminho do centro da velha aldeia, hoje vila, último refúgio de gente também velha, que já não tem nem futuro nem esperança. Primeiro a ribeira, logo depois a quinta do paço, o carvalho da bola a seguir. Onde continua a não se ver nem bola, nem carvalho, e Deus saberá de onde terá vindo o nome do sítio, mesmo em frente ao portão de entrada para a quinta. Os carvalhos esses sim, esses centenários e de boa saúde, continuam crescendo à beira do adro, dando para a porta da igreja velha, parada no tempo e no restauro para que faltam as vontades e o dinheiro. À sombra deles, no muro largo, te sentaste comigo ao lado, muito carregada de anos e de sorrisos, em domingo da festa grande, ao pé dos andores regressados da procissão sob a canícula poeirenta do início de Setembro. Parece que foi ontem.

Ali foste ainda mais rainha por uma tarde de quase fim de Verão, sempre de sorriso humilde e feliz, venerada por toda a gente de que sabias toda a história e conhecias toda a família. Sem que houvesse quem não te admirasse, quem não te enaltecesse as qualidades, quem não te deixasse um mimo carinhoso. Que não te trouxesse um brilhozinho gaiato ao fundo dos olhos doces e gastos. Para meu orgulho e, agora aqui, também para memórias minhas. Dezasseis anos de memórias de pedra. Dezasseis anos de distância, tanto tempo, minha Mãe!

19 de julho de 2023

Antes que seja pecado

Antes que cá chegue sua santidade o papa, e seja pecado dizê-lo: p#$% que p&%$# os russos, que se f%$& o Putin. Sim, porque a culpa é deles!

Para se ser ministro é preciso ser-se patriota. De forma que são patriotas todos os ministros, ex-ministros e candidatos a ministros. Se bem que estes últimos ainda o não sejam suficientemente e, por isso mesmo, ainda não chegaram ao cargo.

É preciso ser-se inteligente e ter um QI de algum quilo e meio. Ter estudos, licenciaturas pós Bolonha, mestrados, doutoramentos, cursos de Verão na Costa da Caparica ou em Castelo de Vide. Ter frequentado escolas de referência, ter sido colega de turma daquele grego do Fundão ou do ilustradíssimo doutor Relvas.

E, claro, ser esperto. Nunca se pensa que se chega lá, a ministro, ao serviço público do país e dos portugueses (e portuguesas, pois então!) sem se ser esperto. Sem perceber que a forma de ir do Porto a Vila Nova de Gaia, sem risco de cair ao rio Douro é dar a volta pelo golfo da Biscaia e por Vila Real de Santo António.

A Caixa Geral de Aposentações pagou hoje as pensões do mês aos seus pensionistas. Sua excelência, o esperto do ministro, fez divulgar publicamente que a mesma trazia um largo aumento de 3,57 por cento, aplicado à base de Dezembro passado, e refletindo já a aplicação mais favorável das novas tabelas de retenção do IRS.

Deveria sua excelência, o esperto do ministro, ter também mandado saber que era paga aos pensionistas uma pensão extra, habitualmente conhecida por subsídio de férias, regra geral utilizada para pagar a conta atrasada da farmácia e comprar uns sapatos novos na feira de Espinho. E ainda que o seu valor não era actualizado por simples razões de patriotismo e de esperteza.

Por isso é que, para ser ministro, é preciso ser patriota, como o histórico Miguel de Vasconcelos. E ser esperto, como o sortudo dono da Altice.

 

21 de junho de 2023

É Verão desde as 14 horas e 58 minutos

O que eu me preparei para isto! Primeiro a averiguar e saber, com o saber científico da ciência, o momento exacto do solstício, ocorrência que me dispenso de explicar por não ter tido tempo para uma investigação suficiente. Mas resumidamente é assim: o sol chegou ao ponto mais a norte do seu trajecto aparente, tocando o trópico de Câncer, às 14 horas e 58 minutos. Aqui, onde resido, a menos de cinco quilómetros do monte da Penaventosa, o sol nasceu hoje às 6 horas e 1 minuto e irá pôr-se às 21 horas e 10 minutos e o dia, o mais longo do ano, terá 15 horas, 8 minutos e 47 segundos. Nem o governo, nem os cientistas políticos nos presenteiam com tal rigor quando nos indicam a taxa de inflação ou o aumento do preço dos combustíveis. E eu, registem isso, sou apenas um curioso que, informando-vos, não espero, apesar disso, contribuir para a felicidade de ninguém.

O Verão vai durar até às 6 horas e 50 minutos do dia 23 de Setembro, data do equinócio de Outono no hemisfério norte, que é quando o sol chegará ao Equador, aquela tal linha imaginária que passa por São Tomé e Príncipe que, em boa verdade, acho que não tem culpa nenhuma disso. Nesse intervalo de tempo é presumível que faça bom tempo, as temperaturas subam, chova pouco e se possa ir para as praias. Todavia a meteorologia vos manterá diariamente informados com maior certeza, para que vos façais trigueiros de meter inveja, com os pelos das pernas apenas brilhando com fios de ouro, para que possais usar calções e frequentar as esplanadas a debicar caracóis, a pretexto de ingerir alguns copos de cerveja, estupidamente gelada como há anos aconselha o Chico Buarque. E diverti-vos durante estes três meses, aproveitai enquanto o governo não cai nem aumenta os impostos. Em Setembro cá estarei de volta, para vos transmitir mais informação adequada e exacta. Para que possais preparar-vos para a missa do galo. Como se diz por cá, não vos alapeis!

 

 

16 de junho de 2023

Três dias de luto e uma vala comum

Há dias, uma traineira de pesca, com menos de trinta metros de comprimento, largou das costas da Líbia com cerca de 750 pessoas amontoadas a bordo. Nenhuma delas com direito a cabine individual, mesa posta para o jantar ou lugar privilegiado debruçado da amurada. Poderia ser um curto passeio à vista da praia, mirando os banhistas expostos ao sol ou ansiando pelo encontro fortuito com uma irrequieta colónia de golfinhos. Não era.

Aventurou-se o barquito à travessia do mediterrâneo como se demandasse terras da Índia, à procura da pimenta e do cravinho. Apenas esperando por uma praia deserta nas costas da Europa, onde todos pudessem desembarcar como se chegassem ao paraíso, as manhãs fossem menos frias e restasse um pão seco recusado por qualquer mesa farta. O barco não resistiu a qualquer onda de estibordo e naufragou.

As costas da Grécia estavam a menos de cem quilómetros e as autoridades resgataram com vida 100 passageiros. Nenhum tem nome e, dos outros 650 não se sabe também nem o género, nem a idade, as habilitações ou o partido em que votariam se fossem eleitores inscritos e não se abstivessem. Oficialmente foram decretados três dias de luto e mandadas abrir valas onde todos possam finalmente repousar. Sem paraíso. E está o problema resolvido.

10 de junho de 2023

Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades

Aproveitando o dia feriado, a elite do Terreiro do Paço convergiu para a cidade transmontana do Peso da Régua, a fim de celebrar a data, subir ao miradouro da Galafura, admirar a paisagem verde dos socalcos e deliciar-se com os últimos resquícios da velha cozinha tradicional. Como convinha ao palato e à região, sempre salientando o sabor a fruta do vinho fino e do barca velha.

O Presidente da República fez questão de lembrar que Portugal ia de Viana do Castelo às ilhas do Porto Santo e do Corvo esquecendo-se, lamentavelmente, de referir a Aguada de Cima e o apetitoso leitão assado da Casa Vidal. Ninguém fez a menor referência a Camões ou aos Lusíadas e apenas um produtor de vinho referiu, de passagem, a figura histórica mais próxima da sua época, o Marquês de Pombal, que deu cabo dos taberneiros e concentrou o comércio da pinga.

Foram muito genéricas as referências às Comunidades e incentivou-se o regresso dos emigrantes e a vinda de forasteiros, desde que de bolsos cheios de dólares e de reservas para o alojamento local e para os hotéis de cinco estrelas. Não se ouviram, apesar disso, aplausos nem dos grémios nem dos sindicatos.

O povo, como convém, manteve-se atrás das cordas montadas para sua protecção, para não se tresmalhar, e aplaudiu o patrão da quinta e apupou o ministro Galamba. O doutor Montenegro faltou à sombria manhã na praia de Espinho e mostrou-se, de fato e gravata, à direita de um deputado do Chega com a barba por fazer. Por causa do voo das aeronaves não houve lançamento de foguetes, ficando esta cerimónia adiada para a noite de São João no Porto.