26 de dezembro de 2024

O futebol como base de princípios e valores

Eu converti-me ao Sporting, já não sei quando, depois de um jogo de fim de época, em que a equipa lisboeta, contando ainda com os cinco violinos sobreviventes, Manuel Vasques e José Travassos, venceu, no campo do Clube Desportivo Ferrovia – completamente pelado – a seleção do Huambo, por dois a zero, com golos do Zé da Europa.

Agora, de há muito tempo, deixei de perder tempo com o futebol. Este deixou de ser um desporto e passou a ser uma ciência exata, com catedráticos que lhe dedicam uma intensa e ativa vida profissional, sem que ninguém os cale ou os entenda. E é, ao mesmo tempo, um negócio abjeto e oportunista, cheirando a esgoto, a que falta um mínimo de transparência e que não retém nenhuns princípios e nenhuns valores.

A sociedade em que nos inserimos tem de apoiar-se em princípios e em valores morais e éticos, sem necessidade de os transcrever em leis ou em outras normas. O futebol movimenta fortunas, não gera riqueza e não respeita nada nem ninguém. O poder político, infelizmente, enferma dos mesmos defeitos e encosta-se ao futebol tanto quanto pode. Com a intenção de lhe dar regras? Não, mas muito apenas com o propósito de dele tirar visibilidade e proveito.

Há cerca de dois meses caiu o Carmo e a Trindade – que hão-de continuar de pé – quando o treinador Ruben Amorim, a meio do contrato, se vinculou ao Manchester United, depois deste ter satisfeito as cláusulas contratuais para a respetiva resolução. Portanto, nada a opor, a não ser um sentimento de perda sem quantificação e sem substrato. De imediato foi anunciado o substituto, ainda sem curso universitário e sem carreira que lhe justificassem o endeusamento e o salário, com contrato até, se não erro, 2027. Os resultados não foram os que se esperavam porque, em boa verdade, nunca o são.

Como consequência imediata, o contrato foi rasgado, o treinador vilipendiado, o seu eventual profissionalismo arrastado pela lama. Não é nem moral, nem ético, nem sequer legítimo. Um contrato é um contrato, celebrado entre duas partes, que deve ser honrado, tenha a forma que tiver. Não posso concordar com isso, porque ainda sou do tempo em que a palavra dos homens existia e tinha algum valor. A que um contrato escrito transmitia ainda maior solidez. Os contratos são para se cumprir. A não ser assim, e pela mesma razão, o treinador que rumou a Inglaterra já também teria sido demitido. Ainda nem venceu a Premier League, nem descobriu a América.

25 de dezembro de 2024

Ganhei um limoeiro no quintal

Quem, como eu, não acredita nem nas intenções nem na ação do governo, dificilmente conseguirá[U1]  passar a ideia de que o pai natal existe, mesmo sem o patrocínio capitalista da coca cola. Ou que, em vez da paróquia do bairro de S. João, o menino jesus terá regressado a este curto rincão da península, a bordo de um voo “low cost” – continuo a adorar a língua portuguesa! - da ryanair ou da easyjet. Isto por mais solidário que seja o Natal e pródiga a respetiva quadra.

Para voos é curto o quintal e nem com a ajuda do meu velho amigo Segadães será possível construir uma pista como a da Madeira, onde possa aterrar um respeitável DC-4, a bordo do qual tive o meu batismo de voo, sempre com terra à vista, do Huambo para Luanda. No tempo em que, se os animais não falavam, pelo menos andavam perto de nós, rosnavam e enroscavam-se à volta da fogueira, cheirando-nos os pés. De forma que, à maneira de D, Sebastião, fica afastada a possibilidade do regresso do menino, esteja nevoeiro ou não.

Então isso me comprova que o pai natal existe, sem sequer me obrigar ao consumo da mixórdia ou à exibição da garrafa durante as manifestações públicas. Porquê? Ora, simplesmente porque o dia me amanheceu com um limoeiro plantado no quintal. Jovem, robusto, frondoso, à sombra do qual me acolho neste limpo dia de sol, poucos dias depois do solstício de capricórnio. Um limoeiro mais do que amigo, com o tronco e os ramos lisos, despidos de espinhos e guarnecido de farta quantidade de limões, amarelecendo como se fossem bolas de cristal enfeitando o jovem pinheiro encostado ao canto da sala, assinalando a época.

Aqui me sento e aqui repouso, estendo as pernas e desfrutando da sombra. E aspirando este perfume fresco e único, em dia de celebrações festivas. Como se fosse Irresistible, de Givenchy.


 

24 de dezembro de 2024

D. Quixote de la Mancha

Bem te digo Sancho, sendo Dezembro e Inverno, a noite não está nem muito fria, nem muito escura. A lua cheia já foi há alguns dias, devemos estar quase pelo quarto minguante. E as ruas estão desertas, não se vê vivalma, nada se move, não corre uma brisa. Mas esta espécie de luar encoberto deixa-nos ver a estrada, nada nos impede a caminhada, ninguém nos perturba. E apesar disso há uma luz difusa em cada casa, parece que toda a gente se mantém desperta, à roda da fogueira que se consome, como se não lhes desse o sono. Como se a chegada do frio da madrugada as não atormentasse, lhes não fosse desconfortável.

Eu sinto renovadas as forças e a esperança. Nós estamos no bom caminho, Sancho, nós vamos atingir os nossos objetivos. Valeu a pena porfiar, valeu a pena persistir. Não nos demoveram nem o riso, nem a chacota, nem a humilhação. Muito menos o desânimo e o cansaço. Sempre soubemos aquilo que perseguíamos. E será esta noite quieta de Dezembro que nos fará justiça, que imobilizará as velas pandas de todos os moinhos, que tirará o vento do cimo dos outeiros e a maldade do espírito dos homens. Cada um de nós terá o seu lugar na história. Eu, o indomável cavaleiro da esperança, valente e determinado. E tu, Sancho, meu fiel seguidor, que me não abandonaste em nenhum momento, nem quando o desânimo quase te derrubou do burro Rucio, alquebrado do  caminho.

Já era tempo, Sancho. Foi a isto que dediquei toda a minha vida e entreguei todo o meu esforço. A abrir caminho, a imobilizar moinhos, a aquietar velas, a semear serenidade e concórdia. Cavalgando este bravo Rocinante, ousado e destemido. Nada nos deteve, nada nos deterá. Mais tarde, depois de Cervantes, alguém virá para lembrar-nos que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Se não fraquejarmos, nem nós, nem as montadas. A fé e a missa do galo nos salvarão, antes que chegue o dia seguinte.

Depois, o dia seguinte já será novamente de ruínas, povoado por moinhos ameaçadores por todos os cantos do mundo, com todas as velas zunindo. Porque nunca houve nem haverá ninguém como o homem, tão capaz de se matar para sua suprema felicidade. Sem que, para tanto e para seu propósito, consiga extinguir a espécie. Nem no Natal!