Era 1976. À uma da tarde,
sem ar condicionado, o carro escaldava por dentro e por fora, sob a brava
inclemência do sol de Luanda. Enquanto ia gemendo rua acima, entre a Mutamba e
o Kinaxixe, procurando acertar com o caminho para o local do almoço, algures
nas proximidades da igreja da Sagrada Família. Como sempre, usava os meus
óculos com lentes photogray, para me corrigirem uma ligeira miopia, que nunca
exigira a referência a lentes de correcção na carta de condução. E,
naturalmente, para me protegerem também um pouco os olhos, daquela luminosidade
excessiva e única que Deus deu a África.

Mesmo ao cimo da rua, àquela
hora e naquelas condições, a inesperada operação stop. Os camaradas fardados,
de forma um bocado descuidada, as botas sujas, o encaracolado das carapinhas à
toa, espreitando das boinas, empunhando belas e reluzentes kalashnikoves, a
fazer-me sinal para que parasse. Encostei à berma da rua, os vidros abertos, o
motor a trabalhar, aguardei. O que deveria ser o camarada chefe aproximou-se da
minha janela e falou:
- Camarada, os documento?
Peguei na pequena bolsa que
trazia no banco do lado, abri-a calma e tranquilamente. Retirei o bilhete de
identidade, a carta de condução, o livrete e o título de propriedade automóvel.
Tudo o que era preciso, tudo o que pertencia. E disse:
- Está tudo aqui camarada,
faz favor…
O sol ardia-me na fronte,
trazia-me o desconforto, alagava-me de suor a barba espessa e farta, digna do
mais convincente evolucionário cubano. O camarada ordenou os documentos em dois
grupos de dois, os pessoais e os do automóvel. Pegando nos que me pertenciam,
fitou-os prolongadamente e, depois, fez o mesmo comigo. Depois disso pegou nos
do automóvel e foi compará-los com a chapa de matrícula. Não disse nada e
voltou à minha janela, mirou de novo os meus documentos e fez o mesmo comigo.
Dirigiu-se à frente do automóvel e repetiu o gesto com os respectivos documentos
e com a chapa de matrícula. Voltou, de novo não falou, não disse nada. Repetiu
ambos os gestos alguma meia dúzia de vezes, enquanto o sol escaldava e o
estômago se contorcia.
Depois, a meu lado,
finalmente, falou para mim, austero e inquiridor, como sempre deve ser a
autoridade:
- Camarada, os óculos é da
vista ou é do sol?
E aí, abruptamente, percebi.
Fez-se-me luz no cérebro, sob o sol aberto que inundava tudo. Pois, os óculos!
O bilhete de identidade e a carta de condução sem eles. E, em ambos os documentos,
eu também sem barbas. Estas até me beneficiavam, conferiam-me um aspecto de
revolucionário convicto e confiável, ainda estou para saber porquê. E eu,
distraído, surpreendido pela acção, esquecera-me de, por precaução, os tirar da
cara e pousar ao lado.
Mas, sem hesitação,
respondi, com convicção e respeito, porque a autoridade sempre merece e exige
respeito:
- Os óculos são do sol
camarada!
Calmamente o camarada chefe
juntou os documentos e devolveu-mos. Parece-me que não sorriu. Por princípio, a
autoridade não tem sorriso, só respeito. Com a mesma tranquilidade, arrumei-os
na bolsa e nos lugares que lhes pertenciam. O camarada falou mais uma vez,
sério como se o cacimbo alastrasse lá em baixo, sobre a baía.
- Pronto camarada, podes
seguir.
E eu segui, em velocidade
moderada, o motor suspirando de alívio pelo plano que enfrentava. Virando à
direita para a Rua que ainda era chamada de Brito Godins, passei pelo edifício
Suba, antes do Liceu Salvador Correia virei à esquerda. Para a frente, no fim
da rua, ficava a igreja. Para trás ficavam os camaradas, continuando com a sua
operação de vigilância. A revolução tem de ter sempre os olhos abertos,
qualquer mosquito pode ser o perigo, nunca se sabe, o imperialismo tem os
truques dele. As soberbas kalashnikoves rebrilhavam sob o sol inclemente e
único da cidade de São Paulo da Assunção de Luanda. O mesmo sol, que em África
é de graça, continua lá. Como tu, Camus, francês da Argélia, o anunciaste ao
mundo!